Desistência
Uma centena de papéis coloridos picotados enfeitam a bancada de madeira, organizados por cores e espalhados pela superfície, alguns tentam fugir com o impulso fraco das brisas, que fazem a loira borbulhar de raiva ao mesmo tempo que aliviam o calor crescente de um dia típico de verão. Ela suspira profundamente e volta a recortar o papel cartão verde, levemente irritada, um pouco frustrada e totalmente chateada. A outra mulher percebe isso, a conhece com a palma da mão, e ri.
- O que aconteceu dessa vez? - ela pergunta, deixando duas latas decoradas cheias de pincéis em cima de outra bancada - Quero dizer, você só fica assim quando envolve uma certa pessoa, ruiva, de olhos verdes, meio mau humorada.
- Ela está noiva, Mari. - sua resposta sai como um sussurro, amarga em dor e raiva - Noiva... do Amauri. Me contou hoje de manhã, depois de passar a noite na minha casa.
- Aquela filha da puta!
Como uma irmã mais velha, é claro que Marina seria protetora com sua irmãzinha, aquela desde sempre excessivamente gentil e compreensiva, até mesmo quando não há necessidade de ser. Acompanhou de perto o início do "relacionamento" das duas, foi para quem Marcela ligou no dia seguinte ao acontecimento da bebedeira e em seu colo onde chorou poucos meses depois por um amor platônico, também quem quase gritou para ela desistir de tudo, não aguentando mais vê-la sofrer dessa forma. Era como assistir um ciclo vicioso e Diana Albuquerque, neste cenário, a droga. Viciante, prazerosa, eloquente, e altamente prejudicial. Arrastando com ela todas as expectativas e sonhos de quem lhe ama, se plantando como uma sente em coração fértil, se esperando flores e belos arranjos ao ser bem cuidada para no final de cada estação entregar nada além de espinhos.
- Celinha... - chama após um longo minuto de silêncio - Será que não é um aviso para você desistir?
- De Diana?
- Não, do príncipe da Inglaterra. - e não consegue deixar de rolar os olhos - Claro que de Diana, ela apenas te faz de otária, toda vez que ela te dá uma migalha de esperança você se agarra e fica assim. Está na hora de virar a página.
- Mas...
- Sem mas, ou desculpas. Marcela, você é muito melhor que isso e qualquer pessoa estaria aos seus pés se você quisesse. Hoje em dia tem Tinder, você já usou isso por acaso? Bares, aqueles encontros às cegas, São Paulo é uma cidade gigantesca. - ela divaga sobre formas de encontrar alguém, um namorado, namorada ou apenas alguém para dormir, talvez um parceiro para a vida - E há de ter alguém melhor que aquela mulher, que te ofereça mais do que apenas sex*, que te ofereça amor de verdade e alguma estabilidade. Você é mãe, tem que pensar no Theo também.
- Eu penso nele, sempre.
- Então dê um basta nisso, já passou da hora. - há uma longa pausa sem resposta e ela respira profundamente, então verifica o horário no relógio - Bem, meus clientes já estão chegando.
- Claro. - Marcela entende e concorda, nem mesmo ela sabe o que dizer, porém as palavras da irmã lhe atingiram direto no peito.
Ela larga a tesoura e se levanta, ajeitando as roupas com as mãos levemente suadas, mantendo o olhar baixo o tempo todo sem coragem de encarar a verdade que Marina faz questão de jogar na sua cara. No fundo sabe que, apesar de tudo e de todos os anos que se passaram, ela está certa. E silenciosamente agradece a sinceridade qual sempre teve, assim como a lealdade de nunca ter contado qualquer um de seus segredos ou sequer citado isso, Diana sequer imagina. Está prestes a sair, inundada em seus pensamentos profundos, quando sente braços ao seu redor em um abraço gentil, logo sente ser apertada e um beijo suave na têmpora. Sua irmã é assim, a mesma mão que dá o tapa de realidade é a mesma que a segura carinhosamente no meio do caos.
- Ô Celinha, reflita sobre o que estou te falando, só te quero o bem e para meu sobrinho também.
Uma das primeiras coisas que os funcionários de Dolce Felicità percebem quando a chefe adentra a porta de vidro do prédio é a tensão que carrega consigo, como uma nuvem que a segue a cada passo e alcança qualquer um que ouse se aproximar. Mesmo com a usual personalidade sóbria e profissionalismo estrito, nunca criou barreiras entre ela e eles antes, desta vez Diana os fuzila com um simples olhar no momento em que dão um passo em sua direção. Sua assistente de anos pensa duas vezes antes de cogitar a seguir depois que ela bate à porta do escritório, não consegue decidir se liga pelo interfone, bate na porta ou espera que seja solicitada. Decidindo pelo segundo, é só levantar que sente as pernas tremerem por completo e as palavras se enrolarem na ponta da língua enquanto ensaia um início de conversa, que some de repente ao ser autorizada a entrar. Camila nem percebe, mas prende a respiração. A empresária está lívida, o colo do peito corado, maxilar tensionado e o corpo visivelmente rígido. Qualquer que seja a coisa que a incomoda já a tomou por completo e tomou o melhor, a jovem pensa consigo mesma.
- Bom dia! Sra. Albuquerque, precisa de algo? - tenta iniciar um tipo de conversa, optando por um cumprimento convencional - Café? - e apela para o ponto fraco dela ao não obter resposta alguma.
- Não! - ela revira os olhos e apoia os cotovelos na escrivaninha, esfregando as pontas dos dedos na cabeça para aliviar uma pequena pressão chata se formando - Na verdade, sim. Amauri pode me ligar, então invente qualquer desculpa, não quero conversar com ninguém hoje.
- Certo. Mais alguma coisa?
- Marcela já chegou? - os olhos verdes se erguem quase que por instinto e um tipo de expectativa.
- Ainda não. Ela também não avisou sobre atrasos. - sussurra, incerta se o que diz vai agradá-la, temendo enfrentar a ira da fera - Ah, Silvia Ventura ligou e perguntou se podemos adiantar a reunião online, por causa da diferença de fuso horário e alguns imprevistos.
- Tanto faz. Apenas garanta que Marcela esteja aqui. - com um sinal de mão dispensa a assistente e volta o olhar para o computador.
As tentativas de se concentrar no trabalho se tornam cada vez mais frustradas com o passar dos minutos, sua mente voa longe em todos os recentes acontecimentos, a imagem do namorado, agora noivo, surgindo e com ele um anel, peça que usa há um dia no dedo anelar da mão esquerda. E difícil de se acostumar com a sensação estranha de tê-lo ali, não é uma sensação incômoda, nem desgostosa, apenas é a mesma sensação de usar um anel comum sabendo que deveria sentir e ter... significado. Diana suspira, caindo contra a cadeira e cá está a mesma pressão anterior, mais forte. Fecha os olhos, buscando uma forma de alívio e dissipar todos os pensamentos que insistem em lhe perseguir, no lugar dos cabelos negros e roupas neutras de Amauri surge outra imagem, cheia de formas, cores e um rosto conhecido. É outra coisa que lhe incomoda. Elas. Algo que tem que acabar, na verdade já deveria ter acabado faz tempo, entretanto é diferente, ela tem um anel, uma promessa de compromisso e quatro décadas. Os temidos 40 anos e a chance de se casar, possibilidade que havia descartado até o dia anterior.
- O que você fez que deixou todos com tanto medo? - a voz conhecida a tira do devaneio e a faz pular na cadeira de susto, nem percebeu que alguém havia entrado - A Camila me ligou quase 100 vezes e disse que você mandou. Algum problema?
- Silvia adiantou a reunião. - mente descaradamente, não é algo de urgência ou motivo suficiente para a importunar - E onde diabos você estava?
- Com Marina.
- As 10 da manhã?! - ela exaspera, mais irritada do que já estava sem razão alguma - Você também é sócia dessa empresa, deveria estar aqui assim como eu.
- Minoritária, mas você tem razão. Acabei perdendo a hora. - a loira dá os ombros e se senta na poltrona em frente a outra mulher - E consegui chegar a tempo.
- Do que?
- A reunião, ué. É por isso que estou na sua sala. - Marcela ri ao perceber quão desligada ela está e aponta para o computador - Reunião. Silvia. 10:20. Nova filial.
- Ah sim.
Antes de abrir o Skype, a ruiva pragueja a assistente uma centena de vezes, esquecendo-se de que não deu horário algum e deixou por conta dela. Para uma pessoa comum abrir um aplicativo de reuniões não é tão difícil, exceto se você é uma negação da tecnologia e imã de maus bocados digitais, igual as pessoas que não conseguem fritar um ovo pois atraem o óleo apenas em se aproximar. Com muito esforço, mais em não quebrar o computado do que logar no aplicativo, ela consegue entrar, se já não bastasse toda a humilhação em ser derrotada por uma máquina ainda foi assistida pela amiga que ao invés de ajudar preferiu assistir e se divertir.
- Eu estou apostando em Cascais, é um dos lugares favoritos de Silvia. - uma cadeira é posta ao lado da de Diana e a mais nova começa a divagar, tentando ignorar a proximidade em que estão, ou seja, ignorar qualquer coisa que sente para seguir os conselhos da irmã - E é um ótimo lugar para uma filial, rico culturalmente e com um grande fluxo de turistas. Se eu não me engano o pai dela nasceu lá. A arquitetura e a culi...
- Já fomos para Cascais. - a empresária a corta, sem paciência para conversas triviais que envolvam outras pessoas - E não foi nada demais.
- Eu gostei.
As duas se encaram e o silêncio desconfortável toma conta do ambiente, com um suspiro derrotado Marcela desvia o olhar para o computador e aperta a tecla para entrar na chamada, mesmo que ninguém esteja nela ainda. Internamente deseja com todas as forças que Silvia ou sua assistente apareçam logo na tela, lhe salvem dessa situação constrangedora. Após alguns minutos, entediada e procurando algo para se distrair da tensão, busca o celular no bolso, abrindo a sessão de aplicativos, vagando lentamente pelos ícones, então pelas notificações, não há nada de novo no WhatsApp ou Instagram, está prestes a desligar a tela quando um som desconhecido repentino a faz pular, uma notificação desce. Tinder. Sua irmã praticamente a obrigou a instalar e criar um perfil, na frente dela, antes de sair para trabalhar. Diana se vira para ela imediatamente, olhos descrentes e lábios entreabertos em choque.
- O que você...
Outro som surge, a videochamada foi conectada. Ambas voltam a focar no computador, uma mulher bem vestida surge, cabelos castanhos até os ombros, olhos amendoados cor de avelã e lábios fartos, ela parece cansada, mesmo assim sorri quando vê a dupla. Elas haviam se conhecido em uma viagem de turismo e, no meio de uma conversa casual, descobriram que poderiam fazer um bom negócio internacional, a inteligência de Diana e o carisma de Marcela a cativaram.
- Oi, desculpem pelo atraso, estávamos a arrumar a nova montra. Mal abrimos e já tens muitos gajos e gajas na bicha - ela se apressa a dizer, com o português brasileiro misturado ao forte sotaque, as mulheres ficam confusas - A exposição dos produtos. Pessoas na... fila?!
- Ahhh... - elas respondem em uníssono, finalmente entendo o que ela estava tentando dizer - Bem, então vamos iniciar a reunião. - Diana continua a falar, colocando uma mão sobre e outra sob a mesa, dedos descansando no joelho da loira.
Elas se encaram por um milésimo de segundo antes de voltarem toda a atenção exclusivamente a investidora, fingindo que a tensão que está corroendo seus ossos não as afeta. Que a manhã, assim como a noite anterior, não existiu. Mais uma vez entram no velho papel de apenas sócias, as melhores amigas que um dia idealizaram uma confeitaria e da confeitaria nasceu a fábrica, na mesma época em que, secretamente, a natureza de seu relacionamento também.
A reunião ocorre bem, mais do que elas esperavam, às vezes a pequena barreira do idioma e diferenças de português confundem ambas as partes, depois de mais de um ano em contato finalmente estão começando a se entender melhor. Assim como Marcela havia suposto, Silvia sugeriu Cascais e parecia realmente animada com a possibilidade de encantar não apenas seus conterrâneos, mas também turistas, com o melhor da confeitaria brasileira. Uma parceria que viria a instalação da primeira filial internacional. A ruiva controla o próprio temperamento em comparação as outras duas mulheres que ficaram realmente eufóricas compartilhando ideias e com as possibilidades que estão se abrindo aos poucos, em alguns momentos até mesmo se manteve calada apenas as observando interagir com empolgação e cumplicidade. Pelo menos era no que estava focando, até os olhos pousarem no sorriso brilhante, com uma fileira perfeita de dentes perolados, e os olhos irritantemente expressivos, a pele suave, as pequenas marcas no rosto e as pintinhas suaves espalhadas por cada parte do corpo, fazendo uma trilha que ela conhece de cor, os beijos vagarosos se iniciam naquele ponto suave atrás da orelha, onde uma pintinha paira sozinha, e termina na parte de trás da canela, onde é bom de morder e provocar cosquinhas. Ela retorna o olhar para o pescoço, levemente suado por enfrentar o calor atípico de São Paulo, a base esmaecendo e aos poucos revelando tons de roxo e vermelho, seus olhos se arregalam ao perceber o quão recentes são ao mesmo tempo em que sente alívio ao concluir que foram feitas por ela mesma. Não haveria como ser obra de outra pessoa... exceto se pela manhã em que a passou desaparecida.
- Diana? - ela sai de seu devaneio momentâneo ao ser chamada por Marcela, só então percebe que a vídeo chamada foi desconectada - Você está bem? Por acaso ouviu o que Silvia disse?
- Sim, sim, claro!
- E?
- Ela disse o que ela disse. - responde simplesmente, dando de ombros.
- Silvia vai passar uma temporada no Brasil, provavelmente no próximo mês e antes da instalação da nova filial. - a empresária repassa um rápido resumo dos últimos minutos de conversa que perdera - Ela quer viajar para o Rio de Janeiro conosco.
- É um bom plano de férias, mas Amauri e eu já temos uma viagem programada.
- Legal! - é tudo o que Marcela diz, em seguida começa a se levantar, por mais que queira manter a paz entre elas e esquecer a mulher romanticamente, não se sente pronta e nem disposta a conversar sobre tais coisas, ainda não - Eu estou indo para o meu escritório. Silvia me pediu para analisar os possíveis locais para alugar, é engraçado quando ela chama de arrendamento.
- Às vezes eu não faço ideia do que al fala, só vocês duas se entendem nessa via de mão dupla entre português.
- Sorte a nossa que sim. - ela brinca e solta um suspiro surpreso ao sentir sua mão sendo agarrada, a puxando para baixo novamente, a conduzindo para o colo da mais velha, braços macios circulando sua cintura, dedos ágeis vagando pelo tecido - Diana...
- Sim, querida? - as palavras são sussurradas contra o pescoço sensível, arrancando um gemido suave, por mais que Marcela tente resistir não consegue reunir forças o suficiente para sair das garras dela, está a sua mercê novamente.
Os lábios perfeitamente pintados de vermelho alcançam aquele ponto atrás da orelha, deixando uma marca suave, e desce fazendo uma trilha de beijos pelo pescoço. Uma mão percorre as curvas em busca da barra da camiseta, apertando a pele coberta, e a outra alcança os cabelos médios, agarrando um punhado, usando para puxar e dar melhor acesso ao pescoço exposto. Diana raspa os dentes na curva do pescoço e ch*pa o local, satisfeita ao perceber que a sensibilidade faz a marca aparecer quase instantaneamente e tende a escurecer. Ela se afasta por alguns segundos, admirando sua obra de arte estampada no corpo que possui. E é tomada por uma repentina vontade, quase animal, sem cerimônia agarra a barra da peça de roupa e a puxa para cima, deixando os seios médios perfeitamente redondos parcialmente à mostra, pobremente cobertos por um sutiã de renda, logo puxado para baixo. Não há pudor quando abocanha os montes e suga cada parte, das pequenas estrias na base até os mamilos endurecidos, a língua sedosa se enrola em um deles, ch*pando avidamente e o deixa mordiscando, apenas para trabalhar no outro.
- Nós não po... - a loira protesta em vão, seus desejos são opostos das palavras que mal consegue pronunciar, pois é calada pelos lábios macios contra os dela, sendo dominada e se sentindo derreter sob o toque experiente.
- Você pensa demais, Mar.
Elas se separam, encarando uma à outra, castanho no verde, nublados de luxuria e desejos à sombra de quem são atrás de portas fechadas. Se mantêm assim sem nem perceber, apenas admirando uma à outra, gravando os pequenos detalhes faciais e as mínimas reações que conseguem causar, como uma fotografia para manter para si mesmas. Um último momento. Para sempre, eternizado em uma simples memória. Marcela se inclina e a beija, desta vez é calmo, suave e cheia de emoção, quase lhe dói sentir que é retribuída. Pode dizer por cada palavra, toque e ação direcionada a ela, mas não entende de o porquê continuar assim, nas sombras...
- Por que eu não posso ser sua? - ela faz a pergunta que está presa em sua garganta há quase cinco anos e a assombra.
- O que?
- Você me ama, isso é fato, me ama carnalmente e sei que emocionalmente também, então por que não posso simplesmente ser sua?
- Meu coração já pertence a uma pessoa, e não é a você. - a ruiva sussurra, ainda em estado de choque pela situação repentina, mas com a resposta na ponta da língua - Olha...
- Está tudo bem, eu entendo. Eu sinto que já tentei demais, muito antes de seu noivo. Só não quero continuar assim, não é justo...
- O que você quer dizer? - a CEO arregala os olhos e sente o coração dar um pulo errado com essas palavras, tinha consciência de que algum dia chegaria, apenas não esperava que tão cedo.
Como resposta, sente ser beijada novamente e se rende ao contato, fechando os olhos prazerosa e apreciando cada segundo. Agora há um fim para algo que se iniciou e virou rotina anos antes. Ambas têm a certeza disso.
- Que eu desisto, Diana. Finalmente desisto de você, de alguma dia sermos um nós.
Fim do capítulo
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