CAPITULO XLVIII
Calíope
Não sei onde estava com a cabeça quando concordei com minha irmã. Vai ser difícil descobrir qualquer coisa sobre aquela cobra, especialmente acompanhada da garota. Amkaly tem uma cisma nela desde que fomos designadas para ser uma dupla.
Iara tem o dom de me deixar maluca, e não digo no sentido ruim. Ela me provoca emoções tão avassaladoras que me assustam. Quando me olha com aqueles olhos repuxados, típicos dos nativos dos confins da Amazônia, minha boca fica seca. Só de observar aquele sorriso cínico estampado em seu rosto enquanto me observa em silêncio… Parece que ela quer tirar minha roupa. Ou talvez consiga enxergar através do tecido, só pode ser isso. Ninguém em sã consciência olha para outro ser com tanta luxúria, especialmente quando esse ser caminha pela terra há apenas dezessete anos.
Nunca fomos amigas, o que me deixa arrependida ultimamente. Confesso que a culpa é minha, nunca me aproximei de nenhuma das guerreiras. No início, por estar sempre viajando. Depois, por ter um romance secreto que destruiu minha dignidade e me manteve distante da família para não decepcioná-los quando descobrissem a pessoa sem caráter que eu sou. Fingi tanto e tão bem que até eu acreditei nas mentiras que inventei. Pelo menos até o dia em que emergi da lama onde me chafurdei e pedi ajuda a meu pai para recomeçar.
A indiazinha é a garota mais linda que já vi. Muito alta para os padrões normais de uma fêmea. Aliás, todas as guerreiras chegavam a quase dois metros, independentemente da idade, até mesmo eu. Cresci quando passei
pelo rio que corre ao contrário, fiquei mais alta que minha gêmea Cassandra.
Não canso de admirar seu corpo. Iara tem um corpo espetacular. Cintura fina, bumbum arredondado e firme, pernas longas, exageradamente grossas, de quem pratica exercícios desde que nasceu. O que mais me chama atenção são seus olhos. Nunca em toda minha vida tinha visto olhos tão intrigantes. O olho direito tem a íris preta como nanquim, todo salpicado de ouro derretido. O outro era ainda mais intrigante, com a íris dourada salpicada de estrelas. Das mesmas cores da sua gêmea, apenas de lados diferentes.
O olhar dela me desnuda por completo, faz eu me sentir sem roupa. Devo estar muito carente para sentir essas coisas só de estar perto da garota. Ainda assim, se dependesse de mim, a mandaria de volta para o inferno de onde tenho certeza que veio para me obrigar a repensar na minha vida de merd* e enxergar o quanto fui sem escrúpulos, egoísta e mentirosa, fiquei cega de paixão, e não vi que estava sendo manipulada.
— O que foi, praga ruim? Por que está me olhando desse jeito? — O modo como ela estava parada, olhando para minha boca com aquele sorriso cínico cheio de promessas, me tirava do sério.
— Não posso dizer o que quero fazer com você neste momento.como também não concordo com o julgamento que faz de você mesma, esta sendo muito cruel consigo mesma.
Eu já estava perdendo a paciência. Iara só virou a cabeça, olhando para o nada. A frieza em seu olhar era tão linda quanto a morte. Ela se aproximou rápido, não me dando tempo para fugir ou me defender, e prendeu minhas duas mãos atrás do meu corpo. Com a outra mão me prendia pela nuca.
Ao longe, vi Amkaly e Camile caminhando na beira da praia em nossa direção. Foi só então que percebi que a diabinha estava abraçada a mim, não
com segundas intenções, mas para desafiar a loba que agora caminhava mais rápido e com semblante de ódio da vida, como sempre.
Ficamos nos encarando. Eu não podia deixar isso acontecer. Mesmo não gostando de metade das provocações dela comigo, não tinha o direito de passar a mensagem errada.
Amkaly desenvolvera ao longo dos anos uma acidez no trato com as pessoas. Não havia bondade em nada do que fazia ou dizia. Ao contrário, era maldosa e não media palavras para menosprezar quem quer que fosse. Só de ver Iara me abraçando era o suficiente para receber suas grosserias. Ela se achava minha dona e dona da minha irmã, o que nunca foi verdade. Só agora percebo que ela se aproximou de mim por minha semelhança com Nara e pelo prazer de manipular a nós duas.
Com toda irritação que Iara me causava, não tinha dúvida de que era uma garota pura, sem as maldades do mundo que eu e aquelas duas tão bem conhecíamos.
— Me solta, ordinária. — Ela arregalou os olhos, tanto que criou rugas na testa com o gesto, como se estivesse satisfeita em me tirar do sério. Iara riu, aproximando mais o corpo e se esfregando de forma muito sensual, impossível para uma criança.
— Você é muito atrevida, já te disseram isso? — Sussurrei, bem próximo à sua boca.
— Atrevida é meu sobrenome.
Iara sorriu e passou a língua nos lábios, quase roçando os meus. Eu sabia que ela queria me beijar, eu também tinha a mesma vontade desde a primeira vez em que ficamos próximas, no dia do treinamento de invisibilidade em que
perdi o controle. Quando incendiei no ar, ela veio transformada em uma onda de água gelada, toda faceira. Se esfregou em toda parte do meu corpo, que a recebeu gostando do contato. Ainda que eu estivesse em brasa, não foi o suficiente para queimar a garota.
— Não vou te beijar, foguinho. Não agora, com sua ex na plateia querendo fuder com tudo. Mas vou, sim, sentir o seu gosto quando chegar o momento.
— Vai sonhando. Cresce, garota, vire gente. Quem sabe assim eu te queira.
— Nunca diga “dessa água não beberei”, porque eu vou matar a sua sede. Pode escrever o que estou dizendo.
Gargalhei alto. Não podia deixá-la ver que fiquei lisonjeada com as palavras.
— Quando esse dia chegar, você será meu banquete, e eu vou provar de tudo. Cada canto do seu corpo. Vou fazer você chorar de prazer na hora do gozo.
— Te enxerga, garota! — Interrompi, realmente abalada com sua confissão. Ela não tinha como saber de como me sentia na hora do sex*, meus escudos estavam erguidos. Fiz um esforço tremendo para não demonstrar que essas palavras atrevidas estavam me deixando tonta. Eu não estava acostumada com essa avalanche de sinceridade e desejo.
— Eu prometo a você que, quando eu fizer isso, será para o seu e o meu prazer, nunca para os olhos de seres com mentes doentias como a dela.
Fiquei sem argumento, iara estava me virando do avesso com sua sinceridade.
— E também porque você vai desejar estar comigo tanto quanto eu desejo estar contigo.
Que atrevida! No entanto, suas palavras acenderam uma chama dentro de mim. Escondi o quanto pude, não queria me envolver com ninguém.
— Vai sonhando, esse dia nunca vai chegar. Agora seja uma criança educada e solte a tia Calíope.
Eu sabia que ela não gostava de ser tratada como criança, por isso caprichei no tom de voz condescente. Tive o cuidado de examinar mais uma vez os escudos, não podia correr o risco de ela ler meus pensamentos. Porque tínhamos essa ligação, eu não sabia, e gostaria que continuasse sem saber.
— Eu só quero, por enquanto, deixar aquela prostituta saber que nunca mais vai poder encostar um dedo em você sem sua permissão.
Mesmo fosse bonitinho como ela me defendia, era desnecessário. Sei fazer isso sozinha.
Iara estava entrando em um terreno perigoso. Já tive tantos amantes que perdi as contas. Já fiz tantas coisas, passei por tantas mãos e bocas, que só de pensar em beijá-la ficava apavorada. Sei que vou manchar sua pureza. Uma criança recém-saída que mal saiu das fraldas não imagina a vida que tive antes de me juntar ao grupo.
— Quem disse que eu quero te beijar, criancinha? — Perguntei, olhando com relutância para os lados onde a dupla se aproximava.
— Seu cheiro de loba no cio denuncia cada vez que encosto em você. Se duvidar, posso meter a mão dentro da sua calcinha e mostrar o quanto está molhada. Garanto que não é pela cachorra da Amkaly, você tem tesão em mim. Mas, como disse, no dia em que quiser saber quantos gozos posso tirar de você, é só me pedir.
— Só na puta que pariu! Se enxerga, pirralha!
A empurrei para me soltar, mas a desgraçada se esfregava em mim como prova do que afirmava. Ela estava certa, é claro, eu queimava de desejo como nunca antes fui capaz de sentir com tanta intensidade. Queria sua boca em toda parte do meu corpo, mas nunca iria admitir.
— Olha só! Nunca pensei que você fosse se contentar com amostra grátis, Calíope. — Amkaly comentou com um sorriso maldoso.
Fiquei branca com a grosseria. Iara olhou para ela, mas não me soltou.
— Logo você, uma loba experiente que já teve os melhores amantes, agora se contenta com essa aberração. Estou decepcionada.
A calma com que Iara se portava era assustadora. Em seus olhos havia puro gelo quando respondeu:
— O que você entende por aberração, querida? — Iara sabia que isso desestabilizaria Amkaly. Afinal, não era segredo para ninguém que ela tinha sido modificada nas mãos do pai louco ao tentar criar a raça perfeita, humanos de vida longa e sem doenças. Iara me abraçou mais forte.
Eu poderia ter amado o seu atrevimento não fosse o constrangimento de ver o olhar que deslizou sobre meu corpo e a língua passando vagarosamente pelos lábios de forma sensual.
— Acho que empatamos. Eu também fiquei surpresa quando descobri que ela foi amante de um traste desprezível como você.
Amkaly não pareceu ofendida.
— Ela nunca reclamou. Aliás, já ouviu os sons que Calíope faz quando está goz*ndo? — Empalideci. Não sabia onde colocar a cara de tanta
vergonha. Uma coisa tão íntima que aconteceu quando estávamos juntas foi jogado para quem quiser ouvir sem um pingo de consideração.
— Uma fêmea como essa aqui — Iara beijou carinhosamente meu nariz — não sei definir se foi por vergonha, um pouco de educação ou por respeito, mas eu fiquei quieta deixando que a lobinha assumisse o controle — ela continuou o que dizia — fêmeas perfeitas para o sex* como Calíope costumam assumir o controle da foda quando sentem que estão sendo mal comidas. Elas mostram como querem ser tocadas, com gestos e gemidos. Acredito que na maioria das vezes ela assumiu por você não saber como fazê-la goz*r.
Segurei a gargalhada para não criar mais confusão. Amkaly ameaçou partir para cima de Iara, que sorria como uma louca e insultava a outra. Camile segurou no braço da sua amiga e tentou pará-la.
— Você mereceu, Amkaly. Não tinha porque ofender a sua ex. Qual o problema de ela estar com uma garota que, a mim, parece saber bem como tratar uma fêmea?
— Calíope não está com ela. Ela gosta de mim, sempre gostou, só está com raiva do que aconteceu na boate.
Amkaly não tinha jeito, só via o que queria. Não acreditava que eu não queria mais aquela vida que o que sinto por ela agora não passa de uma frágil amizade prestes a se despedaçar. Estava pronta para revidar quando Iara apertou minha mão e tomou a frente.
— O que vocês querem? Se veio ver a sua ex comigo, já viu, agora se manda.
— Estou à procura da sua irmã, Calíope, sabe onde ela está? — Camile perguntou, ainda segurando Amkaly.
— Foi ao mercado de peixes. Qual o problema? — Menti. Eu jamais iria dizer que Nara estava na mata com a filha e sua companheira procurando rastros da cobra.
— Estou ouvindo, Calíope. Estou aqui atrás de vocês, estamos indo para as grutas. Até agora não encontramos nada, pergunte se posso ir na casa dela.
Do coração eu sei que nunca morrerei. O fato de Nara estar ouvindo a conversa significava que tinha escutado as ofensas que Amkaly fez a mim. E, pior, gritar que fui sua amante.
— Darei seu recado e peço a ela para te procurar.
As duas se retiraram, iniciando uma discussão que o vento levou para longe.
Camille olhou mais uma vez e saiu arrastando Amkaly que discutia, só não dava para ouvir porque estavam contra o vento.
— Iara, minha irmã acabou de falar pelo nosso laço, e sei que você também ouviu. Por que ela — Apontei para Amkaly, já distante. — não escuta, assim como nós?
Iara finalmente me soltou e me puxou para sentar ao seu lado. A areia morna não era nada comparada ao calor de seu corpo.
— Minha mãe falou que está relacionado a como cada um escolhe viver sua vida. Parte da magia dela vai desaparecendo até chegar o dia em que terá somente o dom de se transformar em humana.
— Você não acha isso cruel? Perder parte da sua vida só porque não quer a vida que os outros têm? Depois que passei pelo rio foi como se uma venda fosse arrancada dos meus olhos, eu gosto de ser o que sou.
— Então você já sabe a resposta. Amkaly nunca gostou e aceitou o nosso povo, não gosta de ser loba. Certa vez, quando passei seis meses nas escolas humanas, tive uma professora que dizia “Deus dá. Se não souber usar, Deus tira.” Fiquei me perguntando o que ele poderia tirar, eles já não têm magia. No nosso povo o estrago é grande.
Ficamos em silêncio por um tempo, até que ela pediu:
— Está na hora de contar como se envolveu com Amkaly.
Fim do capítulo
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