Paixões de terça-feira
— Quando será a seleção dos atores? – diz o diretor elencado, um homem alto, barbudo e com o cabelo desgrenhado e roupas largas.
— Semana que vem – Jaqueline responde, mostrando a lista de personagens para ele em um papel, com a referência de cada um – o roteiro piloto já está pronto, os outros dois posteriores em desenvolvimento...
Ele pega o papel, e encara sem grande pretensão.
— Já tem algum nome em mente?
E volta os olhos pra mim. Não é estranho quando você, de repente, uma pessoa que pouco interage com os demais, vê que sua opinião tem influência em alguma coisa e o pior, que ela tem peso?
— Não... – balanço a cabeça lentamente em negativa – ninguém em específico, mas, se possível, que se encaixe no perfil dos personagens.
— Como assim? – ele cerra os olhos, roçando os dedos na barba ao olhar para o papel.
— Se tem um personagem com arquétipo tal, o ator que vai desenvolvê-la tem que seguir com ele...
— É uma boa – Jaqueline pontua, batendo a caneta na mesa antes de se esticar na cadeira – diz manter a representatividade deles, não é?
— Se tem um personagem transgênero, o ator tem que ser necessariamente um? – ele olha confusa – E se a personagem for lésbica, também?
— Por que não seria? – cruzo os braços, voltando meu olhar pra ele.
— Quer que a gente chegue com cada ator ou atriz e pergunte da sexualidade e gênero deles? – ele dá um riso irônico – Eles podem simplesmente mentir pra conseguir o papel...
— As pessoas querem ver representatividade – Jaqueline pondera – o mesmo de sempre já tem aos montes por aí. Deram aval pro roteiro justamente por ser ao contrário disso.
— Eu acho que é um tiro no pé – ele coloca o papel na mesa de volta – já tenho um casting em mente perfeito pra isso.
Caso não saibam, escritores, sejam romancistas, dramaturgo, poetas, o que forem, além de serem levemente soberbos, tem um tino ainda pior com suas obras: são ciumentos. Sei que no meu segmento a adaptação é mutável, mas...
— Quer dizer que pra você não importa se o ator não conversa com a realidade do personagem? – cerro os olhos, deixando o ar sair pelos lábios entreabertos.
— O que importa é se ele faz um bom trabalho, seja homem ou mulher ou o que quer que se identifique.
Olha a pose dele, como se isso fosse uma brincadeira. Cada personagem nesse roteiro foi pensado pra ser assim por um bom motivo, não por mera figuração.
— Qualquer atriz pode entrar numa audição e dizer que beija mulher e depois ir dormir com um cara.
Ele diz isso rindo como um deboche, andando pela sala. Jaqueline me olha de relance, e volta a olhar pra ele. Estou cansada disso.
Não aguento mais alguém que não entende o que quero dizer com isso impor alguma coisa. Como se não soubesse do que eu quero, ou se não tivesse noção do que estou escrevendo. Não é sugestão, é imposição carregada de ironia em um quê de “deixa eu te mostrar como faz” incessante.
— Morgana, você tem que entender que...
E é assim que descobrimos que nossa paciência tem limites.
— O que você tem que entender é que essa é a minha imposição – levanto da mesa, apontando para o papel de casting.
Ele para de caminhar e olha pra mim da cabeça aos pés, e ri.
— Desculpe, mas o quê? – ele dá com a mão no ar – Quer saber mais das coisas do que eu?
— Eu sou a pessoa que idealizou página por página disso aqui – boto a mão no roteiro que está na mesa – e se tem um personagem trans, eu quero um ator trans. Se tem uma personagem lésbica, eu quero uma atriz lésbica. Se não quer andar com os meus termos, desculpe, mas vou dar essa conversa como encerrada.
Juro que não sou impositiva assim, mas esse cara barbudo já me dá nos nervos passando a mão nessa barba o tempo todo, e agora com pinta de debochado? Não dá. Já vi meia dúzia igual a ele só hoje.
— Não precisa – ele fala com uma voz alta, indo em direção a porta, abrindo-a – que eu não vou perder meu tempo com vocês! É cada merd* que eu tenho que ouvir...
Ele bate a porta com força ao sair, e cerro as mãos apoiadas na mesa, não muito diferente dos demais que dizemos não. Um pouco mais alterado, talvez.
— Cara nojento – Jaqueline revira os olhos, mexendo no computador, e suspiro pesado. Já é o sexto do dia e nada. O anterior a ele nos chamou de lacradoras ou coisa assim e foi embora. Antes deu em cima da Jaqueline, e por aí vai. Mando mensagem pra Raquel falando que a reunião vai demorar mais do que eu esperava. Não quero desmarcar, já que estou até com a camisa dela...
— Quem é o próximo? – digo já olhando para o chão, deslizando as mãos pela mesa.
— É uma mulher – diz ela olhando pro currículo enviado no computador – novata, só gravou curtas até então, e participou da gravação de um filme. Ninguém relevante.
Ela se levanta, e chama a garota, que entra. Cabelo curto raspado dos lados descoloridos e um topete bagunçado que cai, óculos de armação preta redondos de acetato, usando uma camisa formal abotoada até o pescoço, um braço fechado de tatuagens coloridas, calças largas e tênis de cores diferentes. Também tem furos que indicam que usa piercings no nariz, nos lábios e na sobrancelha, mas que tirou para vir até aqui. Confesso que a olhar de primeiro tomo um choque, e Jaqueline só a encara de cima a baixo.
— Boa tarde – sua voz é fina, e ela é menor do que eu, sendo quase do tamanho de Jaqueline – eu sou a Camille – e estende a mão para nós, cumprimentando-nos – é um prazer estar aqui.
— Por favor, sente-se – Jaqueline gesticula cansada – quer água, alguma coisa?
— Ah não, muito obrigada – ela responde sentando-se.
— O que fez você nos procurar, Camille? – Jaqueline continua o diálogo que já decoramos de tanto que foi dito.
— Eu gosto da proposta da empresa e me apaixonei pelo resumo do roteiro. Acredito que sou ideal para fazer essa ponte do autor para o público.
— Esse é o sketch para os personagens – ela empurra o papel que já tem leves vincos de tanto que fora tocado – daremos alguns minutos para que dê uma breve olhada.
Ela olha para o papel, séria, arrumando os óculos, pensativa.
— Só quero saber uma coisa... – Camille toma um pouco de ar para si antes de continuar – Qual a ideia da roteirista com esses personagens?
Jaqueline gesticula para que, dessa vez, eu fale.
— Eles foram pensados para serem assim por um motivo – respondo – identificação para além de cumprimento de tabela.
Já falei isso tantas vezes que agora soa até natural.
— O elenco ainda não foi montado, certo?
— Ainda não – Jaqueline dessa vez responde – o roteiro piloto está pronto, os outros em desenvolvimento...
— Mas você quer manter essas características, não é? – ela olha para nós – Sei que tem muitos personagens do espectro LGBTQIA+, e aqui está especificado isso.
— A ideia é que o ator seja dentro do espectro do personagem – respondo, apontando para o papel, e ela assente.
— Essa personagem aqui – ela aponta para uma linha – por exemplo, ela é lésbica. A atriz tem que ser lésbica também, certo?
Concordo e ela empurra o papel de volta pra mesa, pressionando os lábios antes de voltar a atenção para nós.
— Bom... – Camille leva as mãos ao ar antes de apoiá-las na mesa – eu sou totalmente a favor. Se quiserem, podemos começar amanhã.
— Nenhuma objeção? – Jaqueline cerra os olhos, como se não acreditasse no que ouviu.
— Não – ela nega com a cabeça – ao contrário, eu só tenho elogios pra quem escreveu isso. Foi você? – e aponta pra mim, que concordo – É, imaginei.
— Trabalhamos em parceria do diretor com o roteirista principal com os adjuntos... – Jaqueline vira a cadeira para ela – Então, se fechar contrato conosco, tenha ciência de que o trabalho é em equipe.
— Está ótimo – ela sorri, como se a iminência de fechar contrato a enchesse de alegria – pra mim, já é uma satisfação de participar de uma equipe que consegue pensar além do que vemos por aí.
— Bem... – Jaqueline se levanta, e ela faz o mesmo – entraremos em contato até amanhã, certo?
Ela nos cumprimenta mais uma vez.
— Obrigada por me receberem.
E assim sai, deixando nós duas na sala novamente. Jaqueline, ao se sentar, vira-se pra mim.
— Então?
— Tem mais alguém além dela pra ser chamado? – pergunto apontando para a ficha, e ela nega – Bom, pra mim foi a que mais pareceu interessada.
— Sim, mas ela não tem experiência – ela balança o pescoço de um lado para o outro, alongando-se – tenho minhas dúvidas se ela vai aguentar o processo, e não dá pra ficar mudando de diretor.
— Você já viu alguma dos curtas dela?
— Ela enviou por e-mail, mas ainda não abri... – ela dá alguns cliques até chegar na pasta enviada – quer dar uma olhada? – dou de ombros e ela abre o arquivo.
O curta consiste em uma garota conversando consigo mesmo na rua em um monólogo interno. Nem eu nem Jaqueline achamos interessante, então passamos logo para outro, que é outras pessoas conversando. Apesar de ainda estar intimista, soa mais interessante ao ver que ela mostra o cotidiano.
Só no terceiro que realmente me vejo presa na narrativa. Uma garota vive uma rotina que começa normal, mas com o passar dos dias começa a se tornar angustiante a ponto dela, no final, tirar a própria vida sem que ninguém percebesse que ela desejava isso. O jogo de câmera cru, mas com cores pontuadas, é o que chama nossa atenção. Os focos de cena também, a ponto de você se sentir mergulhada naquele universo.
Exatamente a crueza cotidiana que procuro passar no decorrer os roteiros, com alguém olhando para isso e pensar que poderia estar acontecendo na sua vida ou de outra pessoa. Mergulhar na ficção é uma coisa, e fantasiar é outra completamente diferente.
— Por mim, é ela – digo assim que terminamos de ver o resto – foi o que eu mais gostei. O que achou?
— Ela tem potencial – Jaqueline diz fechando a aba no computador – só não sei se aguenta o rojão. Se ela tivesse um pouco mais de experiência, seria perfeito.
— Mas é melhor dar um voto a alguém que provavelmente vai nos ouvir do que ter que aturar mais um daqueles homens pretensiosos...
— Você tem um bom ponto, Morgana – ela ri com ironia – eu também prefiro isso. Bem.... – diz ela olhando para fora, o dia já escurecendo – eu vou dizer pra equipe que damos carta branca pra ela, e se tudo der certo, amanhã fechamos contrato. Já pode ir.
Levanto, e antes de me despedir, ela gesticula para que olhe pra ela.
— E descanse, porque, se tudo der certo, a partir de amanhã você não terá sossego assim.
Concordo com um aceno e saio, e enquanto desço pelo elevador, me pergunto porque não consigo conceber meus dias ocupados com trabalho, sobretudo com um que eu tenha um papel importante e, principalmente, trabalhando com alguém que mal conheço. Ficar em casa escrevendo e editando por si é uma coisa, é maleável, já ter que sair de casa e ter que decidir coisas e passar horas nisso... É bem estranho saber que algo que você imaginou sairá do papel e tomará vida na sua frente.
Caminho por algumas quadras, com uma das mãos ocupadas carregando uma maleta marrom gasta que Isabela cheia de papéis para serem lidos, assinados e revistos, me questionando se simplesmente não posso jogar eles em um canto e terminar de ler meu livro. Será que estou muito atrasada? Aperto o passo dobrando a rua, desejando que não.
Chego na frente do local marcado, com a respiração ofegante. Odeio me atrasar, mas realmente não consegui sair mais cedo. Olho ao redor do lugar parcialmente cheio, e a vejo sentada na mesa do final, com um café na mesa. Ela deve ter saído do treino direto pra cá, já que está usando seu moletom esportivo e sua raquete no case colocada ao seu lado, olhando distraída para fora.
Desvio de algumas pessoas até chegar na mesa, e sento à sua frente, chamando sua atenção.
— Me desculpe, eu... – digo ainda ofegando – demorei muito?
— Só uns quinze minutos – ela olha pro relógio – não se preocupe. Como foi lá? – e levanta as sobrancelhas.
— Bastante... – cerro os olhos, tentando respirar pausadamente – estressante, mas acho que deu pra resolver. Acho. Você já comeu?
— Não, estava te esperando – e aponta o cardápio pra mim. Olho para os nomes ali escritos, mas balanço a cabeça, aturdida. A imagem daqueles homens falando alto reverbera na minha cabeça.
— Acho que vou querer um sanduíche natural, um bolo e um chá – encosto-me no banco, e ela dá um sorriso de canto.
— O que te deixou estressada?
— Ver um monte de homem parecido querer saber mais do que você sobre algo que você mesmo criou...
— Bem-vinda ao mundo dos negócios... – ela diz, olhando para o cardápio – Algum já te chamou de louca ou perguntou se você está de TPM? – nego – Não? Então é questão de tempo.
— Teve uma hora que fiquei puta, sério – reviro os olhos, soprando o ar pra cima – se ele não tivesse dado um chilique e saído batendo a porta, que eu tinha ido embora.
— Quiseram modificar seu texto? – ela olha por cima do cardápio.
— Quase todos falaram que não tinha necessidade do ator ou atriz fazer jus ao personagem...
— E necessariamente precisa? – Raquel levanta uma das sobrancelhas, e coloca o papel do lado.
— Nesse caso, sim – apoio meus braços na mesa – um dos principais é transgênero e isso dá todo um peso na história. Como é que vão querer colocar alguém que não seja?
— Mas um ator não estuda justamente pra interpretar o que dão?
— Sim, mas isso não é colocado à toa na história – bato com os dedos na mesa – e se tiver a oportunidade de colocar alguém que saiba o peso disso, por que não? Aí pronto, falaram que quero lacrar, que vivo numa lacrosfera...
Raquel começa a rir, tentando se conter pressionando os lábios.
— Aí me chamaram de um militante por que eu quero que os atores façam jus ao personagem – e então ela ri ainda mais – Não, é sério, o que tem de errado eu querer que alguém olhe pra um personagem e se identifique com ele? Não tem coisa mais frustrante do que descobrir que o ator que faz um papel não seja nada a ver com aquilo.
Como eu e Isabela procurando a cada atriz que fazia o papel dos filmes que assistimos e a frustração ao saber que a maioria esmagadora era hétero.
— Quer dizer que pra você é importante que o ator faça jus ao personagem?
— Tem que ser – levo as mãos para o ar antes de as posicionar na mesa novamente – além de que dá o reconhecimento para as pessoas certas, não acha?
Raquel meneia com a cabeça, concordando.
— Acho que vou fazer nosso pedido... – ela se levanta – Já volto.
Não demora muito, e ela se senta no lugar em que estava, com a feição em dúvida.
— Digamos que tenha um personagem gay... O ator tem que ser gay também?
— Eu fiz uma pesquisa e vi que... – digo abrindo a maleta – poucas pessoas do espectro LGBT estão inseridas no mercado de trabalho, principalmente os transexuais – e aponto para um papel com esses dados impressos, mostrando pra ela – então, se eu estou falando de uma história assim, por que não posso dar voz pra pessoas que realmente são assim? Pra mim, seria uma hipocrisia do caramba. É como se eu quisesse fazer isso só por fazer, e não pela importância de contar o que quero contar com o roteiro...
Raquel me encara séria, com o queixo apoiado nas mãos.
— O que você acha disso? Faz sentido pra ti? – pergunto pra ela, guardando o papel na maleta.
— Eu não entendo nada disso, mas acho que você tem razão – e dá com os ombros, ajeitando a postura com as costas apoiadas no banco – se uma jogadora se assume homossexual, por exemplo, vai dar voz para outras que não teriam coragem de fazer isso, além de toda uma identificação...
— Isso! – digo mais animada – Representatividade. Eu sei que a história não é voltada pra isso, mas é... Importante. Eu acho que seja importante, pelo menos.
— Então você foi lá e defendeu seu texto com unhas e dentes de quem achava o contrário? – ela levanta as sobrancelhas, sugestiva, e rio envergonhada.
— É, foi tipo isso...
— Então você se identifica com alguma coisa que escreveu?
— Bom, sim, mas eu não me coloco no olhar de um personagem nem nada do tipo, é mais como a minha...
Só quando eu respondo entendo o que ela quis dizer com isso, e minhas palavras cessam na hora.
“Você se identifica com o que escreve?” é igual a “você também está nesse meio?”
— Visão de mundo – as palavras saem sem que eu perceba, já engatilhadas na língua. Minhas bochechas queimam, e olho para o chão sem reação. Talvez não seja isso que eu esteja pensando, afinal.
— Hm... – ela concorda com um aceno – então deve ser bom mesmo – e dá um tímido sorriso.
— Eu trouxe a versão resumida e adaptada, eu... – abro a maleta e puxo uma pequena resma costurada junto a uma capa improvisada – espero que goste.
Ela olha para o material, e dá uma leve balançada antes de guardar.
— Se não, posso dar minha sincera opinião ou você virá na minha casa à noite me sufocar? – Raquel diz rindo, e faço um bico com os lábios.
— Eu me certificaria de trancar bem as janelas antes de falar, então.
Rimos e nosso lanche chega. Mais uma vez, valeu toda a propaganda que ela fez, chega suspiro de tão bom que está.
— E a sua vizinha, a Isabela... Como ela está? – diz ela cortando seu lanche ao meio antes de comê-lo.
— Anda meio pilhada com as coisas da faculdade, mas... Está indo.
Resumindo, ela está uma pilha de nervos desde do encontro com a tal guria. Isolda falou que quando chegou em casa, escutou os barulhos suspeitos de batidas na parede junto a xingamentos ditados de forma bem... Sugestiva.
Não se sabe até que horas foi isso, mas deu pra notar que ela dormiu e foi embora logo depois, deixando uma Isabela desnorteada e repleta de marcas pelo corpo, sobretudo nos pulsos e no pescoço, até onde deu pra ver. Não tive tempo para conversar com ela porque, por conta do nosso sumiço para nos debruçarmos diante a sétima arte e acabou atrasando a entrega de parte do seu projeto e nisso, o seu eventual sumiço. Porém, já dá pra saber que ela está passando por problemas internos só pelas playlists que ela anda ouvindo desde a ida dela.
As mãos de Raquel ainda estão repletas de ataduras, acho que até mais do que da última vez que nos vimos. Ela as apoia sob a mesa, e levo meus dedos até a superfície áspera das fitas.
— Você está melhor? – seguro sua mão direita – a que tem mais ataduras – esfregando com delicadeza o polegar por ela.
— Não muito diferente da última vez – ela dá com os ombros, olhando de relance para as mãos. Levo meu polegar até seu anelar, tocando a mancha arroxeada dele.
— Por que suas mãos ficam assim? – sigo com meu ele até os nós de seus dedos, passando suavemente por cada um dos quatro.
— Acabo forçando minhas mãos, sem contar o impacto com algumas coisas, certos exercícios que pratico... aí rola isso, mas não é nada demais, já me acostumei – e vira a palma da mão para cima, tocando a minha com leves tapinhas.
Na verdade, só quando a vejo fazendo isso que noto o que fiz. Quer dizer... Isso não me incomoda mais. Já nos abraçamos, falei um tanto da minha vida, até coisas que não compartilho, isso não é nada demais. É natural nos sentirmos mais à vontade na medida que convivemos, não é?
Terminamos de comer, e ouço ela falar sobre o treino de hoje, mesmo sem entender metade dos termos que ela usa. Completo falando do que aconteceu além da raiva que tive. Quando saímos, ela sugere esticar um pouco a conversa caminhando um pouco. Como estamos no centro da cidade, o lugar no fim do dia costuma ser mais movimentado, mas ainda assim não é um grande problema. As pessoas desviam de nós, e assim seguimos caminhando.
— Quer carona até em casa? – ela puxa as chaves do carro do bolso.
Concordo, e ela clica no botão do controle, destravando-o. O carro é diferente do outro dia que o pai dela a buscou. Apesar de ser um modelo mais modesto, ele tem um cheiro de novo misturado com o seu perfume. Sento no banco de carona, e ela dá a partida, e logo que ele liga, a música de batida incessante e vocal a qual nunca consigo entender o que é dito – gutural, segundo palavras dela – começa. Sim, é disso que ela gosta.
O caminho até em casa não é muito longe, e a música está baixa, passando para outra mais harmoniosa. Seu apego musical só pode ser comparado ao apego que tenho por Shakespeare... Sério, quem não leu ele na vida deveria sair daqui e procurar por alguma obra dele pra ontem.
— Eu não prometo ler tudo hoje, mas vou tentar ler ainda essa semana...
— Sem pressa – digo olhando de relance pra ela antes de voltar a olhar pra janela – vai no seu ritmo.
— Ele é um pouco lento, serve? – Raquel faz uma careta sem tirar a atenção da frente.
— Diz isso me conhecendo? – retruco, e ela dá um dos seus sorrisos acanhados, aqueles que não mostram os dentes, só puxam os lábios para o canto e nega com a cabeça, rindo, como se concordasse com aquilo em silêncio.
Ao pararmos na frente do prédio, puxo da maleta sua camisa, guardada com afinco em uma sacola zip-lock que peguei da vizinha para não ter riscos de sujar. Ela ri, e a afasta de volta pra mim.
— Pode ficar com ela.
— Não – afasto de volta pra suas mãos – é sua, eu não posso...
— Eu te vi usando naquele dia – ela cerra os olhos – fica melhor em você.
— Mas... – não é a hora mais apropriada pra ficar com vergonha, mas ainda assim fico – Você acha?
— Tenho certeza – e dá um sorriso confiante, como se dissesse pra mim que está realmente falando a verdade – e qualquer coisa, se você parar de falar comigo, já vou ter uma desculpa pra falar contigo.
— Acho impossível eu querer parar de falar com você... – digo revirando os olhos, rindo, e ela continua rindo de volta – mas tudo bem.
— Nunca se sabe.
Devolvo o fone em suas mãos, mas...
Tenho a impressão de que não quero sair assim.
Estico meus braços até ela, provavelmente a deixando surpresa por esse gesto sair de mim.
— Obrigada – sussurro para ela, apertando-a ainda mais contra meu corpo. O cheiro de brisa do mar me invade, e sinto o arrastar de suas mãos delicadamente por minhas costas até que as sinto pressionar.
Me afasto devagar e...
Próximo demais. Sinto que pressiono minhas unhas levemente contra o seu casaco antes de desvencilhar de vez.
— Na próxima, você escolhe o que vamos fazer, tá?
— Tem certeza? – digo ainda surpresa por esse meu gesto, e ela concordo com um gesto.
— Sim, mas nada que envolva uma leitura de peça ou coisa do tipo – reviro os olhos, e ela dá seu riso contido, balançando a cabeça – Até a próxima.
Saio do carro acenando enquanto minha outra mão carrega sua camisa e minha maleta. E o frio na barriga que senti ainda há pouco.
Não estou acostumada com tanta proximidade assim, e muito menos de me sentir à vontade assim com alguém. Não que eu não me sinta à vontade com Isa, mas...
Pessoas diferentes, contextos diferentes. Depois de dar meu oi pro porteiro e subir, abro a porta de casa e me deparo com o frio da sala desabitada e a luz desligada, mas na casa da vizinha...
Não está muito diferente. Isabela está no que ela chama de bad trip. Eu juro que não quero incomodar, mas... Vê-la assim está sendo doloroso.
Bato em sua porta, mas ela não ouve, então eu bato com mais força.
— Pode entrar.
Sua casa está uma bagunça, mas não a bagunça habitual de coisas fora do lugar, tinta, e sim roupas espalhadas pelo corredor e uma Isabela jogada no sofá, vestindo uma regata gasta e shorts que deviam pertencer a algum pijama. Na sua mão, uma garrafa de um litro e meio de vinho pela metade, e sua feição olhando para o nada. Tem pilhas de pratos sujos pela mesa, copos, mais roupa e muito papel rasgado, junto com tubos de tinta espalhados pela bancada. A única luz ligada é a da cozinha, já que nem a da sala onde ela se encontra, está ligada.
Sento ao seu lado, coloco minhas coisas na parte desocupada do sofá, mas ela continua olhando sem expressão pra cima. Ela está cheirando igual a Isolda nos seus piores dias. Tiro de suas mãos a garrafa de vinho, mas nem assim ela me olha.
— Quer me contar o que aconteceu?
Ela não responde. Há sacos de salgadinhos espalhados perto da televisão, assim como de doces e de mais garrafas de bebidas. Suspiro e me levanto, indo até o armário, tirando um saco de lixo médio na cor preta, e começo a juntar as garrafas que se acumulam.
— Estou tão ferrada...
Olho de relance ela, e continuo o que estou fazendo, virando as garrafas que ainda tem algum líquido na pia.
— Não consigo parar de pensar nela, Morgana – e se vira pra me olhar, abraçando uma de suas almofadas – não sei o que fazer.
— Mas o que aconteceu? – pergunto ainda catando o lixo pela casa.
— Nós trans*mos até o amanhecer – sua voz fica embargada – depois ela disse que foi um erro e que era melhor nos afastarmos.
— Sério? – não esperava por esse desfecho – Mas por quê?
— Porque toda vez que nos víamos, ela sentia tudo de novo e... – Suas palavras falham, e ela pressiona os lábios – sempre acabava sofrendo pela minha indecisão.
Não estou no papel de julgar ninguém, mas não condeno a tal da guria. Você se apaixona por alguém, sabe que ela gosta de ti, mas ela não tem coragem de dizer para os outros. Eu me sentiria usada... Me sentiria? Eu já me senti, e sei como isso é horrível.
Mas também entendo o medo da Isabela. Apesar de ela ser alguém que supostamente anda com as próprias pernas, a aceitação da família ainda é importante, mas...
— Você acha justo viver assim? – pego a garrafa de vinho. Ela protesta, mas dou as costas e despejo o conteúdo na pia da cozinha – Eu não acho que você mereça isso, e outra... – continuo vendo o líquido cair lentamente – Se beber até cair fosse a resposta de alguma coisa, Isolda estava feita na vida.
Ela vira a cara como uma criança que faz birra, mas continuo.
— Isa, se você gosta tanto dela assim... Por que não?
— Meus pais nunca mais falariam comigo, e seria expulsa da família – ela fala em um sussurro contido, se enfiando ainda mais no sofá e faz menção de querer chorar – sou uma frouxa, uma covarde, uma fuleira que nem ela diz...
“Ter medo é normal, é nossa primeira reação com o desconhecido, mas deixar que o medo dite as regras da sua vida já não é normal.”
— Mas você não prefere arriscar na incerteza e ser feliz sendo quem você é? Digo isso porque você teve coragem de fazer o que ama mesmo contra a vontade deles, então...
Vejam, eu não faço ideia do que estou fazendo da minha vida, mas estou dando conselhos como se realmente soubesse do que estou falando.
— O que você quer fazer? – aponto para o meu peito – Do fundo do seu coração, sem pensar no que falar.
Isso me ajudava na terapia quando eu travava com um dos vários assuntos da minha vida.
— Bah, ir até a casa deles e falar que gosto de mulher e acabou! – e faz um barulho descontente do fundo da garganta – Sim minha mãe, as vizinhas nunca mentiram quando me chamavam de sapatão porque eu beijava mesmo a filha de uma delas... – e sua voz vai emudecendo conforme vai confessando isso.
— Vai mesmo ou vai fazer que nem a menina do filme que mentiu até perder a noiva e voltar atrás? – faço uma cara de desaprovação, e ela logo discorda.
— Bah, claro que não! Não sou frouxa daquele jeito.
Dou um sorriso acanhado, vendo que ela percebeu o que quis dizer, e ela dá seus grunhidos insatisfeitos antes de abrir seus braços e me toma em um abraço apertado.
— Ah, guria, tu é tri afu... – e me aperta com mais força – Gosto muito de ti.
A bebida costuma te deixar sem filtro, então vou levar em conta que ela está falando a verdade. Isabela é a pessoa mais amável que conheço, o que me faz ter certeza que é sua má influência que está me fazendo ter calor no coração.
— Então em breve a caravana saíra daqui de casa – e chacoalha meu ombro devagar ao se afastar de mim – eu, você e o poder lésbico nos guiando pelo caminho.
Ouvir esse termo ainda me deixa constrangida, mas com o tanto que ela naturaliza, estou me adaptando melhor do que imaginei.
Só agora ela repara no que está no sofá, e pega a camisa na sacola, olhando curiosa.
— É teu? – diz ela balançando o item em mãos – Comprou agora?
— Ah, não, eu... – sinto minhas bochechas corarem levemente ao lembrar do contexto em que isso me foi entreguei – ganhei da Raquel.
Isabela faz um barulho longo e sugestivo, e reviro os olhos.
Ela gesticula se pode abrir. Quando digo que sim, ela abre o lacre, tira a camisa da embalagem e a levanta.
— Teve um contexto pra isso ou ela só te deu mesmo por dar?
— Eu... Peguei emprestado, e ela disse que podia ficar, que... Tinha ficado bom em mim.
E mais uma vez, o barulho sugestivo que sai de sua garganta. Cerro as sobrancelhas, séria, e ela o transpassa por minhas costas, deixando-os em meus ombros.
— É, ela tem razão. Tu fica gatinha de xadrez mesmo.
Não sei lidar com elogios, então me presto a ficar sem graça e menear com a cabeça. Isabela volta a se deitar no sofá e apoia a cabeça na mão direita, encarando-me.
— Me conta como foi a reunião, deu tudo certo?
— Não muito... – cerro as sobrancelhas, revivendo os traumas recentes de lidar com as pessoas – pra falar a verdade, a maioria não passa de pessoas pretensiosas que querem te menosprezar a todo custo se achando melhor de uma coisa que você mesmo fez...
— A la pucha! – ela dá com os ombros – Estava no teu trabalho ou no meu?
Fim do capítulo
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