Amada Amanda por thays_
Capitulo 1
- Fica a vontade, Duda. Estamos acendendo a churrasqueira. - Rafa deu um soquinho em meu ombro.
Ele tinha se transformado em um belo homem negro de 1,80 ou talvez mais, era engenheiro civil, tal como o pai. Seu cabelo tinha um corte estiloso e sua barba era bem marcada. Quase não nos encontrávamos mais no dia a dia devido a correria de sempre, mas sempre que nos víamos era como se ainda fôssemos aquelas crianças remelentas empinando pipa e ralando nossos joelhos no campinho atrás da igreja. Tanto ele quanto eu tínhamos ganhado alguns quilos ao longo desses nossos mais de 20 anos de amizade.
Ele saiu me deixando sozinha e olhei em volta. O quarto era pequeno, mas confortável. Havia uma mochila da Oakley preta em cima da outra cama de solteiro e também um skate com o shape detonado encostado na parede ao lado do móvel de cabeceira. Havia também um cobertor azul felpudo, travesseiros e um fone de ouvido da JBL sem fio.
Coloquei minha mochila na outra cama junto com o capacete da moto. A decoração era simplista apenas formada pelas camas e móveis de cabeceira ambos de madeira. As paredes eram brancas e no chão, tacos de madeira.
Aquela casa era dos pais do Rafa. Eles tinham uma família muito grande então sempre se reuniam ali em datas festivas. Era uma casa de campo que ficava no meio do mato localizada no interior de São Paulo.
Tirei minhas botas de motoqueiro e olhei pela janela. Era sexta-feira de carnaval e já se passava das sete da noite. Eu abri minha jaqueta de couro, por baixo usava uma camisa social azul e em meu pescoço pendurado o crachá preto e vermelho da Aliscar, com uma foto em que eu estava com cara de assustada.
Eu trabalhava no departamento financeiro de uma fábrica de peças de carro há sete anos. Eu gostava do que fazia, mas meu dia a dia era muito estressante. Imaginei que passar meu carnaval no meio do mato ia me ajudar a realinhar meus chakras, como diria minha mãe, que era toda trabalhada em incensos, ervas, pedras e mantras.
Entrei no banheiro da suíte e tomei uma ducha rápida. Vesti uma bermuda com o escudo do PSG e uma regata largona preta. Sequei meu cabelo curto com uma toalha, deixando-o perfeitamente desalinhado.
Quando saí do banheiro vi a garota que provavelmente dividiria o quarto comigo. Ela buscava algo na mochila e tirou o celular de um dos bolsos. Logo se virou para mim e sorriu. Um daqueles sorrisos tímidos de quando você não conhece direito a pessoa.
- Oi, tudo bem? - Ela me cumprimentou. - Você deve ser a Duda né? - Ela tinha uma voz rouca e amigável. Tinha um ar despojado e meio largado, mas seu olhar, seus gestos me passavam uma suavidade tremenda, o que contrastava com sua aparência.
Ela usava um shorts bem curtinho branco e uma camiseta largona branca com o símbolo em vermelho da Element. Seu cabelo era castanho claro e liso, até metade das costas. Usava um tênis preto da Vans e meias brancas até metade das canelas. Devia ter pouco menos que 25 anos. Reparei em uma tatuagem em seu antebraço esquerdo, era um símbolo do espelho de vênus do qual saiam flores entrelaçadas.
- Sou sim. - Respondi finalmente após uma bela analisada na garota.
- Eu sou a Amanda. Prima do Rafa.
Então vi algo em seu olhar que me fez pensar que já a conhecia antes. Eu conhecia o Rafa desde pequena, nós moramos bastante tempo no mesmo bairro, brincávamos juntos. Alguns de seus primos também jogavam bola com a gente, mas eu não me lembrava de nenhuma Amanda.
- Eu conheço quase a família toda do Rafa, mas acho que você ainda não conheci.
- Acho que já nos vimos algumas vezes. Eu me lembro de você.
Tentei procurar registros em minha memória, mas não a encontrei em lugar nenhum. Ainda mais uma Amanda nitidamente sapatão. É óbvio que eu me lembraria.
- De onde nos conhecemos?
- É uma longa história... - Ela sorriu . - Bom, eu vou indo lá pra fora. Vim só pegar o celular. Você já vai?
- Claro.
E saímos pela porta do quarto. Os outros já estavam ocupados, as portas estavam abertas e vi que eles eram iguais ao nosso. Passamos por uma sala de jogos e ficamos paradas olhando ao redor. Havia uma mesa de sinuca, uma de pebolim. Alguns sofás e mesas na qual podíamos jogar cartas e xadrez.
- Olha que massa - Eu comentei com ela. - Joga sinuca?
- Opa. Adoro.
- Já encontrei minha parceira então.
- Olha que eu sou competitiva.
Passamos pela sala e pela cozinha. A casa era toda rústica com um estilo campestre. A parede da sala que dava para a piscina era toda de janelas de vidro, pela qual podíamos ver o restante das pessoas todas do lado de fora.
Eu adorava o cheiro do carvão pegando fogo. Remetia-me a muitas memórias de quando eu era criança e minha família se reunia e dava grandes festas regadas a muita cerveja, música e comida. Pude ver uma churrasqueira de tijolinho a vista, a piscina propriamente dita (que era enorme) e um lago no meio do gramado bem cuidado. Bem lá no fundo havia uma quadra de futsal revestida por grades. A casa era rodeada das mais diversas árvores e vegetações e não se via a menor presença de vizinhos nem nada do tipo. Parecia completamente isolada.
A música soava alto pela caixa de som amplificada. Young, Wild and Free do Snoop Dogg era cantado a plenos pulmões por todos.
Rafa logo veio em minha direção sorridente. Ele usava uma camiseta da Pineapple Storm.
- Cara, to muito feliz que você veio! - Ele me abraçou e deu um tapinha em minha barriga de certa forma saliente. - Você nunca sai de casa, mano. É tipo uma honra ter você aqui.
- Aff, cala a boca. - Dei um empurrão nele. - Não é pra tanto.
- Essa aqui também foi difícil de convencer. - Ele abraçou Amanda pelos ombros de maneira carinhosa, de uma forma um pouco mais delicada do que como me tratava. - Já se conheceram, né? Coloquei vocês no mesmo quarto porque imaginei que iam se dar bem. Fora que temos poucas meninas por aqui, acho que vocês não iam gostar de dividir o quarto com o Pedrão e ouvir ele roncando a noite toda. - A última frase ele disse alto olhando para o rapaz que estava na churrasqueira e os outros garotos deram risada.
Rafa logo colocou uma cerveja em nossas mãos e comecei a me enturmar com seus amigos. O Pedrão também era um homem grande, tal como Rafa, branco, barba lenhador, devia ter quase 40 anos. Era o mais velho de nós. Havia o Arthurzinho, carinha de bebê, pele morena clara, usava uma camisa rosa do Real Madrid. O trisal Milena, Guilherme e Bianca pareciam fluir perfeitamente bem. Milena era gordinha e ruiva, Bianca era negra e tinha tranças no cabelo, já Guilherme era baixinho, tinha a barba rala, camiseta da Lacoste.
Kaique era um japonês de olho claro, usava uma camisa do Corinthians e era um pouco tímido. Tinha também o Marcelo e logo de cara meu santo não bateu com o dele. O típico hetero-top mala que se acha o foda. Era um cara muito cansativo e não tinha passado nem cinco minutos e eu já não aguentava mais sua companhia.
Rafa me disse que era amigo do Kaique, que faziam ADM juntos na PUC. Ele também achava o cara um porre, mas fazer o que né.
Amanda perguntou baixinho:
- E aquele joguinho de sinuca? Rola?
- Ô se rola...
Talvez mais alguém também tivesse de saco cheio do rapaz.
Nos levantamos e fomos juntas até a sala de jogos.
O fato dela ter me dito que já tínhamos nos conhecido tinha me deixado intrigada, porque ela realmente tinha algo familiar, mas eu não me lembrava de nenhuma garota igual a ela.
Fomos até a mesa de sinuca e começamos a organizar as bolas dentro do triângulo.
Perguntei de bate-pronto:
- Escuta, a gente já se pegou?
- Oi?
Sua feição foi de pura surpresa e notei até uma certa timidez. Respondeu um pouco atrapalhada.
- Não... ainda não. Quer dizer, não.
Eu achei graça.
- É que essa história de que a gente se conhece me deixou pensativa.
- Você não costuma se lembrar das pessoas que fica? - Perguntou.
- Não é assim também né… - Rebati fingindo indignação.
- Garanto que se lembraria de mim se tivéssemos tido algum rolo.
Me limitei a sorrir com os olhos na mesa. Ela voltou a perguntar, agora num tom de voz mais sério.
- Você não se lembra mesmo de mim?
- Não. Quer dizer. - Olhei bem pra ela. - Tem algo em você que não me é estranho, mas eu não me lembro de nenhuma Amanda prima do Rafa.
- Acho que eu era muito pequena. Você ta com quantos anos?
- 32 e você?
- 25.
Continuei pensativa em silêncio, tentando procurar em minhas memórias antigas qualquer indício de que a conhecesse.
- E aí, vamos jogar ou ficar papeando?
Me recompus e peguei um taco. Perguntei:
- Quer as pares ou ímpares?
- Pares.
- Fechou.
Ficamos nos olhando. Assenti com a cabeça para ela começar, ela negou.
- Primeiro as damas.
Eu ri debochada. Esse jogo ia ser bom. Me concentrei na tacada inicial e espalhei as bolas. Mirei na 5 e a encaçapei. Olhei para Amanda e sorri. Mirei na 3, mas estava com difícil acesso, acabei errando.
Amanda se posicionou e acertou a 2, 4, 6, na sequência.
- Podemos identificar uma botequeira de plantão.
- Boqueteira? - Pedrão perguntou alto entrando na sala com Rafa.
- Bo-te-quei-ra, de boteco!
Todos riram.
- 5a série mandou lembranças. - Brinquei.
- Ela gosta de boteco e de cerveja de garrafa. - Rafa cantarolou a música que eu porventura conhecia. - Né não, Mandy?
Amanda estava superconcentrada no jogo.
- Estamos de próximo. - Pedrão disse sem tirar os olhos da mesa. - Quem está ganhando?
- Por enquanto ela.
Amanda mirou em sua próxima, acertou.
- O que estão apostando?
- Nada, to estudando minha adversária ainda. Parece que vai ser um jogo árduo.
- Se eu fosse você não apostava nada. - Rafa fingiu me contar um segredo. - O último cara que apostou quase perdeu a mulher.
- Não assusta a menina, Rafinha. - Amanda riu. - Não aconteceu nada disso, Duda.
- Ihhh... foi só falar... - Pedrão chiou após Amanda errar a tacada.
Eu acertei minha próxima e ficamos numa disputa acirrada com a torcida dos dois até ela ganhar de mim.
- Nossa vez!
Pedro animado igual criança começou a arrumar a mesa.
- Valendo vintão?
- Fechou.
E eles começaram a jogar.
Nós nos sentamos em um sofá confortável de frente para a mesa deles e ficamos alguns minutos em silêncio apenas acompanhando a conversa deles.
- 10:32?
Ela apontou para uma tatuagem em meu antebraço.
- O horário que meu irmãozinho nasceu.
- Ele é pequeno?
- Tem 14 anos.
Ela então olhou para o nome Madalena escrito com uma caligrafia um pouco tremida, pouco mais para baixo da primeira.
- E essa?
- As pessoas pensam que fiz na prisão, mas é a letra da minha avó.
Ela riu alto jogando a cabeça pra trás. Não pude deixar de rir com ela.
- Você parece bem apegada a sua família. - Ela concluiu.
- Como uma boa canceriana que sou.
Bateu em sua testa.
- Ah não.
- Qual o problema?
- Minha ex era de Câncer.
- Mas meu ascendente é em escorpião. Tenho a lua em Áries.
- Ou seja, só tem cara de santa, mas, no fundo, é uma demônia.
Rimos novamente.
- E essa cicatriz na sua sobrancelha? - Ela perguntou.
- Ah... isso aqui... - Abaixei o olhar, sem graça. - Foi numa briga. - Toquei em meu nariz (um pouco torto que também já tinha sido quebrado). - Aqui também.
- To achando que essa Madalena foi algum rolo seu da prisão mesmo.
Eu ri alto.
- Não! É a letra da minha avó, eu juro!
Gargalhamos.
- A conversa tá boa hein... - Pedrão brincou.
- Duda ta me contando da namorada presidiária dela
- O que? - Rafa perguntou assustado. - Desde quando está namorando?
Eu ri horrores.
- É brincadeira, Rafinha. - Amanda riu.
- Essa menina só arrumava encrenca quando saíamos de rolê. - Rafa revelou entrando na conversa. - Ta mais calma agora que a idade chegou, fia?
- Que idade? Não sei o que está falando.
- Ganhei, porr*! - Pedrão gritou como se sua vida estivesse em jogo.
- Podemos jogar de novo? - Rafa perguntou exaltado. - Não posso deixar esse palhaço ganhar de mim.
- Sinta-se em casa. - Brinquei com meu amigo e eles voltaram para o mundo deles.
- Vem, vamos pegar uma cerveja. - Ela tocou em minha mão e saímos da sala de jogos. Fomos até a cozinha e abrimos a geladeira. Ela me entregou uma latinha e pegou uma para ela. Os outros estavam todos do lado de fora da casa. Ela se sentou na pia e eu me encostei na parede de frente a ela.
- Eu sei que preciso trabalhar isso em mim... Essa coisa da agressividade... mas o outro cara mereceu... um homofóbico machista misógino do caralh* que ficou me enchendo o saco. Tem coisa que eu não aguento mais, sabe? Eu não levo mais desaforo pra casa.
- Eu aprendi a simplesmente ignorar. Depois de tanto apanhar da vida você escolhe ou você tem razão ou você tem paz.
Ela instintivamente tocou seu pulso, correndo o dedo por uma cicatriz grossa e profunda na vertical que devia ter cerca de 10cm. Por cima dela havia a tatuagem que já havia reparado antes, era um espelho de Vênus em aquarela, bem colorido a alegre, com flores saindo dele.
E então eu fiquei em dúvida se perguntava a ela ou não, mas perguntei:
- E essa sua cicatriz?
- Ah... isso é de uma época meio difícil de minha vida... tive alguns problemas emocionais, quer dizer, ainda tenho, mas agora estou em tratamento, terapia, remédios, essas coisas...
Eu novamente me senti insegura, mas perguntei:
- Você tentou suicídio?
- Sim, mas eu era mais nova... faz algum tempo.
O clima tinha ficado um pouco tenso.
- Já me falaram que eu devia fazer terapia, principalmente pra eu parar de me meter em briga...
- É, faz bem, eu não imagino minha vida sem.
Não sei porque, mas tive vontade de falar sobre Karen com ela.
- Uma amiga minha se matou há dois anos. Foi terrível.
- Sinto muito por isso.
- Nunca faça isso com você mesma. Nunca. Entendeu? É horrível. Horrível. Não consigo descrever em palavras o que um suicídio causa nas pessoas que ficam. Até hoje tenho pesadelos com a cena. Sério, nunca faça isso, nunca.
Percebi que seus olhos se encheram de lágrimas.
- Por que está me dizendo isso?
- Porque foi justamente o que gostaria de ter dito para ela e não disse. Gostaria de ter dito a ela com todas as letras para nunca fazer isso. Eu me culpo até hoje por não ter sido mais clara. Eu devia ter dito com todas as letras: “Nunca faça isso com você, nunca tire sua vida”. Mas não queria ser só mais uma pessoa que ficava cagando regra na vida dela. Só queria ser alguém com quem ela pudesse contar, desabafar sem julgamentos. Eu acho que poderia ter feito mais e não fiz.
- Ei, não foi sua culpa, isso você pode ter certeza. Às vezes tava sendo pesado demais pra ela. Mais do que ela conseguia suportar. E você não tem nada a ver com isso.
Senti um aperto na garganta no mesmo instante.
Ela revelou:
- Quando meu pai tava vivo ele fazia da minha vida um inferno. Era um caos. De verdade. Era insuportável.
- Faz quanto tempo que ele morreu?
- Em Agosto vai fazer 7 anos. Sei que é horrível uma filha falar isso de um pai. Mas eu só fui ter paz depois que ele foi embora.
- E sua mãe?
Ela respirou fundo.
- Minha mãe é um anjo. Sofreu muito nas mãos dele. Não só ela, mas eu e meus irmãos também.
- Seus irmãos são legais?
- Agora sim, mas quando eu era mais nova era bem difícil também. Foi difícil ganhar meu espaço na família.
- Por ser lésbica?
Ela hesitou.
- É. - Desviou o olhar. - Vem… vamos lá pra fora. - Ela desceu da pia. - Chega de falar sobre coisas tristes. É Carnaval. Vamos aproveitar.
Fim do capítulo
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jakerj2709
Em: 08/03/2023
Olá,estou adorando o enredo...Parabéns...
thays_
Em: 23/03/2023
Autora da história
Obrigada!! :DDD
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Marta Andrade dos Santos
Em: 26/02/2023
É uma dor insuportável perder alguém dessa forma.
Resposta do autor:
Realmente é insuportável! Uma sensação terrível de impotência, horror, tristeza.
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thays_ Em: 04/04/2023 Autora da história
Oi Lea! Que legal! Vou ler sim, esse livro ainda não conhecia, obrigada pela indicação! :DDD