Capítulo mais longo que o habitual, mas com tantas reviravoltas que vai fazer passar rápido rs.
Ressaca de amor
— Mog.
Ouço Isa colocar o chá de cidreira do meu lado, sentando no chão, me encarando deitada no sofá, de peito pra cima, uma almofada em cima da minha cabeça.
— Não acha que está apaixonada não?
— Não estou – minha voz sai abafada – devo ter comido alguma coisa que me fez mal...
Isabela tira a almofada da minha cara, e me encara séria.
— Se você tá dizendo, então não se importar em lembrar da guria te abraçando, te tocando – ela faz um bico com os lábios pensativo – o toque dela contra o teu...
Meu estômago revira mais uma vez, e sinto minha cabeça girar. Coloco a mão na minha boca, e me levanto correndo pra ir pro banheiro. É o tempo de chegar, enfiar a cabeça no vaso e ver tudo indo pra fora. Apoio minhas mãos na porcelana, e respiro fundo, ofegante. Isabela para na porta, me olhando, possivelmente pra saber se preciso de ajuda.
— E se eu estiver? – pergunto mais para mim do que para ela, olhando a esmo para frente.
— Aí você beija a boca dela... – Isabela se ajoelha ao meu lado, passando a mão na minha costa, o que faz meu estômago dar outra galopada visceral pra fora – Barbaridade, gostar de alguém te deixa tão abichornada assim?
— Eu posso estar só confundindo tudo... – suspiro fundo, apoiando minha cabeça nas mãos – Não sei porque isso está acontecendo comigo.
— Tchê, mas isso é tri normal – ela dá com os ombros, me puxando para trás, para sentar no meio de suas pernas ali, no chão – tenho certeza que ela gosta de ti também.
— Como pode ter tanta certeza assim? – encosto minhas costas contra o seu peito, e seus braços se apoiam com os joelhos ao meu lado.
— Não sei, mas é o que parece – Isa dá uma risada contida.
— Mas, Isa...– engulo em seco, sentindo meu corpo tremer com essa hipótese – Se for, o que eu faço?
— Nessas horas eu prefiro pensar que nossa vida é como um rio – ela pega meus braços, apoiando nos dela, gesticulando – a água vai seguir o fluxo, encontrando um obstáculo ou não, ela vai continuar – e os cruza junto com meu corpo – se gosta da guria, deixa as coisas seguirem como estão. Uma hora vai fluir.
— Tenho medo de estragar tudo – abaixo a cabeça, jogando-a para frente, cansada – não sei se consigo lidar com isso.
Olho de relance pra ela, que bate a língua entre os dentes, balançando meus braços.
— Mog, você vive essa situação com a Isolda que não é fácil, passou por aquela questão bucha com aquela outra guria, mas está aí, fazendo o que gosta, seguindo a vida... – e vira o rosto pra me encarar – Acho que consegue sim.
Dou com os ombros, afundando contra ela, e ela me aperta contra o seu corpo, me acalentando.
— Escrever é bem mais fácil do que viver – respondo suspirando, sentindo o cansaço me invadir de uma vez.
— É... – Ela apoia a cabeça no topo da minha – A realidade gosta de maltratar mesmo.
Me sinto como em uma cena de filme, o qual nós duas, sentadas no chão frio do banheiro, abraçadas tal como duas almas perdidas que procuram se acalentar a todo custo contra as adversidades da vida.
Ela me ajuda a levantar, e só aí escovo os dentes e tomo o chá para em seguida me sentar em sua cama. Me sinto bem melhor, como se nunca tivesse sentido nada, mas também estou evitando pensar no que aconteceu a todo custo.
— Acho que essa cabe em ti – e me dá uma regata com shorts combinando. Tenho certeza que essa roupa não pertence a ela, mas estou sem graça de perguntar se é da garota da foto. Apenas agradeço e troco de roupa, me deitando em sua cama, mas ela não deita comigo. Acaba indo para o seu computador, e é essa cena que vejo antes de apagar de uma vez.
*
— E... Ação!
Eles estão fazendo essa cena pela terceira vez. Não sei como eles tem paciência para refazer a mesma coisa por mais de uma vez, mas Camille é perfeccionista e não aceita menos do que o excelente deles.
Só me presto a ficar sentada, observando-os quando não estou na sala com os editores. Gosto de ver como eles parecem encarnar uma pessoa tão diferente deles. A diretora olha sério, e fala para regular a iluminação em uma parte, assim como a voz. Pra mim tudo soa bom.
— Corta! – ela sorri – Perfeito, pessoal. Vamos dar uma pausa e tomar uma água, se esticar um pouco, tá bom?
As tomadas de gravação são longas, durando horas ininterruptas muitas vezes, mas eles parecem se divertir. Mateus e Olívia, que fazem o suposto par romântico sempre conversam entre si, riem, tiram sarro um com o outro. Ele é muito carismático, e Olívia é querida por todos, então logo se deram bem, o suficiente pra isso se refletir até mesmo na atuação de ambos. Queria que minhas relações pudessem ser assim, fluidas, livre de impedimentos que eu mesmo acabo criando...
Mas aqui não é lugar para ficar pensando nisso, nem da mensagem que não respondi desde então.
— E aí, Mog – diz Camille sentando ao meu lado, com mais um dos copos de café grande – o que está achando?
— Ah...Não sei, tudo o que eles fazem pra mim está ótimo – rio envergonhada pela minha falta de conhecimento técnico.
— Se continuarmos nesse ritmo, acho que podemos fechar antes do tempo estipulado... – ela balança a cabeça pra frente, concordando consigo e virando pra mim – Onde é que você estava escondida todo esse tempo?
Se eu te contar, você não vai acreditar.
Meu telefone toca, e vejo que é Isolda. Peço licença e vou atender do lado de fora do set.
— Alô, Isolda? O quê? Desculpe, não estou ouvindo direito...
E era melhor que eu não tivesse ouvido mesmo.
— Certo, já estou indo aí – e desligo o telefone, colocando contra o meu peito, respirando lentamente e pausado para só assim voltar para o set – Camille, eu preciso resolver uma coisa urgente, tem algum problema eu sair por meia hora?
— Sem problemas, Mog, não precisa voltar hoje... – ela diz franzindo o cenho – Mas o que aconteceu?
— É... – Nem sei como dizer isso – problemas familiares.
— Precisa de ajuda? – ela já diz se levantando – Posso pedir pra alguém te deixar.
— Não, é... – Nego com a cabeça – Não se preocupe, até amanhã.
Que...
Merda.
Quando chego no local indicado pela pessoa no telefone, quem me recepciona é um homem com aparência bem comum, mediano. Sua feição é serena de alguém que lida tanto com isso que se tornou parte da rotina.
— Oi, é... Me ligaram daqui do telefone da Isolda.
— Você que é a Morgana? – diz ele me entregando o telefone – Está com algum documento em mãos?
Entrego minha identidade a ele, e ele gesticula para que eu siga ele no corredor até pararmos na sala onde ela está com mais outras cinco pessoas, e sai.
E aqui está ela, desacordada, tomando soro. Olho para essa sem expressão alguma. Não é como eu achasse que isso não ia acontecer, mas quando vemos acontecendo, é difícil de digerir, porque eu sempre acredito que vai ser diferente.
Mas também tento entender que não consegue se livrar dessa doença.
— O que você é pra ela? – pergunta uma mulher curiosa ao meu lado, com o filho acidentado tomando soro.
Seguro a fria mão de Isolda, e suspiro fundo.
— Irmã.
Soube por conta dessa mulher que ela chegou já apagada, carregada por dois rapazes do hospital, que por sua vez disseram que alguém a mandou para cá assim.
Diagnóstico? Coma alcoólico.
Eu não sei porque ainda insisto em acreditar nas suas mentiras. Deve ser porque é mais fácil crer que você um dia vai melhorar do que admitir que está se matando aos poucos, do pior jeito. O soro termina, e o enfermeiro coloca outro. Só no final do último que ela desperta, ainda bêbada, e ri ao me ver olhando-a.
— Maninha! – ela se levanta apoiando na maca – Que...
Estou com raiva, muita, mas eu preciso me controlar.
— Vamos embora, Isolda.
Ela olha pra mão, e ri da agulha enfiada no braço, que tira com naturalidade e se levanta. Peço um carro, e não digo nada no caminho, mas ela conversa com o motorista com tanta naturalidade que parece que o que aconteceu não é nada. Para ela, nada mais do que o habitual.
Mas fica ainda mais e extrovertida que o normal, e também explosiva, tanto que ela chega dando uma cantada no porteiro antes de subirmos. Ela usa roupas de festa e sua maquiagem está borrada, e o cheiro de álcool é notável em qualquer distância.
Só quando entramos em casa que sinto que posso falar o que quero.
— Você prometeu que não ia fazer mais isso, você... Mentiu pra mim de novo.
— Foi só um vinhozinho, maninha... – ela ri, apoiando as mãos em meus ombros, que me desvencilho com raiva – O quê, vai ficar com raiva? Não posso me divertir?
— Tu não leva isso a sério – expiro devagar para poder conter meus sentimentos – é tudo a porr* de uma festa sem fim pra ti.
— Sério que estou tendo que ouvir sermão da minha irmã mais nova sobre o que faço da minha vida? – ela fala com ironia – E você?
— Eu não estava na merd* de uma clínica de reabilitação, Isolda! – meu tom de voz sai acusatório, irritado, alto – Você, sim! – e seguro seus braços, balançando-os – Porr*, tu tá se matando aos poucos com essa merd*!
— Eu sei me controlar! – ela me empurra com raiva.
— Não, não sabe, nunca sabe a hora de parar!
— Você é a porr* de uma hipócrita, Morgana! – ela grita, apontando o dedo na minha cara – Mente pra todo mundo e agora quer se dizer melhor do que eu!
Cerro os dentes, e pressiono os lábios, tentando não me abalar por suas palavras grosseiras.
— Não vou levar a sério o que está falando... – dou as costas pra ela – Você está bêbada.
A decepção me assola a um ponto que sinto meu peito pesar como se usasse um colete de chumbo que me puxa pra baixo. Bêbada e possivelmente alterada com mais outra coisa.
— Você sabe que nós somos iguais! – ela despeja as palavras contra mim – Só que com a diferença que você finge ser uma coisa que não é.
Dou meia-volta e a encaro de frente, a ponto que ela dá dois passos pra trás.
— Então diga, Isolda... – minhas palavras reverberam entre nós – Em alto e bom som o que eu sou.
Ela segura meu queixo, balançando a cabeça em tom de sarcasmo.
— Você não passa de uma criança traumatizada querendo aceitação a todo custo – e afasta sua mão delicadamente de mim.
Como esperado, essa frase atinge meu peito como uma lança que o atravessa de uma ponta a outra, e o motivo é bem simples: ela não está mentindo.
Me afasto dando passos para trás, e sua feição é de quem se arrependeu do que falou no mesmo instante que falou, mas já foi dito. E sabem o que pessoas traumatizadas fazem quando ficam frente a frente com o gatilho?
Isso mesmo, fogem, exatamente como estou fazendo ao abrir essa porta, correr pelo corredor e descer pelas escadas porque a ideia de encontrar alguém no elevador me assombra, e andar o mais rápido o que posso pra passar por esse saguão e me enfiar no meio da noite onde ninguém pode me encontrar.
Lágrimas descem pelo meu rosto. Eu esqueço que as pessoas quando se sentem atacadas, não hesitam em se voltar contra você e te machucar como resposta. Quando vejo, já caminhei boas quadras longe de casa.
Parece que uma ferida antiga abriu no meu peito, latejando sem parar, o que me causa dor e me faz chorar ainda mais. Só paro de andar quando não tenho mais fôlego.
Não quero incomodar ninguém, eu... Preciso lidar com isso sozinha.
Eu não vou voltar pra casa.
CENA VI
Morgana tem onze anos, e está deitada na cama da sua irmã, debaixo de um edredom rosa, lendo Otelo. A mãe chega abrindo a porta do quarto, usando suas vestes de trabalho, e chama sua atenção.
A MÃE
Morgana, quero ter uma conversa contigo, agora.
Morgana se levanta sem dizer nada, colocando o livro de lado.
A mãe anda até a cama, e para na frente dela. Sua feição é odiosa.
A MÃE
Recebi uma ligação da sua escola dizendo que quer que eu vá em uma reunião amanhã... Sabe me dizer o motivo?
Morgana engole em seco, e abaixa o olhar. Fita os próprios pés, mas sua mãe puxa seu rosto para ela olhá-la nos olhos.
A MÃE
Eu estou falando contigo!
MORGANA
Eu não sei...
A MÃE
Não sabe?! Eu acho que sabe...
Ela se abaixa para encarar Morgana nos olhos, mas ela desvia. A mãe pega seu rosto e o segura com firmeza.
A MÃE
Você escolhe falar agora ou eu saber do pior jeito amanhã...
MORGANA
Não foi nada, mãe, eu juro.
A MÃE
Vai mentir pra mim?
E empurra a Morgana com força contra a cama. Ela cerra os dentes, batendo os pés enquanto caminha de um lado para o ouro.
A MÃE
Vou te falar pela última vez... O que aconteceu?
Morgana, mesmo tomada pelo medo transparente em seu rosto, cede ao pedido da mãe.
MORGANA
Me viram com uma menina.
A mãe emudece, e se aproxima dela de um jeito ameaçador. Morgana aperta as mãos contra as pernas, suando em demasia.
A MÃE
Fazendo o quê?
Morgana não responde.
A MÃE
Fala!
Morgana fecha os olhos na tentativa de ser mais fácil falar o que quer.
MORGANA
Não foi nada, mãe...Desculpe, eu...
Um tapa é desferido no seu rosto, e sua mãe a puxa pela camiseta.
A MÃE
Você o quê?! Você a beijou?
Sua voz é colérica e cuspida no seu rosto, e Morgana começa a chorar com medo. Isolda entra no quarto.
ISOLDA
Mãe, solta ela!
Mas ela acaba levando um empurrão, caindo por cima do armário, e a mãe de Morgana volta a bater nela com tapas enquanto ela se encolhe na cama, aterrorizada.
A MÃE
Eu não te criei pra isso!
Suas palavras são ditas pausadas entre um tapa forte e outro. Morgana entra em prantos, e seu corpo treme quando isso acontece, e Isolda a empurra com força para longe da irmã.
ISOLDA
Sai de perto da Morgana!
Mas ela é calada com outro tapa, suficiente para seu rosto virar e ela tropeçar para trás.
A mãe volta a bater em Morgana. Sua única reação é chorar e se encolher com medo enquanto vê, com os olhos repletos de lágrimas, a imagem da mãe a espancando.
Quando abro os olhos, sinto que eles estão úmidos. Toco meu rosto com a ponta dos dedos e vejo que acordei chorando. Também, sonhar com essa lembrança péssima, não tinha como ficar bem.
Me levanto, e me espreguiço. Preciso de um banho. Vou até o banheiro comunitário e o espero ficar livre pra poder usá-lo. Quando olho pra fora, vejo o dia raiando, e o senhorio pergunta se não quero tomar café. Estranhamente, ele foi com minha cara, mesmo aparecendo no meio da noite perguntando quando cobravam para eu ficar lá. Minha cara péssima deve ter ajudado para dizer que não custava nada, com a condição de que era um colchão no canto da sala do hostel e eu tinha que lavar a louça enquanto tivesse lá.
Não fiz nada demais nos últimos dois dias. Depois que fugi o mais longe possível de casa, peguei um ônibus de madrugada rumo a lugar nenhum. Quando desci, já de manhã, cheguei até aqui e, depois das minhas obrigações, vaguei por aí sem destino, tentando a todo custo me desvencilhar da minha vida. Passei por um sebo e comprei um livro indicado pela dona, o qual se mostrou uma leitura bastante aprazível.
Talvez eu esteja sendo egoísta, mas o que tem de errado em procurar a todo custo não se deixar levar por aquele vórtex cruel de tristeza e culpa que é carregada minhas lembranças afloradas? Só não quero sentir aquilo tudo de novo.
Sai sem celular, sem roupas a mais, só com documentos e alguns trocados. É só do que preciso. Dispenso o café, mas o acompanho com um suco e, depois de muito insistir, dou uma quantia em dinheiro para ele por ter me cedido o espaço. Saio de lá e caminho pelas ruas as quais não conheço ninguém.
Continuo sem querer olhar pra cara da Isolda. Toda vez que me lembro, me vem a imagem dela segurando meu queixo com aquele ar de desdém falando aquilo. Eu queria falar com Isabela, mas não quero incomodá-la. Estou naquele momento que tenho vergonha de mim e de minhas atitudes, e...
Muito menos ela.
Vejo algumas pessoas pegando um ônibus em direção a um rio. Como o dia está quente, resolvo segui-las e uma família, ao me ver sozinha, pergunta se não quero me juntar a eles, o que acabo aceitando. O que eu tenho a perder? Já estou há dias longe, dormindo na casa de alguém que não conhecia junto a outras pessoas, falar com estranhos é o de menos nessa situação.
O que me faz acreditar que, quando uma coisa acaba sendo ruim na minha vida, vem outra boa para compensar, porque eles acabam se mostrando solícitos mesmo eu pouco falando. Uma família composta de cinco pessoas que brincam, se diverte e divide o almoço comigo. A matriarca, mãe de três filhos e seu marido me enchem de perguntas da minha vida, mas não me incomodo, já que se tornou costume ter que omitir alguns fatos da minha vida. Quando disse o que fazia da vida, ficaram ainda mais entusiasmado, e me deram a alcunha de intelectual.
Ela me empresta a parte de cima do biquíni, e com isso, vou tomar banho, onde fico minutos flutuando, olhando para o céu azul sem nuvens. Uma das crianças vai até mim e me chama pra brincar de bola com eles, e não me vejo na situação de negar, afinal foram tão simpáticos...
E assim o dia passa, até sairmos de lá pelo final da tarde. Digo que quero os ajudar com alguma quantia de dinheiro, mas negam. Perguntam meu número para nos comunicarmos e digo que não o sei, mas peço para que anotem no livro. Nos despedimos assim que desço na parada em que subi.
Acho que me diverti. Não, eu certamente me diverti com esses estranhos. Eles foram tão legais e convidativos que me fizeram começar a querer acreditar nas pessoas novamente.
E lembrar que tenho que voltar pra casa porque, querendo ou não, ainda tenho trabalho a fazer e seria um desrespeito largar o projeto assim.
Vou até o terminal e pego o próximo ônibus que me leva para meu destino. Durmo o trajeto quase inteiro, e chego já de noite, provavelmente depois das nove, e decido ir caminhando pra casa pra tentar retardar meu encontro com Isolda, mesmo que seja um longo trajeto.
Apenas o meu corpo caminha. Minha mente está longe, em um lugar submerso, como se tivesse entrado em um estado de sonolência, negando ser desperto.
E não sei por quanto tempo andei, até que escuto um carro se aproximar devagar.
— Morgana? – escuto vir de um homem que desce o vidro do motorista – Morgana, é você mesmo!
Cerro os olhos pra tentar reconhecer, mas está escuro...
É o pai da Raquel, e ele me olha tão chocado que para o carro no mesmo instante. Ele abre a porta no carro, me parando, e paro assustada. Eu corro ou eu o cumprimento normalmente?
– Meu Deus... – ele coça a cabeça calva, nervoso – Onde é que você estava?!
— É... – Dou um passo pra trás, confusa com essa reação dele – O quê?
— Eu preciso avisar que te encontrei – ele pega o telefone com as mãos trêmulas.
Eu olho para aquilo tão confusa que ele percebe que não estou entendendo nada, e dou dois passos pra trás.
— Não, espere, por favor – ele gesticula para que eu pare, e guarda o telefone antes de fazer a ligação, e assim o faço – eu não vou ligar então, mas você pode entrar no carro? Aqui é perigoso.
Não recomendo ninguém a entrar no carro de um cara que só se viu uma vez, mesmo que ele seja pai de alguém próximo de você, mas dessa vez eu o fiz porque ele me parou no meio da rua visivelmente nervoso. Sinal que aconteceu alguma coisa.
Ele abre a porta do banco de trás para mim antes de entrar, e ele respira devagar, como se tentasse se recompor do que está acontecendo.
— Você sumiu – pelo que lembro, ele se chama Roney, e se vira pra falar comigo – por onde esteve?
Como ele sabe que não estava em casa? Engulo em seco e passo a mão devagar por minha roupa já suja e gasta.
— Eu... – nem sei o que dizer sem parecer estranho – sai?
— Não, você desapareceu – ele fala em um tom mais assertivo.
Acho que meus olhos arregalados de temor e meu corpo retraído já são uma resposta suficiente que não estou entendendo a sua reação, e ele nota. Ele encara pelo retrovisor, e dá um longo suspiro, deixando o ar sair pela boca.
— Me desculpe, Morgana... – ele começa a bater no volante com a ponta dos dedos – Você quer que eu te leve em casa? Deve estar cansada.
Não, não quero ir pra casa agora.
E isso é tão explícito que nego com a cabeça sem saber, e ele assente.
— Então... – e vira pra mim – Quer ir pra nossa casa? Tem alguém que quer muito te ver.
Meu coração para por um instante, e o olho pelo espelho que ele me encara.
— Vou levar isso como um sim.
E dá a partida, seguindo pelo caminho. Nos primeiros minutos, ficamos em silêncio, até que ele liga o rádio do carro e deixa a música baixa, e encosto minha cabeça no vidro fechado, vendo a rua escura passar rápido aos meus olhos.
— Sua irmã procurou sua vizinha de madrugada, depois que ela acordou, pra perguntar se estava lá. Ela negou, e elas pegaram seu telefone pra perguntar pra Raquel se ela tinha noticias suas, e ela disse que não... – e volta a me olhar pelo retrovisor antes de olhar pra frente novamente – desde então, elas andam te procurando feito loucas. Até no IML já foram.
Sinto uma ponta de remorso, mas era isso ou uma ida ao IML de fato.
— Eu imagino que tenha um bom motivo pra ter saído de casa assim, mas... – ele continua falando ao girar o volante – Posso te falar uma coisa?
Sinto meu peito queimar brevemente, e meu ar fugir por alguns segundos. Reação mais que esperada de temor. Será que se eu abrir a porta e pular nessa velocidade vou me machucar muito?
— Essas meninas se importam muito contigo – ele continua falando com uma voz passiva – sua amiga ontem mesmo estava chorando achando que você tinha morrido e não tinha achado seu corpo, e a Raquel...
Ele faz uma pausa, e me encara pelo retrovisor de novo.
— Eu não sei qual a relação de vocês, mas minha menina gosta muito de ti... Entende?
Entendo que continuar nesse assunto, vou pedir pra parar o carro e ir embora a esmo.
— Ela tem aquele jeito sério, veste uma capa de forte como ninguém, mas... – ele dá um riso contido – Sei que ela não tira a cabeça de como você está e... Está tudo bem?
Toda vez que ele fala dela, me lembro do seu abraço e do seu toque e consequentemente, essa onda de hormônios que vem como uma onda no meu corpo me deixa atordoada.
— Me desculpe – digo colocando a mão contra a boca, tentando respirar direito – jamais imaginei que causaria isso.
— Sei disso – ele continua dirigindo – não vou te julgar. Todo mundo às vezes quer desaparecer. Se eu, um velho, tenho vontade de largar tudo e dar uma folga, imagine você, uma jovem sem nada a perder?
O caminho se segue até pararmos em um condomínio fechado. Ele se identifica, e anda pelas ruas, dobrando umas três vezes até parar em frente de uma suntuosa casa em estilo moderno. Uma fachada branca com alguns pontos de cinza, uma grande porta de vidro na frente, gramado verde, luzes da frente ligada, sem cercas. Ele para o carro, abre a porta pra mim e estende a mão para que eu a segure.
Ele faz um gesto com o indicador com os lábios, como se pedisse silêncio de mim, e vai andando na frente. Paro na porta e a vejo de relance, sentada no sofá, assistindo um jogo em uma televisão de tela plana grande, mas logo pega o telefone, clica na tela e o joga no sofá de novo. Seu pai vai caminhando até ela, apoiando a mão em seu ombro, e ela olha para ele de relance.
— Quem tá ganhando? – diz ele olhando pra televisão.
— Não sei, eu... Não estou prestando muita atenção, mas deve ser o Nadal.
— Tem uma pessoa que quer te ver.
Ela olha séria pra ele, com o cenho franzido por detrás dos óculos.
— Quem a uma hora dessa?
Ele gesticula na direção da porta, ou seja, na minha. Tenho duas opções, que é ir embora sem dizer nada ou dar um passo pra frente e ficar. Recuo dando um passo pra trás, mas... Ela olha pra porta, se questionando se ele está falando sério mesmo.
Eu realmente quero ir? Com certeza ir embora pra mim é a solução mais óbvia, mas...
Lembro da conversa com Isabela, nós sentadas no chão, ela me falando sobre como nossa vida seguia um fluxo próprio. E talvez ele tenha me levado até aqui.
Coloco a mão na maçaneta e empurro a porta de vidro, dando três passos para dentro da casa. Quando levanto o olhar, vejo Raquel me olhando surpresa, e olhando pro pai antes de se levantar.
— Morgana? – diz ela caminhando, ajeitando os óculos como uma tentativa de saber se é o que está vendo mesmo.
Ela tem uma cara séria? Sim. Fechada e de poucos amigos? Com certeza, mas eu sinto meu peito se dissolver quando ela se aproxima de mim, com o olhar desacreditado, levando suas mãos até o meu rosto e me abraçando com firmeza, suspirando pesado.
Minhas mãos tremem próximo da sua cintura, mas tomo coragem e as deslizo por ela, abraçando-a e pousando em seu ombro. Seu cheiro, seu toque, seu abraço...
Eu esqueço de tudo.
Fim do capítulo
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Marta Andrade dos Santos
Em: 02/11/2022
Força Morgana não se deixe abater dar um chute na bunda da Isolada escrota.
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