Primeiro encontro
Desde nossa pequena discussão, Cristiano me evitava. Seu olhar se desviava do meu, envergonhado. Não sabia se tinha vergonha de como agiu comigo ou se estava decepcionado com alguma coisa pessoal. De qualquer forma, se perdia em parte com Cristiano, em parte parecia ganhar com Catarina.
Nem ela e nem eu comentávamos sobre, mas era notável que o tratamento entre nós duas tinha melhorado a ponto de não ser sufocante estar no mesmo lugar que ela. Cristiano, por outro lado, ficava ainda mais recluso no seu quarto e saía sem dizer para onde. Cíntia falava que era uma espécie de retaliação pessoal pelo fato de também sair sem dizer nada. Catarina prestava-se a apenas revirar os olhos e falar que ele continuava a ser o mesmo garoto imaturo de sempre.
Mesmo discurso que ouvia da minha mãe. Nunca a tinha ouvido tão furiosa comigo quanto da ideia que tive em vir para cá. Perguntei o que ela e Tadeu tinham conversado, mas ela acabou mudando de assunto e voltando as atenções para as minhas tais desventuras inconsequentes.
Estava arrumando as prateleiras quando ouvi alguém se aproximar. De óculos escuros, camisa de risca bem passada e calças de alfaiataria bem alinhadas, ele entrava com seus sapatos lustrosos. Questionava-me como ele conseguia ter esse porte naquele calor matinal. Eu usava só camiseta e bermuda e estava suando o suficiente.
— Bom dia – ele falou sério.
— Bom dia – respondi sem muito alarde, continuando a limpar o item em minhas mãos.
— Quero te convidar para um passeio.
— Estou meio ocupada no momento... – apontei para o que fazia com as mãos.
Tadeu olhou por detrás dos meus ombros, e sorriu amigavelmente como se visse um amigo que não visse há muitos anos. Pensei que deveria se tratar de Alfredo que tinha chego, mas logo vi que não era.
— Cacá, há quanto tempo.
Catarina passou ao meu lado e abraçou o meu pai por um longo tempo.
— Dando uma volta? – disse ela ao se separar do abraço.
— Sim, eu... – ele olhou para mim novamente antes de voltar a atenção para ela – vim chamar essa moça para um passeio.
— Mas estou ocupada, então...
— Não tem problema – Catarina deu com os ombros – já chamo o Cristiano para cá.
Suspirei fundo. Não queria acreditar que Catarina queria proporcionar aquele momento entre mim e ele.
— Então, vamos? – Tadeu dizia sério, e ao virar para Catarina, mostrou-se sereno – Cacá, sempre é um prazer ver você. Faça-me o favor de uma visita, qualquer hora.
— Entrarei em contato – ela se despediu com um beijo em seu rosto, e se afastou de nós, sem antes gesticular para que eu continuasse.
Ele estava em um grandioso carro traçado preto, como o visto nos filmes. Rodas cromadas, sujo de lama, parecia ser um carro novo. Abriu a porta de carona para que eu entrasse e a fechou antes que entrasse na sua para guiar o carro. Seguimos por dentro da cidade.
— E para onde vamos?
— Conhecer uns dos terrenos família – ele dizia enquanto andava pela avenida, olhando os sinais.
Fiquei em silêncio, e ele seguiu sério para o tal lugar. Paramos em frente a uma porteira de madeira, no qual ele desceu para abrir e voltou a dirigir, parando em um lugar gramado.
Tinha um grande lago a poucos passos dali, e assim que ele desceu, o segui até o pequeno trapriche que dava pra lá.
Estar em silêncio com ele ao meu lado era estranho, porque ao mesmo tempo que tinha inúmeras perguntas, também não sabia o que dizer. Sua presença me incomodava em seu desconhecido e ele, firme, fitava o horizonte à nossa frente.
— Conheço aquela garota desde que ela usava fraldas.
— Quem? – perguntei, saindo do transe proporcionado pela água e meus pensamentos.
— A Cacá – ele coçava o queixo devagar – e agora ela já é uma mulher formada. Doutora, não é?
— É, acho que é isso...
— Vocês se dão bem? – ele puxava a linha para trás – Você e os meninos?
— Me dou mais com o Cris – minhas respostas eram enfáticas.
— Ele é um menino mais na dele – Tadeu dizia – igual ao pai. Catarina é idêntica ao tio, até na aparência.
Aquele papo familiar fazia minha garganta formigar, assim como a minha pele. Suspirei fundo, olhando para a água que refletia meu reflexo borrado.
— Posso perguntar uma coisa?
— Sim.
— Como vocês realmente se conheceram?
Virei para olhá-lo de perto, e percebi que ele ficou mais sério do que já aparentava.
— Na época, fui pra auxiliar uma filial nossa – ele respirou fundo, cruzando os braços – e Elisa começou a estagiar lá no escritório, então, foi questão de tempo para que nos aproximássemos...
— E o que o senhor falou pra ela? – disse cerrando os olhos – Porque falar que era o dono sei que não falou...
— Que tinha sido transferido e estava estagiando lá também – ele respondeu com frieza.
— Por que o senhor fez isso?
— Tive meus motivos – ele me olhou de relance – podemos conversar sobre isso em outro momento...
— Deve ter tido mesmo – respondi dando com os ombros – e agora, cá estou.
— Uma filha que me esconderam por todo esse tempo... – sua voz era compassada e cheia de mágoa – Até parece que eu era um completo estranho pra elas.
Ele parecia estar cansado com aquilo tanto quanto eu tinha ficado naquele dia. Da mesma forma que isso é novo pra mim, deve ser pra ele na mesma intensidade.
— Só eu sei a raiva que senti naquele dia – ele estava com a feição fechada, raivoso – o que ela estava pensando em te esconder esse tempo todo?
— Acho que ela só não queria atrapalhar você...
— Sei que não é isso – ele respondeu deixando as feições ainda mais fechadas – É porque eu não pude ficar, e caramba... Se eu pudesse, tinha feito muita coisa diferente, Teodora.
Ficamos em silêncio novamente.
— Desculpe ter sido um estúpido contigo naquele dia – ele ficou imóvel, encarando um ponto qualquer à nossa frente – não tive a melhor das reações...
— Não tem problema – era a única coisa que podia dizer. Não queria levar esse incômodo ainda mais adiante.
Ele passou a mão no queixo, pesaroso.
— Sempre quis ter uma filha, Teodora – ele voltou com seu semblante sério – me chateio por ter sido privado disso esses anos todos. Agora, não sei como ser um.
Não esperava que as coisas fossem ser como nos filmes, que as pessoas se olham e ficam: “Nossa, eu passei esse tempo inteiro sem você, agora viveremos juntos e felizes”, mas pelo menos agora estão se tornando menos confusas do que antes.
— Eu ainda vou passar mais uns dias viajando resolvendo umas coisas, mas, logo conseguirei me dar uns dias de folga e... – ele coçou o rosto devagar, pensativo – Pensei em passarmos um tempo juntos. O que acha?
Exasperei, e voltei minha atenção para frente.
— Se assim você quiser, claro.
Ficamos em silêncio. Grilos cantavam ali perto, e vento fazia a água tremer em sua superfície.
— Acho que pode ser legal.
— Eu também acho.
Passou-se muito tempo ali sem dizermos nada além disso. Encarei o horizonte à nossa frente até que seu telefone tocou, ele se afastou e, depois de uma breve discussão, ele sugeriu que fôssemos embora. Abriu a porta do carro para mim e seguimos o caminho de volta. Já devia ser perto da hora do almoço.
— Por que me levou até lá? – perguntei, chamando sua atenção.
— Porque gosto daquele lugar – ele respondia sem desviar o olhar – é silencioso, tem uma vista bonita e um dia será seu.
Não conseguia me acostumar com essa ideia. Era surreal demais e não conseguia ter a real compreensão do que realmente significava ser filha de quem era. Assim que chegamos, ele abriu a porta para que saísse, em mais um do seu gesto de cavalheirismo.
— Apreciei muito o tempo que tivemos juntos – ele disse por fim, me entregando seu telefone – por favor, me dê seu número para que eu possa entrar em contato com você.
Anotei e salvei com meu nome. Ele analisou por alguns instantes, assentiu com a cabeça e entrou no carro de volta.
— Até logo.
Nos cumprimentamos com um aceno. Sem aperto de mão ou um abraço porque sabíamos que não tínhamos intimidade o suficiente pra algo assim. Sabia que aquele homem era meu pai, mas que ainda não era capaz de associar a imagem dele fazendo esse papel.
Enquanto entrava, minha mente continuava absorta dos seus comentários.
Para Tadeu, minha mãe nunca falou que tinha uma filha com ele só como retaliação. No entanto, eu conhecia minha mãe a vida toda e sabia que ela não faria isso por um motivo tão banal, e se o fizesse, seria contra tudo o que sabia dela desde sempre. Alfredo disse que ele sempre quis um filho, e ele disse a mesma coisa, e em como tinha ficado chateado em não saber da minha existência até ali.
Talvez estivesse alguma coisa entre os dois discursos que eu não soubesse. Os dois podiam estar mentindo, ou os dois estariam contando suas próprias verdades. Só conhecia o lado da minha mãe. Cresci e vivi sem ele, não precisava dele. O que precisava era de respostas sobre mim.
Almocei em silêncio e depois, fui tomar banho e me deitei, indo dormir. Era cansativo estar com ele porque não sabia como agir, ou me portar. Tinha medo de fazer besteira, e ter ficado tanto tempo olhando para o nada, sentindo o mormaço em minha pele.
Acordei e jantei com os demais. Cíntia parecia feliz.
— Como foi o passeio? – ela dizia ao passar a salada para mim.
— Normal. Conversamos um pouco.
— Ele nos deu um dinheiro por sua estadia – Alfredo dizia sério – mas, depositamos de volta para ele. Já falamos mais de uma vez que não é despesa nenhuma sua estadia aqui. Ele ficou “Não, eu obrigo vocês a ficar com isso” – ela imitava a voz rouca dele, rindo – mas ele não manda em mim. Onde já se viu isso?
— Vida boa de herdeira é assim – dizia Cristiano com ironia – não faz nada e ganha as coisas assim.
— Tá falando assim por quê? – ela arqueou as sobrancelhas algumas vezes, ainda concentrada no almoço – Até onde eu saiba, quem nunca fez nada aqui é tu.
— Vai se foder, Catarina – ele respondeu com uma raiva genuína na voz – não lembro de...
— Manda eu me foder de novo – ela levantou o garfo pra ele – e aquele teu computador vai conhecer o chão em dois tempos.
— Meninos, chega! – disse Cíntia, enfática.
Ele ficou parado por alguns segundos, até que fechou a cara, respirou fundo e foi pro quarto, batendo a porta com força, podendo ouvir o trinco dela se fechar.
— Desculpe, minha filha, desculpe mesmo... – Cíntia dizia sem reação – o Cristiano, ele... Anda estranho mesmo.
Olhei pra Catarina, que continuava a rir consigo enquanto o pai brigava com ela. Assim que acabamos, gesticulei para que Cíntia e Alfredo se deitassem para descansar. Arrumei as coisas, e encontrei Catarina, que estava no quintal fumando, pensativa.
Nos encaramos por breves segundos até que ela gesticulou para que sentasse ao seu lado.
— Por que você fez isso?
— Cansada desse menino pedante – disse ela entre os ombros – ele está assim porque você dormiu na casa da menina em vez de sair com aqueles amigos esquisitos dele.
Encarava minhas mãos, e passava as unhas na palma da minha mão.
— Acho que eu devo sair daqui. Só estou causando problemas.
— Não acho que deveria – sentia a fumaça ficar cada vez mais presente no ar – ele supera. Só precisa de um tempo pra digerir.
— Mas aqui é a casa de vocês... – dizia envergonhada.
— Deixa ele dormindo na rua uns dois dias que ele volta mudado. Estou te falando, se isso funciona com ratos, funciona com gente.
— Suas ideias são bem radicais – ria do comentário dela.
— Por isso minha vida é dentro de um laboratório, onde posso colocar minhas ideias em prática sem problemas – ela dava um sorriso malicioso, voltando a fumar – e no momento...eu...
Catarina cerrou as sobrancelhas, rindo consigo mesmo. Eu me prestava a olhar com curiosidade para ela.
— Sua presença não é um incômodo.
— Isso é bom?
Ela mantinha o sorriso no rosto ao se levantar, apagando o seu fumo no cinzeiro que ficava ao seu lado.
— Talvez.
Catarina acenou para mim, como um boa noite.
Sozinha, continuei a olhar para a noite enluarada que fazia acima de mim.
Então, meu telefone tocou. Era uma mensagem de Tadeu desculpando pelo horário, mas que tínhamos compromisso pro sábado, e que toda a família estava convidada. Respondi concordando e guardei o telefone de volta.
O chiar dos sapos e dos outros animais, sendo orquestrados pela noite enluarada faziam o coro e, por um instante, ao fechar meus olhos, pude entender a quietude que ele tinha dito.
Fim do capítulo
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edjane04
Em: 02/03/2024
O que será que pensou Catarina?
Essa versão está um tanto diferente da que eu tinha lido antes, e confesso que gosto mais dessa
shoegazer
Em: 02/03/2024
Autora da história
no adiantar dos próximos capítulos, acho que já vamos poder começar a adivinhar o que essa figura tanto pensa...
(também gosto mais dessa, apesar de não lembrar qual era a que estava disponibilizando kkk e a vantagem que devo confessar é que estou em uma parte mais adiantada)
shoegazer
Em: 02/03/2024
Autora da história
vou postar outros dois hoje porque eles se complementam, aí já adianto também pro outro lado, aproveitando o sábado à noite pra quem é mais caseira rs
edjane04
Em: 02/03/2024
Mais dois hoje?!
EBAAAA!!!
Eu tinha lido até quando aparece a avó da Teo. Não vi a versão completa postada em 2021 (fui garota, esqueci de favoritar a história)
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