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Capitulo 9
Capítulo 9
Patrícia não escondia a admiração que tinha por Maria Clara. Na vida, existiam pessoas tão raras e bondosas que era como se já as conhecêssemos de tempos antigos, de outras épocas, de outras vidas. Olhava para aquela jovem de olhar meigo, de feições suaves e angelicais e pensava no quanto a vida podia ser injusta com algumas pessoas. Todavia, o mundo não era um lugar para pessoas fracas, mas sim para pessoas que estavam dispostas a lutar todos os dias de sua vida por dias melhores e menos angustiantes e dolorosos. Até os piores dias poderiam se transformar em grandes oportunidades e mudanças cotidianas. Todas as pessoas tinham uma história trágica que carregava consigo presa a sete chaves. Todas as pessoas tinham uma máscara que escondia uma face tão sombria, quanto assustadora. Uma história trágica e multifacetada que se definhava em amores que não deram certo, em relacionamentos proibidos, em traições, em crimes, em abandonos, em medos, em perdas, em vidas profissionais falidas, divórcios mal resolvidos e casamentos inacabados. De maneira linear isso arrastava para um abismo obscuro todas as camadas e classes sociais da sociedade. Sem distinção entre rico ou pobre, pobre ou rico, a face sombria estava em todo lugar, de maneira dissimulada, porém imperceptível. Era da natureza humana, os problemas e as soluções. A luz e a escuridão. O bem e o mal. O amor e ódio.
— Você toca tão bem quanto um anjo toca uma harpa, minha jovem. Ouvi-la tocar me deslumbra, me leva à outra dimensão.
Clara não pôde deixar de esboçar um sorrisinho discreto ao ouvir o elogio sincero. Constatou que Patrícia era uma pessoa maravilhosa, mas a doutora Luciana parecia não gostar da ex-sogra.
— Sinto-me muito grata por saber que a senhora gostou.
— Gostar? Não. Gostar é pouco, na verdade, eu amei. Você toca apenas violão?
— Também toco violino. — Revelou se recordando do quão apaixonada era por aquele instrumento. Ficava extasiada sempre que assistia ao clássico Festival de Violino de Briançon, nos Alpes franceses. Era um sonho que às vezes a fazia querer criar asas e viajar livremente mundo afora. Conhecer outras culturas, outras cidades, outros tempos. Viver! Sentir a vida como um pássaro que aprende a voar e quer cruzar hemisférios.
— Ora! Vejo que tem muitas habilidades e muito em comum comigo também. Quando eu era mais jovem tocava violino, inclusive já participei de inúmeros festivais de violino na França. — Os olhos pareceram se transportar para àquele passado do qual ela falava com tanta nostalgia e paixão. — Josef Maxintsak, Jacob Grün, Martin Pierre Marsick e Alma Moodie foram, ao longo dos anos, minha grande fonte de inspiração.
— Alma Moodie era esplêndida! — Dizia encantada com o rumo da conversa. — Foi uma importante violinista nos anos que antecederam a Segunda Guerra Mundial. Carl Flesch também é espetacular. Sempre ouço as melodias dele. É tão mágico. — O rosto sonhador parecia imerso em outra dimensão.
— Nunca pensou em enveredar por uma escola de violino, Maria Clara? Já pensou em ganhar o mundo com suas habilidades mágicas e instrumentais? — Sugeriu.
Ao ouvir as palavras de Patrícia, Bárbara interveio com uma voz forte e possessiva:
— Maria Clara está prestes a fazer os votos e finalmente se tornar uma freira, Patrícia, ademais, ela bem sabe a que lugar pertence neste mundo. — A voz ríspida bloqueou os sonhos da jovem.
— Ora, Bárbara, essa moça é uma grande artista, tenho certeza de que se destacaria muito bem em uma escola de música, como a escola Bergenthal aqui de Vila Velha.
— A mensalidade da Bergenthal é uma fortuna, Patrícia. É uma escola de renome e prestígio. Grandes violinistas brasileiros estudaram lá. Maria Clara sabe muito bem que o convento já vive de doações.
Bárbara não escondia a indignação com aquela lorota toda que Patrícia falava.
— Se a preocupação é o dinheiro, eu resolvo isso sem maiores dramas. — À medida que falava aguçava ainda mais os sonhos esquecidos da jovem, que tinha os olhos brilhantes de felicidade.
Há uns tempos, tudo que desejou era ficar bem longe do mundo exterior, era ficar reclusa dentro do convento, porque seu pavor de chegar perto das pessoas quase a cegara, quase a fizera esquecer de que existia um mundo lá fora, de que existiam pessoas, sonhos, dias, no entanto, nas últimas semanas, desde que fora àquele Instituto, tudo mudou. Já não via as coisas da mesma maneira de antes. Havia uma inquietude em seu interior querendo gritar bem alto, voar, viver, libertar-se de si mesma. Oportunidades eram únicas, então, desperdiça-las era um grande erro. Já estava na hora de enfrentar o mundo.
— Não se trata apenas de dinheiro, Patrícia, Maria Clara sabe bem que não pode...
— Eu quero. — Surpreendeu as duas mais velhas ao falar decididamente.
Bárbara tinha os olhos arregalados, como se estivesse a ver um demônio perverso na sua frente, já Patrícia sorria satisfeita.
— Maria Clara! Você não pode fazer uma coisa dessas! Isso é uma blasfêmia contra o convento!
Bárbara estava em total estado de descontrole. A indignação era tanta que chegou a sentir uma forte dor no peito esquerdo. Achou que fosse ter um infarto ali mesmo.
— Não precisa de tanto alarde, Bárbara. É só uma escola, ademais, Maria Clara é muito jovem ainda, para saber o que deseja da vida. Quando ela conhecer o mundo e suas raras belezas, é que saberá para onde ir. — O tom de voz ameno fez Bárbara se calar e conter sua raiva. Pelo menos por ora.
— Maria Clara sabe que as coisas não são tão simples. Ela vai precisar da permissão da Madre Superiora para poder sair do convento e praticar essas tais aulas que não a levarão a lugar algum. — Disparou furiosa. — Onde já se viu, uma freira querer mergulhar pecaminosamente nessas ilusões mundanas. — Indignou-se.
— Prometo que farei meus votos, irmã Bárbara. Não se preocupe. A escola não irá me impedir de me tornar uma freira. Esse é o meu destino desde que nasci. — Prometeu decidida.
— Ainda assim, precisará da permissão da Madre Superiora, pois ainda é ela quem manda naquele convento.
— Tenho certeza de que Constança não fará maiores objeções, Bárbara. São apenas algumas aulas.
— Bom, devemos ir agora. — Bárbara se levantou com uma veemência quase brutal.
Clara também se levantou.
— Até logo, senhora Patrícia.
— Até breve, querida. Hoje mesmo acertarei tudo na Bergenthal. A carta deve chegar mês que vem para você lá no convento.
Clara sorriu muito agradecida.
— A senhora não sabe o quanto estou grata por tanta generosidade de sua parte.
— Você é uma jovem dedicada, merece o mundo.
As duas riram e Clara se foi junto da irmã Bárbara, que ficou de cara emburrada e carrancuda até chegarem ao convento.
***
Ester varria o grande pátio do convento quando Maria Clara se aproximou dela toda sorridente e muito feliz.
— Oi, Clarinha! Mas que cara de felicidade é essa hein, amiga? Até parece que você ganhou na mega da virada. — Parou de varrer e se apoiou na vassoura de maneira presunçosa.
Clara riu.
Ester era o máximo.
— Advinha...
— O quê? Desembucha logo, menina, anda, não me deixa curiosa. Eu sofro de ansiedade precoce.
— Vou estudar na escola Bergenthal!
— Como é que é?! — Perguntou, surpresa.
— Isso mesmo, estudarei na Bergethal.
— Mas...como assim, amiga? Me conta logo essa história direito. Você sai um segundo deste convento e já me volta cheia das novidades. Até uns dias atrás não era você que odiava o mundo lá fora, agora já vai estudar numa escola como aquela? Meu Deus, como as pessoas são transitórias pra cacete, hein. — Gargalhou deixando a vassoura cair no chão, ao passo que a poeira baixava um pouco.
— Eu nunca odiei, Ester, apenas tenho meus motivos para ser como sou.
— Motivos...sei...hãn... — fez um gesto com a boca enquanto balançava a cabeça positivamente. — Algum interesse deve ter lá fora, você só não quer me contar.
— Ai, Ester, você e essa sua mente fértil. — Respirou fundo e olhou para o outro lado, descabreada.
Desconfiada e de olhos semicerrados, como quem tenta desvendar um mistério, a loirinha encarava Maria Clara de um jeito engraçado. Com as duas mãos cruzadas atrás das costas, começou a andar ao redor da amiga.
— O que está havendo, Ester? Por que me olha desse jeito? — Perguntou de forma ríspida. — Que tipo de interesse alguém como eu poderia ter lá fora? Meu lugar é exclusivamente dentro deste convento.
— A doutora Luciana Ferraza, por exemplo? — Sugeriu de supetão e vendo a outra ficar muito vermelha e sem jeito.
Clara sentia as bochechas queimando e coração pulsado muito forte sob seu peito.
— O que besteira está dizendo, garota? — Rosnou extremamente irritada. — Você ficou louca de vez, agora, foi? A bebida não deve estar te fazendo bem. Te deu uma loucura seletiva, só pode. — Através das palavras rígidas tentava disfarçar o desconforto que sentia.
— Calma, amiga, também não precisa ficar uma fera desse jeito. Foi só uma sugestão, afinal de contas, a chefe de papai é uma mulher super atraente, bonita e apaixonante. Não me surpreenderia que uma garota como você se apaixonasse por ela, hãn? — Deu uma batidinha no ombro de Clara. — O único problema é que ela é hétero.
Clara baixou os olhos e deu de ombros se fazendo de inatingível. Mas não entendia por que, de repente, aquelas palavras de Ester mexiam tanto consigo. Será que ela estava certa? Será que estaria mesmo nutrindo um sentimento além da admiração pela doutora? Arregalou os olhos totalmente apavorada.
— Isso não me importa!
— Então quer dizer que mesmo ela sendo hétero você vai lutar pelo amor dela?
Clara encarou Ester de maneira indignada. Impaciente, deixou os ombros caírem.
— Não foi isso que quis dizer, Ester. Apenas isso que acabou de falar não passa de asneira, loucura e conversa sem pé nem cabeça. Agora vamos terminar de varrer logo esse pátio antes que nos castiguem novamente. Vamos deixar de conversa fiada e fabulosa.
— Ah, e pensando bem, amiga, acho que também vou entrar para a escola de violino. A Bergenthal é tão magnifica! — Bateu palminhas. — A maestra e dona de lá já ganhou vários festivais de violino. A professora Norma Bergenthal. Por isso o nome da escola. Nada mais previsível.
— Eu adoraria que você entrasse, assim não me sentiria tão sozinha.
— Pode deixar comigo que hoje mesmo falarei com a minha avó para que ela pague a matrícula e as mensalidades. Se eu pedir isso ao muquirana do papai é bem capaz de ele mandar me exilarem.
As duas gargalharam e voltaram a varrer o pátio.
***
Luciana se despediu da Angélica e das filhas, no aeroporto de Vitória. Sentiria grandes saudades delas. Angel era uma pessoa maravilhosa e de fácil convivência, claro que a ausência de pessoas tão especiais assim sempre seria sentida, não importava quanto tempo se passasse. Pessoas especiais seriam lembradas eternamente. Deixou o aeroporto e pegou a BR de volta a Vila Velha e ao Instituto. Tinha tantas coisas para fazer naquela segunda-feira agitada. Um dia completamente cheio que se destrincharia em reuniões prolongadas, em balanços financeiros, atos administrativos e alguns atendimentos a pacientes no hospital.
E para atrapalhar ainda mais o seu dia, o trânsito não estava ajudando nem um pouco.
Um enorme fila de carro sobre a ponte que separava Vitória de Vila Velha impedia que os carros seguissem seu destino.
Enquanto esperava o tráfego canalizar, Luciana resolveu ouvir uma música para relaxar.
Colou Forever Young – Aphaville.
Somente uma boa e clássica música para acalmar seu corpo elétrico e sua alma agitada.
***
Maria Clara se olhou no espelho do seu pequeno quarto. Estava elétrica, nervosa, mal podia conter tanta emoção. A euforia era inegável. A felicidade de, finalmente, conhecer mais sobre aquela enfermidade com a qual já nascera era gritante e incontida. Estava num só frenesi de animação tão grande que nem podia explicar tanta satisfação. Era como se todas as suas esperanças mortas estivessem renascendo no âmago de sua alma triste e desesperançosa.
O espelho refletia a imagem de uma jovem muito bonita, de feições suaves e meigas.
Os cabelos ruivos alourado caiam virtuosamente em cachos flamejantes e leves até perto da cintura fina. Duas grandes mexas foram amarradas no meio da cabeça com uma fita de seda vermelha que formava um laço discreto.
Se tinha uma coisa de que Maria Clara gostava era de discrição. Madre Constança a ensinara desde muito cedo os benefícios de ser uma pessoa discreta.
Eufórica, olhou-se no espelho mais uma vez, observando a saia godê verde selva, a blusa baby look branca e os seus formos All Star brancos. Uma combinação simples e casual, como ela.
Pensou sorrindo e se perfumou toda antes de deixar o quarto e sair para o corredor onde encontrou com Ester a olhando da mesma maneira do dia anterior.
— UAU! Está uma gata hein, amiga! — Exclamou andando ao lado de Clara e nas mesmas passadas.
— Boa tarde, Ester, para você também.
— Aonde vai assim tão bonita? Fui, fui.
— Ao Instituto. Cumprirei minha pena pelo furto praticado naquele dia. — Explicou ajeitando sua pequena bolsa de ombro.
— Hummmm...caramba! É mesmo, já havia esquecido. Mas que tola eu sou. — Riu de si mesma. — Você não me falou que cumpriria a pena alternativa lá no Instituto da chefe de papai.
— Eu esqueci de te falar. Desculpa mesmo, Ester, foi mal.
— Ah, amiga, não esquenta. É besteira. — Fez um gesto com a mão e sorriu. — Mas...pera aí! Então...se você vai cumprir a pena no Instituto, isso quer dizer que, com certeza, vai dar de cara a chefe de papai.
— Não seja boba, menina. E o que isso tem a ver? Aquele lugar é tão absolutamente grande que seria mais fácil encontrar uma agulha no palheiro a encontrar com a chefe do seu pai. E também ela não é esse monstro que você diz. — Defendeu muito séria deixando Ester ainda mais desconfiada e tentada a ir mais afundo na sua suposta “investigação.”
— Olha, Clarinha, você pode até achar que sou meio doida, perturbada das ideias, e talvez eu seja mesmo, mas pelo menos eu tento me controlar e só quero o seu bem. — Segurou nas duas mãos de Clara com muito carinho. — Dá para ver em seus olhos o quanto você fica irritada quando falo mal da doutora Luciana...ela é mesmo uma mulher apaixonante, educada, linda, mas aquela mulher teve um passado muito difícil, meus pais sempre conversavam no quanto ela sofria com o falecido marido e mesmo assim o amava muito — disse observando brilho de Clara sumir. — Ela não se importa de verdade com as pessoas, ela só se importa com aquele trabalho dela e dinheiro. Ela tem muitas vivências, tem quase 40 anos, quem sabe 40 ainda que pareça bem mais jovem, e você ainda nem chegou aos 25 anos...vidas diferentes, Clara, vivências diferentes...não quero te ver sofrer.
— O que você quer insinuar com toda essa besteira, Ester? — Perguntava perplexa. — Isso é uma blasfêmia dentro das sagradas paredes deste convento. Que Deus te perdoe. Apenas cumprirei a pena que VOCÊ deveria cumprir, garota. — Puxou as mãos com força. — Eu jamais amarei, ainda mais a uma mulher como a doutora Luciana. Apenas cumprirei a pena e depois nunca mais vou pisar os pés dentro daquele Instituto outra vez. Quem sabe assim você me deixa em paz.
— Você tem horas que tem a cabeça muito dura, Maria Clara Spitzner! Só ouve a si mesma!
— E você também! E só para você saber, idade e maturidade são duas coisas completamente diferentes. Temos mulheres de 20 com cabeça de 40, e mulheres de 40 com cabeça de vinte.
Ester entreabriu a boca, passada, chocada.
— Tá, faz aí o que você quiser da vida, depois não diga que não avisei!
A loirinha saiu correndo dali e muito agitada.
***
Luciana não queria acreditar.
Estressada, andava de um lado para o outro em sua sala, com as duas mãos na cintura.
Um erro administrativo de alto escalão como aquele poderia levar o Agnello Ferraza a arcar com diversos crimes fiscais.
Como eles poderiam ter perdido aquele livro fiscal de caixa assim de uma hora para outra?
Será que não sabiam que o prazo para conservar um livro fiscal era de até 5 anos?
— Arggg... — suspirou pressionando uma das mãos na testa, que já latej*v* de tanta preocupação. — Responsabilizarei agora mesmo todos os responsáveis por um erro desse porte. Isso é inadmissível!
Já imaginava até o tamanho do problema financeiro que aquilo daria.
***
Maria Clara andava ao lado da secretária de Luciana.
Ao chegar à recepção foi informada de que a médica gostaria de falar pessoalmente com ela.
Então subiu de elevador para o andar em que ficava a sala de Luciana.
Quando chegava perto, viu a médica sair apressada de dentro da sala, sempre com aqueles scarpins brancos, calça de alfaiataria e blusa social, tudo branco, como as paredes imponentes daquele Instituto.
— Doutora, Luciana!
Gritou, a secretária, mas tudo o que ouviu foi:
— Agora não, estou ocupada.
Sem graça, a mulher olhou para Clara e disse:
— Você pode aguardar aqui fora. — Apontou para um conjunto de sofá branco que rodeava um centro de madeira. — Comunicarei que você está aqui. Ela deve ter ido resolver algo urgente, mas deve voltar logo.
— Tudo bem. Eu posso aguardar. — Sorriu.
— Você pode sentar neste sofá. Assim que ela voltar vai te atender.
— Não se preocupe. Aguardarei.
A secretária assentiu e se foi na mesma direção de Luciana.
Sentada no sofá, Maria Clara aguardou por mais de uma hora.
Chegara ao Instituto por volta das 12:50 h, já passava das 14:00 da tarde. Perguntava-se se ela voltaria para aquela sala. Por causa da impaciência, constantemente, esfregava a mão uma na outra, suspirava enfadada, desanimada, perdia a pose.
“Será que essa mulher não vem?”
“Já faz mais de uma hora que estou aqui plantada à espera dela.”
“Como pode fazer isso com as pessoas?”
“Isso é desumano.”
“Se ela não chegar até às 14:20, irei embora.”
— Oi, Clara. Me desculpa ter feito você esperar tanto tempo.
Luciana disse chegando perto de Maria Clara, que tomou um tremendo susto ao olhá-la dos pés à cabeça.
— Ah, oi, doutora Luciana. — Levantou. — Está tudo bem, não se preocupe.
— Que bom. — Suspirou aliviada e consultou a hora num relógio de ouro, que se enroscava com delicadeza em seu pulso. — Bem, Clara, irei almoçar. — Disse vendo a cara de desapontamento da freira. — Vamos comigo? É um restaurante bem tranquilo. Lá podemos conversar sobre a sua prestação de serviços aqui no Instituto. — Vamos? — Chamou mais uma vez, olhando Clara nos olhos.
— Eu? Eu e a senhora?
Luciana sorriu com a pergunta engraçada e um tanto quanto inocente.
— Sim, mocinha, eu e você. Agora vamos, porque estou com bastante fome.
— Tudo bem, então sendo assim, vamos. — Sorriu menos acanhada.
— Vou só pegar minha bolsa e as chaves do carro. Já volto.
Clara a observou entrar na sala e sair rápido. Ainda estava sem acreditar que almoçaria mesmo com ela.
Em silêncio, caminharam para o estacionamento do Instituto, entraram no esportivo carro de Luciana e seguiram para um restaurante de culinária marroquina que tanto Luciana amava.
O carro foi estacionado em um restaurante refinado e as duas desceram de dentro.
— Já veio aqui alguma vez, Clara? A comida é divina. Inigualável. — Comentava à medida que adentrava o estabelecimento culinário.
— Não, nunca estive aqui. Na verdade, não costumo sair muito do convento.
— Entendo, mas acredito que você irá gostar, pois a comida aqui é uma das melhores que temos na cidade.
— Eu acho que sim.
Sentaram a uma mesa nos fundos, bem discreta, uma de frente para a outra.
Luciana aguardou o garçom trazer o menu, então, junto com Clara, fez o pedido que incluía entrada, prato principal e acompanhamento.
Para acompanhar a entrada Caesar Salad, Luciana pediu um vinho rosé, já Maria Clara optou por uma água natural.
— Todos os dias a senhora almoça esse horário? — Perguntou enquanto observava o garçom encher a taça da médica com o vinho.
— Primeiro, me chama de Luciana, pois não sou assim tão mais velha que tu, acredito eu. — Sorveu um longo gole do vinho parecendo estar de ótimo humor depois da raiva que passara horas atrás, mas tudo seria resolvido. — Segundo, sim, quase sempre nesse horário e neste restaurante. Acho que sou a cliente mais antiga daqui. É um lugar anacrônico, mas sempre aconchegante e nunca deixa a desejar.
— Eu sempre almoço ao meio-dia em ponto. Somos muito regradas no convento. Acho que não aguentaria ficar tanto tempo assim sem almoçar. Acho que eu desmaiaria. — Riu e sorveu um gole da água.
— A gente acaba acostumando, Clara. — Sorveu mais outro longo gole do vinho. — Na vida, tudo é questão de se adequar às mudanças, mesmo às ruins como um casamento, por exemplo.
— Mas o casamento é uma benção de Deus, ele une duas pessoas que se amam.
— Casamento nem sempre se trata de amor. — O olhar triste e perdido fitava o fundo rosé da taça de vinho entre seus dedos longos. — As vezes são apenas acordos, para sustentar essa instituição falida e patriarcal chamada casamento.
— Mas...a senh...você casou com um homem a quem amava. — Disse se lembrando das palavras de Ester horas antes.
— Que eu amava? — Deu um sorrisinho de decepção e amargura e tomou todo o conteúdo da taça, enquanto sacolejava a cabeça em negativa. — Me diga, você conhece o amor?
Clara sentiu o ar lhe fugir dos pulmões, quando os olhos dela mergulharam profundamente nos seus, após a indagação.
Se o amor era admirar alguém, querer o bem de alguém, querer estar junto a todo momento, então talvez estivesse conhecendo o amor através daquela mulher, pensou apavorada.
— O amor é algo verdadeiro e puro. — Respondeu o mais generalizado que pôde, não podia se entregar assim.
— Talvez seja mesmo isso. — Encheu a taça com mais vinho. Então, nunca fora capaz de sentir amor por ninguém, passara por tantas angústias e decepções que hoje em dia se achava incapaz de amar, de se entregar a alguém. E jamais cometeria um deslize desse em sua vida. A última coisa de que gostaria era de ter alguém para se preocupar diariamente. Se um dia alguém lhe interessasse, faria desse alguém um momento.
Clara olhava com atenção para a figura frágil e humana que bebia à sua frente em goles de desesperança. Desde sempre a maioria das pessoas costumavam afogar suas mágoas e frustrações no álcool, mas não deixaria que a doutora fizesse isso, logo naquele momento em que se demonstrava tão fragilizada, tão despida de sentimentos.
Uma taça de vinho parecia uma cura, mas jamais cicatrizaria as feridas de uma alma despedaçada.
Era como se o casamento dela tivesse sido catastrófico. Um fracasso.
Aquelas não eram palavras de uma esposa que um dia amara ao seu marido.
Prometer atos era absolutamente possível, mas prometer sentimentos era absolutamente impossível.
O amor era um sentimento involuntário, por isso jamais poderia ser prometido, apenas sentido.
— Não se preocupe, eu nunca bebo mais que duas taças. Vinho é uma degustação breve, não uma guloseima longa, Clara. — Falou, ao perceber o olhar preocupado dela para sua taça. Mirou o rosto bonito, a feição suave, os olhos meigos, os lábios rosados...pensou no que dera em si para ter levado aquela moça para almoçar consigo. Aquilo era, no mínimo, estranho, mas ao mesmo tempo satisfatório. Pelo menos, ela era uma freira, ou quase, então, era como se estivesse se confessando sobre seu passado fracassado e feito de retalhos de dores e angústias.
Clara fez um ar de riso.
— Pode beber se quiser, estarei aqui. Prometo que não a deixarei só.
Olharam-se nos olhos, não como antes, mas sim como duas almas que buscavam abrigo através daquela rara e intensa troca de olhares acalentada por aquele doce momento.
Maria Clara se sentia cada vez mais admirada por Luciana, mas também assustada por aquelas sensações corrosivas e assustadoras. NUNCA sentira aquilo em sua vida. Queria acreditar aquelas sensações se deviam ao fato de ela ser uma médica extraordinária no ramo da doença que corria em suas veias sanguíneas.
Clara era como a água tentando perfurar uma rocha quase impenetrável. Mas não percebia isso.
— Vamos almoçar, beber de estômago vazio não faz bem a ninguém.
As duas riram bem mais à vontade, sem tensões, mas sim espontâneas.
O almoço chegou e elas degustaram da exótica comida e da sobremesa saborosa.
Entre conversas triviais e sorrisos fáceis, deixaram o restaurante já beirava às 16:50 da tarde.
— O dia está tão lindo. — Clara disse, quando chegaram fora do restaurante. — A natureza é mesmo belíssima. No outono a vida parece mais exótica e o Cocal — falava sobre o Parque Urbano de Cocal, que ficava a duas quadras do restaurante — mais ainda. Não gosta de passear pelo parque?
— Quando preciso relaxar venho dar umas corridas por cá.
— Bem, então venha comigo dar uma volta pelo parque, respirar ar fresco faz bem.
— Menina, menina, nem falamos sobre teu trabalho lá no Instituto, e ademais, eu tenho inúmeras coisas para fazer.
— Ah, doutora Luciana, nada tão urgente que não possa esperar até amanhã. Aceitei seu convite, agora aceite o meu, por favor.
Luciana a encarou.
— Mas tens uma lábia boa. — Riu balançando a cabeça devagar. — Tudo bem, vou aceitar esse teu convite, mas não vamos demorar.
— Claro que não.
Sorrindo, muito animadas, foram ao parque e começaram caminhar lado a lado observando as lindas árvores frondosas, as folhas secas de outono que se desprendiam delas conforme o vento soprava, as pessoas que iam e vinham praticando esportes, outras andavam com animais domésticos.
Elas andavam sentindo a brisa soprar seus cabelos entre risos leves.
— Além de se tornar freira, não tens mais nenhum sonho? És tão jovem.
— 24 anos. Não sou tão jovem. Já sou bem mulher.
— Perto de mim que já tenho quase 40, muito jovem sim.
— Participar de um festival de violino na França. — Disse mudando de assunto. Não queria entrar naquele mérito tão incômodo.
— Como?
— Perguntou se eu tinha algum sonho. É esse que acabei de falar.
— E pretende ir atrás dele?
— Não, se eu for terei de abrir mão de ser freira, então, não...
— Então não é um sonho, é um delírio. Sonhos precisam de atitudes, delírios, não.
— Então, acabei de descobrir que tenho um delírio. — Gargalhou sentindo o gosto da liberdade. — E a doutora tem algum sonho?
Enquanto isso, as nuvens parcialmente nubladas se juntavam formando um céu cinza invernal.
— Manter-me firme em meu trabalho.
— Só...só isso? — Perguntou fazendo Luciana rir e sentiu um pigo de chuva cair em sua testa. Olhou para cima e mais pingos de chuva caíram. As pessoas se dissiparam do parque, ficou apenas elas. — Ah, doutora, isso não é sonho, é meta! — Segurou firme na mão de Luciana e começou a correr sob a chuva e as folhas de outono.
— Calma, menina, o que estás fazendo?
De braços abertos, Maria Clara olhou para cima e, sorrindo, começou a rodopiar sob a chuva de outono.
— Dançando sob a chuva! — Respondeu. — Já ouviu dizer que viver não é esperar a tempestade passar, mas sim dançar sob a chuva? Então é o que estou fazendo.
Luciana colocou as duas mãos na cintura e ficou parada observando a cena que parecia um belíssimo roteiro de filme de romance.
Era uma moça tão bonita, livre, tão menina, tão mulher, e com uma vontade de viver inimaginável.
— Você é fogo na roupa, me arrastando para uma chuva dessa.
Clara segurou na mão de Luciana e a puxou por todo o parque até a chuva passar.
A hora voo, nem viram, nem se deram conta.
Naquele momento o tempo era só um ocaso, um detalhe.
Quando a pessoa era especial, uma eternidade ainda não seria suficiente para viver ao lado dela.
Completamente molhadas, andavam lado a lado de volta para o carro.
Cúmplices.
Maria Clara não parava de tremer de frio. A enfermidade a fazia ser uma pessoa muito mais frágil e suscetível a doenças, devido instabilidade do seu sistema imunológico.
— Droga. — Espirrou, já sentindo os efeitos colaterais da forte chuva.
— O que houve, Maria Clara? — Perguntou preocupada.
— Não é nada, doutora, está tudo bem.
— É, estou vendo mesmo que está tudo bem. Estás parecendo um pinto molhado, toda se tremendo por causa dessa chuva.
— Eu?!
— Sim, você mesma, mocinha. — Puxou-a para perto de si e a abraçou por cima dos ombros. — Não vai ajudar muito, mas pelo menos assim meu corpo aquece o teu até chegarmos ao carro.
Ao sentir o corpo da freira junto ao seu, Luciana percebeu, naquele simples toque, que fazia tempo que não sentia algo assim tão intenso e capaz de mexer com suas emoções adormecidas.
De repente, mesmo molhada, sentiu um intenso calor se espalhando por sua pele e tomando a forma de um desejo há muito tempo esquecido e recluso.
Um desejo inconfessável e...por aquela menina.
Recriminando-se veementemente, fechou os olhos e respirou muito fundo.
“Era só o que te faltava mesmo, Luciana.”, pensou renegada consigo mesma.
Fim do capítulo
Até o próximo capítulo, minhas queridas.
Bjs e se cuidem.
:)
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Alessandra Nascimento
Em: 11/10/2023
Que pena, não postou mais nenhum.
Estou amando o enredo elas. Rsrs
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lorenamezza Em: 06/01/2024
tem completa no kindle