Entre questões
Chegamos na casa de Tadeu na hora marcada, sem atrasos. Alfredo dizia que ele repudiava atrasos, e ao nos encontrarmos com ele, sua pose era impecável. Bem arrumado, a barba feita mostrava um rosto jovial por detrás da barba pesada, além de estar cheirando bem. Sentado na mesa de fora onde tivemos nosso primeiro embate, tinha em mãos um envelope.
Cumprimentou a com um aceno, Cíntia e Alfredo. Aparentemente, estava tenso como eu.
— Eu não abri – ele mostrou o envelope lacrado – quero fazer isso na sua presença.
Sentei à sua frente, e vi que suas mãos tremiam. Nos olhávamos de forma furtiva. Ele não queria deixar claro que me olhava procurando suas evidentes similaridades assim como eu o olhava.
— Então... – Cíntia gesticulou para que ele prosseguisse.
Tadeu engoliu em seco e abriu o envelope.
Analisou atentamente o que estava escrito ali, e sua surpresa ficou notável quando seus olhos encontraram o final do papel. Com as mãos ainda trêmulas, arrastou o papel em minha direção. Ative-me ao final do papel, onde deveria estar a resposta.
Eu realmente era filha dele, mas, no fundo, aquilo não surpreendia a nenhum de nós dois.
Mesmo naquele momento, não sabia o que fazer com aquilo, ainda mais que agora eu tinha certeza que aquele homem era meu pai. Ele passou a mão no rosto, respirando fundo.
— Então...eu tenho uma filha – Tadeu dizia pausadamente, encarando o papel.
Não respondi nada. Não tinha o que se dizer. Ele se levantou, andando de um lado para o outro.
— Preciso de um tempo pra digerir tudo isso.
Eu também precisava de um tempo para digerir a convicção de que estava olhando para meu pai. Ele respirava fundo, tenso, tamborilando os dedos contra suas pernas, até que parou de andar, resoluto.
— Você não vai embora, certo? – Tadeu olhava em minha direção.
— Eu...não faço ideia – olhava-o com a mesma tensão que ele me olhava.
— Façamos o seguinte... – ele colocava as mãos sob o rosto – Fique mais um tempo aqui com eles que eu vou pensar no que faremos.
— Não tem muito o que se fazer – respondia com desdém.
— Não – ele levou as mãos até a cabeça, jogando o cabelo pra trás – eu tenho que... Me passe o número da Elisa, por favor. Ela se recusa a falar comigo de outros jeitos.
— Claro... – ele me deu seu telefone para que eu anotasse e assim o salvei.
Aquela sensação era tão estranha que mal tinha palavras para ela. Eu olhava para aquele homem, e era a segunda vez que o via, eu não sabia nada dele além do que ouvia, mas sabia que eu compartilhava do mesmo sangue que ele. Não conseguia sentir nada por olhá-lo, como alívio, felicidade ou algo do tipo.
— Amanhã eu vou lá com você, Teodora – ele olhou para mim, desnorteado, e balançou a cabeça, confuso, antes de entrar - não... Se preocupe com isso.
Deus as costas e foi embora. O clima de tensão ainda percorria meu corpo, e fiquei em silencio enquanto saíamos da fazenda. Alfredo ria.
— Como é que ele ainda tinha dúvida que tu era filha dele? – ele balançava a cabeça.
Abaixei minha cabeça, apoiando entre minhas mãos. Senti as mãos de Cíntia me afagar.
— O que foi, querida? Está se sentindo mal?
— Muita coisa pra digerir de uma vez...
— Não fique assim – ela passava os dedos devagar nos meus ombros – tenho certeza que vocês se darão bem.
— O sonho dele era ter uma filha, Téo – Alfredo dizia satisfeito – sei que ele deve estar muito feliz com isso.
Meu estômago embrulhava, minha boca amargava pela tensão. Encostei minha cabeça no ombro de Cíntia, fechei meus olhos e torci para que eu logo chegasse na casa e me deitasse.
Ao chegar, vi Catarina na cozinha junto com Cristiano. Ele arrumava a louça enquanto ela lia sentada na mesa.
— E aí? – Cristiano disse animado ao me ver chegar, mas me sentia muito mal para responder. Prestei-me a acenar com a cabeça e a passos lentos, segui para o quarto e me deitei.
Meu corpo inteiro pesava, e assim que fechei os olhos, dormi.
Alguém tentava me acordar, e quando abri os olhos, percebi que estava tudo parcialmente escuro. Devia ser o final da tarde, e Cristiano estava sentado na cama, balançando meu braço.
— Vim te acordar para comer.
— Não estou com fome...
— Mas tu não comeu nada ainda – ele voltou a balançar meu braço – vamos logo.
Levantei da cama, bagunçando meu cabelo e esfregando meu rosto na tentativa que me espertasse, mas ainda me sentia cansada. Cristiano seguiu na frente, e eu a passos lentos, seguia o caminho. Na mesa, o que era o almoço me aguardava, com uma porção extra de açaí. Provavelmente, tinha comprado na tentativa de me animar, e senti uma pontada de felicidade por essa ação.
Ao sentir o cheiro da comida, a fome veio implacável. Comi o que tinha em questão de minutos, e Cristiano jogava em seu videogame portátil.
— Tá a fim de sair hoje? Comer alguma coisa, sei lá?
— Tenho a sensação de que morri e só meu corpo está aqui... – minha voz parecia estar mais cansada do que imaginava.
— Papai falou que o homem lá e teu pai mesmo – ele começou a andar ao redor – o que já era meio óbvio, mas e aí?
— Ele falou que queria um tempo pra pensar no que fazer – dizia com ironia – só não sei o que ele quis dizer com isso.
— Talvez queira te conhecer melhor, Téo – Cristiano pegava a louça da mesa – pensando em como deve falar ou agir contigo, o que vocês podem fazer junto, essas coisas.
— Você acha? – disse com curiosidade.
— Estou te falando – ele virava para mim, com as mãos ensaboadas.
Dei com os ombros, e o ajudei com a louça.
— Não vai querer mesmo sair? – Cristiano continuava a dizer – Vai fazer bem pra ti. Vou chamar o Lucas, vai ser legal.
— Eu até gostaria, Cris, mas estou cansada demais pra interagir.
— Bem... – ele suspirava, derrotado – tu que sabe.
Fui até a sua direção e o abracei. Ele me envolveu em seus braços magros e me apertou contra o seu corpo.
— Qualquer coisa, sabe que pode contar comigo – Cristiano bagunçou meu cabelo e saiu em direção ao seu quarto.
Voltei para o meu, e acabei cochilando novamente. Tive outro sono sem sonhos, aqueles que você somente apaga e acorda, só que, diferente de antes, eu acordei me sentindo revigorada.
Peguei a toalha e segui em direção ao banheiro. Porém, a música relativamente alta estava tocando mais uma vez. Eu reconheci aquele som, e vinha do quarto de Catarina. Ela sempre estava ouvindo aquele mesmo disco e, quanto mais eu me aproximava da porta entreaberta no corredor, mais o cheiro de incenso se intensificava.
Eu sabia que não deveria olhar para o interior do quarto sabendo que a dona dele estava lá, e sabia que quando alguém está naquele espaço, não quer ser incomodada em seu íntimo momento. Mas a curiosidade foi mais forte que eu entre olhar pela abertura que a porta proporcionava direto para o seu quarto.
Só que não esperava ver o que via. O som tocava alto no quarto, e Catarina estava bastante à vontade, usando um sutiã rendado que uma das alças caía por seu ombro, um short gasto e o cheiro de incenso que queimava dentro do quarto junto com o fumo que ela costumava usar. Estava de olhos fechados, seus óculos quase caíam do seu rosto pela maneira que ela se balançava no ritmo da música, de um lado para o outro. Segurava em uma das mãos uma garrafa de vinho, e despejava aquele conteúdo devagar em seus lábios, descendo para cima e baixo lentamente.
Não conseguia sequer piscar acompanhando seus movimentos. A música tocava alto, ela seguia o seu próprio ritmo e o cheiro embriagador que saía do seu quarto me passava a sensação de que estava sonhando acordada.
Coloquei as mãos contra a minha boca, sem reação para o que estava vendo. Eu, de forma inapropriada, via aquele momento tão particular. Ela seguia cantando a música baixo, com os olhos fechados, sentindo cada momento daquilo, era perceptível em seu rosto, na forma que pressionava as sobrancelhas, o ofego que fugia de sua boca, como se clamasse por aquilo. Balançava de um lado para o outro do quarto, esticando os braços e voltando a beber, ficando de costa para mim. Pude ver sua costa marcada por suas sardas e sinais, o cabelo desgrenhado que caía por ele, e como ela passava as mãos por ele, jogando para cima.
Eu deveria sair dali, mas não conseguia me mover. Quando ela voltou a ficar de frente em minha direção, meu instinto foi de ir para o lado onde ela não pudesse me ver. Sentia que meu coração ia sair da boca só de ter a ideia de que ela tinha me visto a olhando daquela forma. A passos rápidos, fui ao banheiro, tranquei a porta, tirei minhas roupas e liguei o chuveiro.
Deixei a água correr por meu corpo. Sentia-me culpada por ter a visto daquele jeito, mas ainda assim não conseguia tirar aquela cena, segundo por segundo, da minha mente. Fechei os olhos e, grunhindo comigo mesmo na tentativa de esquecer aquilo, terminei meu banho.
Fui para o meu quarto, sem sequer olhar para os lados. Peguei meu telefone, e tinha várias ligações perdidas da minha mãe e uma de Yasmin. Sabendo que não tinha cabeça para conversar com minha mãe sobre o assunto que ela queria, retornei a de Yasmin.
— Alô? Boa noite. Sim, estou de boa, e você? Agora? Tô meio cansada, nem saí com o Cristiano hoje...Não sei, Yas. Você vai passar aqui? É que...
Olhei para a porta. Eu estava sozinha em casa com Catarina naquela noite, novamente. Só que eu não queria estar só, ainda mais com ela. Não sabia como iria conversar o ocorrido com ela, e queria conversar com alguém sobre tudo aquilo. Não queria incomodar seu íntimo momento com meus problemas.
— Sim, vou te esperar.
Desliguei o telefone e me arrumei. Depois de quinze minutos, ouvi alguém me chamar, e reconheci a voz de Yasmin. O som ainda estava alto, e andei devagar para que não pudesse ser notada. Talvez Catarina pensava que estava só em casa, e assim quis deixar que pensasse.
Yasmin estava do lado de fora. Estava produzida e o vento trazia o cheiro agradável que vinha dela. Ao me ver, sorriu e me abraçou, beijando meu rosto.
— Vamos? – segurou em meu braço, e seguimos andando rumo ao destino que ela tinha escolhido para nós.
*
Voltei para a casa no outro dia. Assistimos um filme que ela tinha escolhido, tomamos o vinho que tínhamos comprado no caminho e dormimos juntas, mesmo que não tenha acontecido nada entre nós. Ela me ouviu sobre tudo o que tinha a dizer, e falou que realmente o que se tinha a fazer era esperar, e que não seria de todo ruim ficar mais um tempo aqui e conhece-lo.
Não estava tão animada com a ideia, mas concordei que deveria dar uma chance. Fiz nosso café, conversamos mais um pouco e segui caminhando sozinha. Realmente me senti melhor em ter ido pra lá, conversado e passado esse tempo com ela. Ao chegar, Cíntia me cumprimentou e Alfredo também, porém Cristiano nada falou, saindo da mesa logo após.
Ajudei com a louça, e fui atrás de Cristiano. Bati em sua porta, mas ele não abriu. Bati mais uma vez, e ele abriu, me recepcionando com uma cara de poucos amigos.
— Está com raiva de mim?
— Tem tempo de sair com os outros, mas quando chamo pra sair comigo, não pode falando que está cansada – ele falava voltando a se sentar na cadeira do computador.
— Eu só fui pra casa da Yas conversar e acabei dormindo pra lá, só isso.
— Você pode conversar comigo também, não pode? Ou não vou te entender?
— Não é isso, Cris, é que...
— Ela é só sua amiga mesmo?
Não consegui esconder a surpresa que tive ao ouvir ele dizendo aquela frase. Minha primeira reação foi ficar envergonhada e desviar o olhar. Ele resmungou, balançando a cabeça.
— Ou vocês estão tendo alguma coisa a mais? Ficando, sei lá.
— Não temos nada, Cristiano – respondi encarando o outro lado – Só passamos o tempo juntas.
— Mas, por falta de interesse seu? Porque ela parece muito interessada em ti...
— Por que está me perguntando isso?
Ele respirou fundo, pressionou os lábios e balançou a cabeça.
— Nada não – se virou de volta pro computador – deixa pra lá.
E me ignorou completamente assim que colocou os fones de ouvido. Bem como minha mãe costumava dizer, não se pode ganhar todas as vezes. Encostei a porta e segui com o que tinha que fazer.
Fim do capítulo
Comentar este capítulo:
Marta Andrade dos Santos
Em: 01/03/2024
Tá complicado em Téo só topada.
shoegazer
Em: 02/03/2024
Autora da história
A Téo até agora não está tendo muita sorte com esse pessoal, mas vai fluir (espero)
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