CapÃtulo I
Naquele fim de tarde, percorríamos as ruas tranquilas de São Valeriano na barulhenta caminhonete azul escura de Caleb, meu namorado. Seguíamos para o nosso lugar, o santuário natural coberto pelo manto incandescente do universo, nosso paraíso intocado, ou como as pessoas da cidade simplesmente diriam, a clareira. Minha terra natal, possuía o aspecto pacífico e aconchegante, como o de qualquer outra cidade pequena, ostentado sua arquitetura antiga em pedra e detalhes amadeirados ao longo de seus prédios, e das ruelas estreitas cheias de tendas coloridas, mesas e cadeiras à frente de alguns estabelecimentos. Haviam suntuosos jardins ocupando boa parte da extensa praça principal, que, esporadicamente, servia como palco de eventos regados a música, menus artesanais e decoração extravagante. Tudo isso, compunha o agradável cenário da cidade.
Há poucos metros do nosso destino, paramos o velho carro e pegamos em sua caçamba, alguns itens necessários para o que viemos fazer ali. Seguimos a pé o restante do caminho até o topo da colina em meio a uma conversa trivial. Quem nos conhecia, por costume, não estranhava nossa peculiar relação. Alguns diziam que não éramos um casal convencional, não havia o excesso de sorrisos apaixonados ou troca de carinhos constantes, nem palavras cheias de floreios e galanteios bobos, éramos dois jovens de 23 anos dividindo sonhos e ideais, compartilhando tamanha cumplicidade que estarmos juntos em algo além de amizade, fluiu naturalmente. Nossa cumplicidade tinha a dose certa de segurança e compreensão. Não havia uma só pessoa naquela cidade que conseguia resistir a simpatia que eu chamava de namorado, nem mesmo eu. Caleb Monterraz era completamente o oposto de mim, em todo seu 1,85m, longos e bagunçados cabelos castanho mel, olhos verde folha seca, pele alva. Dono de um sorriso fácil de dentes meio tortos, que enfeitava o rosto de maxilar largo e lábios carnudos. Ele gostava de comidas estranhas, olhar as estrelas e conversar sobre as teorias mais improváveis, fazia os pequenos acontecimentos daquela pacata cidade se tornarem o maior dos espetáculos, contando histórias mirabolantes junto ao pai nas noites de fogueira feitas em seu quintal para os visitantes, como parte da tradição de boas-vindas da cidade. As recitava como se tivesse vivenciado cada uma delas, me causando gargalhadas por seu entusiasmo exagerado.
Sua família era dona da melhor e mais antiga padaria da cidade, a Atelier dos Pães Monterraz, onde era certo que nossos visitantes passassem em algum momento de sua estadia. A casa da sua família vivia cheia e agitada, não apenas pelos cinco filhos alvoroçados, mas pelo espírito acolhedor, onde tudo era motivo de festa. Essa era a essência de Caleb Monterraz. Em completo oposto, havia a minha família, composta por mim, pais excêntricos e um irmão intragável. Tínhamos uma cafeteria que fazia às vezes de um pub para agitar os fins de semana dos moradores locais, lugar onde eu passava a maior parte do tempo presa em livros. Não que eu fosse do tipo antissocial, só era uma pessoa um tanto quanto reservada. Infelizmente, por mais esforçada que eu fosse, a interação social com desconhecidos se mostrava um verdadeiro desafio, na maioria das vezes.
Meus olhos eram tão escuros quanto o céu à noite, minha pele era parda e levemente salpicada de sardas marrom claro, tinha sobrancelhas grossas e longos cabelos ondulados ambos da tonalidade de um castanho escuro, minha estatura mediana só reforçava o quão comum eu era, não tendo nada de muito especial, apenas ambos os braços tracejados de intrincados desenhos que chamavam um pouco de atenção.
Andávamos lado a lado, Caleb e eu, rumo ao destino costumeiro das noites de quinta-feira, para admirar a vista proporcionada pela clareira acima da colina ao norte da cidade. Ali, observávamos as amadas estrelas de Caleb. Assistíamos o show de luzes da cidade, umas se apagando enquanto outras brilhavam insistentemente. Ouvíamos o cantar dos pequenos insetos adorando a calmaria noturna e sentíamos o doce abraço da noite nos envolvendo. Aquele lugar tinha um ar naturalmente aconchegante, arriscaria dizer até mágico. Mesmo estando diante aquela impressionante paisagem, minha atenção não se prendia totalmente a esses detalhes tão comuns e já conhecidos. Há certa distância, quase na divisa da cidade, a imponente figura do único Château da cidade, se destacava. Mesmo sendo ofuscada pela lentidão do cair da noite, meus olhos devoravam seus contornos assimétricos, vagando por cada linha do telhado quebrado em vários lugares, a fachada composta de pedras cinzentas, que imagino um dia ter resplandecido sob as luzes do sol agora estava sendo tomada quase por completo pela vegetação que ao seu redor. O estilo da construção incongruente ornamentada pelas elaboradas torres laterais, pináculos e telhas escuras, lembrava bastante a um castelo medieval. Ainda que tivesse sido esquecido - por quem quer que fosse o dono - a casa permanecia imperiosa, sustentando um charme rústico, totalmente alheia ao passar do tempo.
A parte mais impressionante daquele lugar sempre seria o jardim frontal. Sob os efeitos da noite não podia ser visto totalmente, mas o campo de flores negras se estendia num longo manto escuro por entre o jardim principal, atribuindo um aspecto fúnebre e majestoso a construção. O Château era uma das propriedades mais antigas em São Valeriano, como também a mais temida. Desde pequena, ouviam-se histórias sombrias e um tanto criativas sobre aquele lugar. Alguns diziam que a casa estava viva, ou que era assombrada, enquanto outros, diziam que estava apenas abandonada e malcuidada. Caleb e eu sempre estávamos atentos a cada nova história contada, ele por adorar mistérios, já eu, sentia um leve incômodo quando a tal casa era mencionada. Não sabia o porquê daquele lugar me atrair tanto, mas tinha aquela sensação estranha, como um pedido mudo para me aproximar e desvendar cada mistério que residia por trás de suas portas.
Fim do capítulo
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