CAPITULO 18
CAPÍTULO DEZOITO
NARA SHIVA
Abri a porta da sala que agora também era ocupada pela nova diretora. Gilles aceitou finalmente o convite para ser a encarregada da academia. Trazia em mãos um envelope amarelo que continha as fotos de dois assassinatos com o mesmo requinte de crueldade dos que aconteceram na reserva de Joinville, onde Darius vivia há mais de meio milênio. As fotos datam de quinze anos atrás.
Na mesa da Gilles, sentado na cadeira à sua frente, estava Irasfil, e Nahemah, de costas para a porta, sentada na ponta da mesa. Os três conversavam sobre as aventuras da filha do demônio com um anjo quando vivia aprontando no tártaro, seu lar durante a infância e adolescência, antes de começar a fugir para o meio dos humanos, a conversa parecia ser sobre algo agradável, deduzi diante das gargalhadas sonoras. Quando entrei, seus olhos cravaram no que estava em minhas mãos.
Deixei o envelope na mesa sob o olhar curioso do trio que calou repentinamente e passaram a acompanhar cada passo que eu dava. Fui atrás de um café bem forte. Estava sedenta por um, saí sem comer e na casa da Esther o café da manhã ainda não estava pronto. Em Salém não temos essas modernidades das cidades. Nada de restaurante, churrascaria, pizzaria ou loja de cafezinho. Somente na reserva do meu pai, na parte turística destinada a humanos, de onde eles vinham passar as férias e encher nossos cofres com o seu dinheiro, mas era longe e eu tinha pressa.
Voltei à minha mesa e soprei o café para esfriar, o aroma delicioso tomava conta da sala. Irasfil e Nahemah aguardavam a ordem, com os olhos indiquei o envelope para eles ficarem a vontade, passei a me dedicar só em tomar o líquido maravilhoso saboreando cada gota, fiquei observando em silêncio as fotos passarem de uma mão a outra e voltar a passar repetidas vezes as fotos espalhadas na mesa. Nos dois casos, dos corpos foram retirados os órgãos como os da reserva de Joinville, mas estes estavam com dois pequenos orifícios, no pescoço e pulsos, o que não não vi nos corpos encontrados em Joinville.
―Irasfil, as fotos dos outros três corpos de Joinville continuam aí no seu computador?
Mal perguntei, os dois já estavam de olhos vidrados na tela enquanto dedos ágeis digitava no teclado,Nahemar virou o notebook de frente para mim expondo as três fotos lado a lado.
― O que estamos procurando?― Irasfil olhava para mim e para a tela em busca de respostas.
―Veja!―espalhei as fotos impressas sobre a mesa― Nessas aqui tem pequenos furos nos pulsos e pescoço, nessas vitimas aqui eu não vejo, apesar de ter o mesmo padrão, ou seja, retiraram os órgãos interno,o cérebro e o sangue drenado.
― Eu nem sei o que pensar. ― Nahemah afastou as fotos para o lado, abrindo para depositar a lupa em sua mão. ― Ninguém no reino do meu pai está caçando, todos os andares estão com superlotação graças à pandemia e também estamos em tempo de trégua, as coisas estão paradas. Eles estão obedecendo à coleta seletiva, quando os ônibus sobem para terra a lista já está completa e ninguém está trabalhando na limpeza, eu mesma verifiquei. E do seu lado, anjinho? ― Ela sempre se dirigia a Irasfil como anjinho, depreciativa, mas ele não se incomodava.
― Nada. Lá em cima não sabem de nada, Amenadiel disse por alto que deveria ser coisa de “seres da escuridão” ou de magia negra. ― Ele fez o sinal da cruz, costume que trouxe quando chegou na reserva.
O contraste entre os dois é gritante, mas com certeza são dois belos exemplares de humanos. Israfil era dono de um corpo espetacular, o seu tanquinho em conjunto com seu sorriso charmoso faziam as mulheres caírem a seus pés. A pele negra, olhos verdes e cabelos compridos combinavam realmente com ele. Nahemah, no entanto, tinha cabelo curto e loiro recheado de mechas coloridas. Era claro que se orgulhava de sua aparência, acentuando-a com seu batom escuro e alongamento de cílios, mas nunca cobria as inúmeras sardas que pintavam seu rosto. Seu sorriso funcionava como mágica, encantava qualquer um, até mesmo eu. Se já não tivesse uma companheira…
― Essas perfurações parecem mordidas pelo tamanho, eu diria que são de cobras, mas elas não arrancam os órgãos de ninguém.―Nahemar falava de cabeça baixa concentrada nas fotos.
― Não vejo outra alternativa a não ser organizar um grupo e viajar para a reserva do Darius. Vamos investigar lá mesmo, antes que esse problema bata na nossa porta. ― Falei, juntando as fotos para guardá-las no envelope.
― Vou selecionar as guerreiras que estão prontas para esse tipo de coisa. Leve a Calíope com você, já está na hora dela enfrentar seus pesadelos. Outra coisa, somente as guerreiras além da sua beta devem saber o real motivo da viagem. ― Nahemah aconselhou e Irasfil concordou. Mas havia algo que ela falou que chamou minha atenção.
— Que pesadelos são esses que a Calíope tem de enfrentar?
― Isso é entre você e sua irmã. Mas adianto que ela está sofrendo, e muito. Quando chegar na ilha e estiver mais próxima de você, ela vai criar coragem, espantar os demônios e se livrar deles de uma vez por todas.
Eu pretendia fazer outras perguntas para tentar entender o que estava acontecendo, mas Nahemah me ignorou completamente e sua atenção se voltou a Israfil.
― Anunciaremos nas aulas de hoje as garotas escolhidas para a viagem. Tem também um convite em aberto para treinarem com as novas valquírias, lideradas por Nestha Archeron, nas montanhas geladas. Cassian, seu companheiro, ofereceu-se para treiná-las também no acampamento dos illyrianos. ― Israfil falou, esperando minha autorização, pois sabia que esse treinamento era vital para as guerreiras.
― Mande uma mensagem em meu nome agradecendo o convite e afirmando que iremos. Toda e qualquer ajuda que tivermos para nos tornar soldados imbatíveis será bem-vinda.
― O convite foi estendido aos adultos que vão para a guerra. Podemos treinar com os generais, separados das garotas. As meninas ficarão duas semanas aprendendo o básico. ― Israfil pausou, como se considerasse algo. ― E lá que você e Nyxs aprenderam a usar as asas. Eles têm um regimento exclusivo de soldados alados.
― Quanto tempo eles permitem que nosso povo fique nas suas terras? E Ananya com a filha, podem ir também?
― Eles têm excelentes feiticeiros que trabalham com magia de cura. Seria interessante elas passarem um tempo lá aprendendo. O convite está estendido a elas também.
― Duas semanas de treinamento intensivo, vamos ser observados o tempo todo. E se decidirmos, podemos conhecer o Grão-Senhor e a Grã-Senhora da Corte Noturna. ― Israfil sorriu, notando a cara de desgosto que Nahemah fez.
― Não conte essa parte para as garotas, elas vão criar expectativas de virar amigas íntimas das feéricas. Nyxs tem uma adoração pela história do povo deles, ficar perto da Grã-Senhora para ela seria como ganhar na loteria. ― Nahemah falou, descendo da mesa. ― Mas pode ser complicado. O Grão-Senhor daquelas terras é muito protetor com sua companheira; vive criando barreiras com magia para que nenhum desconhecido se aproxime dela ou de seu filho.
― Não tiro a razão dele, eu faria o mesmo para proteger minha filha. ― Falei.
― Com seu histórico de superproteção lá no multiverso, é mais fácil a Nyxs te trancar numa cela à prova de som enquanto luta carregando seus gêmeos na barriga.
Meu coração quase saiu pela boca. Corri para porta, abrindo para ver se ninguém estava no corredor e podia ter escutado a conversa.
― Está louca? Já pensou se alguém escuta? Ou a própria Nyxs? E que história é essa de gêmeos mulher?
― Não sei para que tanto espanto, suas irmãs são gêmeas, seu pai é gêmeo do Anael, é genético, você pode ter filhos duplos ou triplos. Vou logo avisando o tempo de vocês está acabando, não vai demorar muito para ela lembrar tudo. Já é hora de explicar para Lilith antes que ela descubra de outro modo.
Tinha fundamento suas palavras, não gosto de mentiras e também não gosto de ser enganada
, ― Assim que tivesse uma oportunidade, eu o faria.
― Já que está tudo acertado aqui, vou deixar para vocês a incumbência de preparar as garotas. Eu preciso conversar com minha beta. ― Já ia fechando a porta atrás de mim quando Israfil me pediu para esperar. Ele estava paralisado na cadeira, com os olhos completamente brancos como se estivesse em outro mundo. Em um piscar de olhos ele estava de volta.
― A ordem é para contar para Lilith sobre o laço o mais rápido possível. ― Seu semblante de paz e felicidade era indescritível. As idas de Israfil ao céu pareciam reabastecer a energia que gastava na Terra. Eu abri a boca para questionar, mas ele foi mais rápido. ― Não me pergunte nada, é tudo o que sei.
Deixei anjo e demônio conversando, cheios de cumplicidade. Minha cabeça fervia. Como contaria a Lilith que a filhinha dela era minha parceira sem a fazer surtar? Isso não sairia bom para Ameth.
Não foi preciso ir até a sala para conversar com minha beta, ela já estava saindo, trancando a porta atrás de si. Seus olhos sorriram quando me olhou, em sinal de compreensão. Em um juramento de alfa e beta, somos unidas, nossas almas são atadas uma à outra. A beta fica presa a um compromisso de fidelidade. Sua vida já não mais lhe pertence, ela vive para defender a vida da sua alfa. Esther não pôde me defender quando morri no outro mundo, foi tudo muito rápido, ela apenas pôde sentir minha vida se esvaindo. Desde então, o remorso a consome. Não posso sentir uma emoção mais forte que ela já está por perto para ver a gravidade.
― O que foi que aconteceu? Estou sentindo sua inquietação. Está vindo da sua sala? ― Esther ergueu uma bolha para nos separar das lobas que treinavam nas proximidades.
― Irasfil recebeu uma mensagem lá de cima mandando contar toda a verdade para Lilith quanto antes. Não explicou o motivo.―Confesso que mesmo eu querendo abrir o jogo para a loba, estava apavorada, apreensiva, e preocupada com Ameth, quando Lilith soubesse.
―Pois vamos agora para casa. Vou chamar Ameth. E vou logo avisando, é bem provável que Lilith incendeie a casa toda. ― Esther apressou o passo em pouco tempo chegamos.
Quando Lilith nos viu, as três juntas, pareceu preocupada. Ameth era a mais nervosa. Ela sabia que sua companheira nos perdoaria, mas que a ela seria mais difícil.
― O que está acontecendo, bruxinha? Por que essa cara?
― Lilith, eu preciso falar com você. Está sozinha? O Jamil está na ronda? ― Perguntei, perscrutando os arredores em busca do bruxinho.
― Sim, ele saiu faz pouco tempo. Não estou entendendo. ― Ela estava realmente nervosa.
― Você sabe que quando estávamos no outro mundo, eu morri e fui trazida de volta quando me lacei e completei meu laço no ritual. ― Comecei.
― Todo mundo está careca de saber que você se laçou e teve uma filha. Sua companheira ficou lá e a criança veio. Todo mundo sabe disso. ― Lilith parou de olhar para mim, virando-se toda para sua companheira. Ameth prosseguiu com a história.
― Bem, essa é só uma parte. Você lembra que, nessa mesma época, nossa filha passava mais tempo dormindo e que você disse que achava que ela estava doente por sentir minha falta? ― Ameth falou com doçura, como se conversasse com uma criança. No entanto, estava muito nervosa ao ver a agitação no olhar de sua companheira.
― O que tem a ver? Estão enrolando e não dizem nada. Ou falam logo ou vão à puta que pariu. ― Lilith se afastou, irritada, mas Ameth a pegou pela mão.
― Fique, ainda não terminamos.―Esther falou mais seria do que costuma ser.
― O que minha filha está tentando dizer é que a Nyxs não estava doente. Quando ela dormia, seu espírito viajava para o outro lado. Todas as guerreiras viajavam para lá. Nenhuma de nós podia ver, mas sentíamos a presença delas. Só a Nara, que não estava mais nesse mundo, podia ver e falar com elas. Ela guardou a imagem das garotas e foi assim que conseguiu mostrar às mães como suas filhas seriam. ― Esther parou para avaliar como Lilith estava absorvendo as informações e eu aproveitei para continuar.
― A primeira vez que a mãe da Nalum apareceu eu ainda não tinha morrido. Ela flertava comigo e eu gostava do que sentia.
― Isso só prova que você não vale nada, como podia estar de namoro com outra loba quando sua companheira tinha ficado aqui. ― Lilith disse com desprezo, esquecendo que sou sua alfa. Mas ali eu era apenas a companheira da filha dela, a coisa ainda podia ficar pior.
― Eu e a Amkaly nunca completamos o laço. Ela não queria se prender em um laço de companheiras e eu respeitava sua opinião. Portanto, eu era uma loba livre, mas ainda assim eu me sentia suja por desejar que aquela loba prateada surgisse a minha frente. ― Não sei se era uma coisa sensata a dizer para uma mãe, mas fui sincera, como sempre era quando o assunto era minha companheira.
― Lilith, entre na nossa mente e diga o que vê em cada uma de nós. Somos ligadas e companheiras, eu não posso esconder nada de você. ― Ameth pediu, fazendo um carinho no rosto da outra.
Aguardamos. Eu senti uma sombra fria espreitando na minha mente, tocando com garras finas as portas até dar de cara com uma parede de tijolos brancos bem acoplados uns sobre os outros. A sombra tentou ultrapassar a barreira, sem sucesso, e saiu em silêncio da mesma forma que entrou.
― O que você viu, minha vida? ― Ameth segurava as mãos da esposa.
― Nada. Em todas as três há o mesmo muro de tijolos brancos. Para onde eu vou ele se ergue maior ainda, como se estivesse brincando comigo. Por que isso está acontecendo? O que houve com vocês para as suas lembranças serem escondidas?
― Nossas lembranças foram trancadas para ninguém acessar o que tinha acontecido no outro mundo. Se olhar as da Ananya, Jana, Gilles ou até mesmo Agatha, vai encontrar a mesma barreira. Elas sabem com quem eu fui laçada e não deviam lembrar quando chegassem aqui. ― Eu falava devagar, dando tempo para ela processar a informação.
― E por que não?
― Porque minha companheira foi para o futuro. Ela não é do futuro, é do nosso presente e foi lá para salvar a minha vida e completar nosso laço. Quando ela fez o ritual, me trazendo de volta, eu aceitei e completei a ligação. Eu estava consciente, sabia o que estava fazendo.
― Quem é sua companheira, Nara Shiva? ― Lilith perguntou, a voz grave e impossivelmente séria.
― Nyxs. Sua filha é a minha companheira e mãe da Nalum, mas ela não lembra de nada. Segundo o anjo, as lembranças voltarão quando chegar a hora.
Lilith respirou fundo, entrecortada. As lágrimas rolavam e ela não fez questão de enxugar. Se afastou devagar, sem tirar os olhos de nós. Ameth tentou abraçá-la, mas Esther a segurou. Ao longe podemos ouvir a loba negra uivando com dor.
Fim do capítulo
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