Diga meu nome por Leticia Petra e Tany
Capitulo 1 - Disputa.
Agosto de 2022, Belo Horizonte.
Olhei para o relógio prateado em meu pulso e faltava pouco para as oito da manhã. As portas do elevador se abriram e como de costume, estava cheio, barulhento, cumprimentei as pessoas que ali estavam. Todos com a aparência cansada, aqueles últimos dias foram puxados, todos os cuidado que já tínhamos foi redobrado por causa da varíola, mas um mal que infelizmente se instalou e que esperávamos vencer.
E ainda estávamos nos recuperando do anterior.
Haveria uma reunião com o meu pai em uma hora, entretanto, resolvi me adiantar e pelo pouco que ele me contou, era algo sério. Deixei a minha bolsa em minha sala e fui até o escritório de seu Joaquim.
— Bom dia, pai. – Ele ficou de pé assim que entrei.
— Filha! Bom dia. – Me aproximei e fui abraçada com carinho. — Você não chega atrasada nunca. Não vou tomar muito do seu tempo. Senta, sei que ainda tem uma cirurgia às dez, então serei breve.
— Tudo bem, papai. Confesso que estou muito curiosa. – Ele sorriu, passando a mão sobre a cabeça.
Os fios que já foram extremamente pretos, agora estavam grisalhos.
— Tanto que não aguentei até o horário que marcamos.
Ele riu.
— Vou direto ao ponto, Lara. A diretoria do hospital irá mudar e eu indiquei o seu nome. – Abri a boca de leve. — Alonso indicou a filha e o Patrick fez o mesmo. Haverá uma reunião para levar os seus nomes oficialmente ao conselho. Se for da sua vontade, filha, quero que represente a nossa família.
— Papai, eu nem sei o que dizer. – Ele voltou a sorrir.
— Se prepare, o conselho do hospital não é fácil e analisarão todas as informações que tiverem ao seu dispor. – Levantei, indo até ele.
— Obrigada, papai. Obrigada por me dar essa chance. – Beijei sua face. — Obrigada por sua confiança em mim.
— Acredito no seu potencial, filha. Sei que será uma ótima diretora. – Senti os meus olhos arderem. — Te amo.
— Te amo, papai. Prometo que não vou te decepcionar.
Sai de seu escritório direto para a ala da pediatria. Eu estava muito feliz com a possibilidade de ser diretora do hospital. Há 20 anos, o meu pai e seus amigos se juntaram em uma sociedade e ergueram um dos hospitais mais importantes de Belo Horizonte. Juntos, criaram um legado inquestionável.
— Já viu que há novos residentes? Tem um carinha muito bonito, uma pena que só fale besteira. É como dizem: Deus não dá tudo. – Antonella rolou olhos.
As vezes pareciam verdes, outros momentos um mel clarinho.
— Você não tá muito longe da sua ala? – Ela ergueu a sobrancelha bem feita. Aliás, o que em Antonella não era? — Ah, tem uma residente bem o seu tipo...
— Cala essa boca, Antonella. – Olhei para todos os lados e a cretina riu. — Vim aqui te contar uma novidade, mas vou deixar pra depois.
— Doutora Pinheiro, a sala de cirurgia está pronta. Seu paciente já foi preparado e iremos desloca-lo até a sala de cirurgia.
— Obrigada, Luma. – Tentei sorrir.
A enfermeira se afastou.
— Te odeio, Antonella...
— Odeia nada! Agora vai lá, doutora. Preciso ver os meus pacientes... – Ela se afastou.
Passei a mão sobre a cabeça, rindo de nervoso.
A cirurgia durou pouco mais de três horas e foi o sucesso esperado. O paciente havia fraturado dois dedos dos pés em um acidente de trabalho, resultando em uma fratura exposta mal cuidada, que com o tempo passou a causar muito desconforto. Agora as dores seriam apenas lembranças ruins. Ainda fiz mais algumas cirurgias mais simples, antes de encerrar.
Cheguei em casa pouco depois das 17:00hr.
— Você vai deixar a ortopedia se virar diretora?
— Ana, que susto! – Levei a mão ao peito.
— Trouxe esse chá. – Ela me olhou de forma inocente.
— O que você quer? – Minha irmã sorriu.
— Me meti em um problemão e não sei como resolver. – Franzi o cenho.
— Que tipo de problema, Ana? – Peguei a xicara.
— Têm umas garotas na escola me enchendo o saco. Hoje elas passaram do limite e eu soquei a cara de uma delas na saída. – Ergui as sobrancelhas. — Nada muito grave, talvez um sangramento nasal...
— Ana...
— Me ajuda, por favor. A mamãe não pode saber disso, Lara, ela vai me matar. Você melhor do que ninguém sabe o quanto ela não sabe conversar, é sempre julgamento e você precisa ser mais assim, ser mais assado...
Ana imitou a nossa mãe.
— Por qual motivo elas andam pegando no seu pé e eu quero a verdade, Ana. – Minha irmã olhou para os próprios pés por alguns segundos.
— Por causa do meu peso. Elas me apelidam de tudo que remete ao meu peso. – Fechei o meu punho com força. — Antes era por ser gorda e agora por ser magra demais.
— Amanhã vou te buscar na escola e você me mostra quem são. – Ana me olhou.
— Tá falando sério? Mas o que vai fazer? – Aspirei o ar com calma.
— Não se preocupa com isso. Amanhã é a minha folga e estarei lá. – Ela sorriu.
— Obrigada, Lara.
Minha irmã deixou o meu quarto.
O ser humano é mesmo mesquinho, pega as nossas inseguranças e as usa contra nós sem a menor piedade. Era cruel demais usar algo como a aparência para fazer alguém se sentir um nada.
— Eu pego vocês...
Sentei na poltrona, vi o nome de Antonella aparecer na tela do meu celular. Atendi e a minha audição foi preenchida por um barulho altíssimo. Afastei o aparelho, o colocando no viva-voz.
— Desculpa o barulho, Lara, mas o meu chuveiro queimou e o meu vizinho tá consertando. Um cano estourou também e tá tudo uma merd*.
— Um vizinho? – Minha amiga riu.
— Relaxa, que ele só tem quinze anos. Sempre vem fazer alguns serviços aqui. – Fui até o banheiro deixar o roupão. — O que vai fazer amanhã?
— Pela manhã vou correr e depois irei a escola da Ana. – Voltei para o quarto.
— Escola da Ana? Algum problema?
— Algumas garotas estão fazendo bullying com ela por causa do... você sabe. – Antonella conhecia toda aquela trajetória. — Ela revidou e agora tá com medo da menina contar pra diretora e os pais, e a nossa mãe assumir a frente. – Desliguei o abajur, me acomodando em minha cama.
— Eu vou com você. Vamos resolver isso juntas. – Sorri.
— Antonella...
— Isso não foi um pedido, Lara. – Desisti de refutar.
— Ela sai ao meio dia... – O cansaço começava a me vencer. — Até amanhã.
— Até, Lara...
Não demorou nada para cair nos braços de Morpheus. Quando acordei no dia seguinte, o relógio marcava sete horas. Tomei um banho rápido, comi algo na cozinha e sai para me exercitar. A minha cabeça estava o tempo todo na conversa com o meu pai.
Mamãe já estava sabendo? Provavelmente. Ela sempre sabia de tudo.
As filhas de Alonso e Patrick também eram “candidatas” a diretoria. Nicole, a filha de Patrick, trabalha no hospital há mais tempo que eu. Sempre de nariz em pé, não aceitou as minhas tentativas de aproximação. E a Yasmin? Nem me recordava da última vez que a vi. O meu pai havia dito que ela era gerente de uma empresa internacional. Éramos próximas quando criança, mas tudo mudou, principalmente depois que ela se assumiu. Durante muito tempo, ela foi assunto nas rodinhas do nosso ciclo de amizade.
Eu me afastei, temi por coisas que até hoje, não tive coragem de resolver.
— Senhorita Lara, sua mãe chegou há pouco. – Ingrid me informou.
— Onde ela está? – Olhei para o jardim.
— No quarto...
— Obrigada, Ingrid.
A relação com a minha mãe não era a que eu sonhava, jamais foi. Sempre me esforcei ao máximo para agrada-la, ser alguém que lhe desse orgulho, mas pelo que parece, nunca será assim. Ana desistiu primeiro e eu admirava isso nela: sua determinação.
Me faltava para algumas coisas, principalmente para ver que eu era dona de mim mesma.
— Bom dia, mamãe. Como foi a viagem? – Não me atrevi a entrar.
— Cansativa. Seus avôs mandaram um abraço. – Ela nem ao menos se virou, continuou arrumando as malas. — Soube que vai disputar a vaga de diretora do hospital. Não estraga tudo, Lara.
Olhei para as minhas próprias mãos.
— Não farei...
Nunca mudaria...
Fui para o meu quarto, tomei um longo banho e quando faltava pouco para o meio dia, ouvi a buzina do carro de Antonella. Ela frequentava a nossa casa desde que viramos amigas, então sua entrada já não era mais anunciada. Desci rapidamente, entrando no veículo e ela não demorou a dar partida.
— Pela sua cara, a babaca da sua mãe já voltou de viagem. – Coloquei os meus óculos escuros.
— Não fale assim dela. – Aspirei o ar com calma.
— Você precisa parar de venerar ela, Lara. Você precisa mesmo parar...
— A Ana diz a mesma coisa. – Não era simples assim.
— E ela tá totalmente certa. – Sim, eu sei.
O caminho até a escola foi feito no mais absoluto silencio. Descemos, esperando Ana Clara aparecer. Não demorou muito para acontecer, mas ela foi parada por outras três garotas antes de chegar até nós.
— Você tá me devendo, esquelética. – Uma menina alta, de cabelos curtos, a segurou pelo braço. — Tá vendo o que fez? Vamos contar pra diretora e você vai ser expulsa.
— Acho bom você solta-la. – A menina me olhou e rapidamente largou a Ana. — Qual é o seu nome, garota? – Ela estava com o olho roxo, assim como o nariz.
A minha irmã fez um belo estrago.
— Samara...
As outras duas recuaram.
— Escuta, Samara, eu sou a irmã da Ana e já tô sabendo do que vocês andam fazendo. – As olhei por alguns segundos. — O negócio é o seguinte... vocês vão deixa-la em paz, ou eu vou até a diretora contar sobre o bullying, daí os seus pais vão saber.
— Ou a gente pode encher as três de porr*da. O que acham? – Antonella falou tão séria, que até eu acreditei.
— Tudo bem, a gente vai deixar a Ana Clara em paz. – Uma baixinha respondeu. — Ana, desculpa, a gente não vai mais te perturbar.
— Nunca mais... – A alta de cabelos curtos, falou atropelado.
— Então estamos entendidas assim. Não que a Ana precisasse de ajuda, afinal, pelo que vejo na sua cara, ela sabe se defender muito bem, mas para que não ocorra mais incidentes, esta conversa valeu.
— Caiam fora... – Antonella mandou e imediatamente, as três saíram da nossa frente.
— Porr*... vocês capricharam. – Ana sorriu. — Até eu senti medo do seu blefe, Antonella.
— E quem disse que foi blefe, gatinha? – Minha amiga piscou para ela. — Agora, entra aí.
Entramos no carro.
— Escuta, gatinha, eu não quero ser chata ou inconveniente, mas preciso falar. – Antonella deu partida. — Você já se olhou no espelho? Assim, pra valer? Pois faça isso, Ana Clara. Você é linda, o seu corpo é lindo. Tenho certeza que deve ter muita menininha apaixonada nesse cabelão lindo.
Não pude deixar de sorrir.
— Acho que vou topar a terapia... – Ana falou. — E a academia.
— É isso aí, gatinha. – Olhei pelo retrovisor e vi o sorriso da minha irmã.
— Obrigada pela ajuda, galera. Foi muito legal... elas quase se borram nas calças. – Ela gargalhou, nos fazendo rir também.
Antonella nos deixou em casa e foi para o hospital. Quando descemos para almoçar, os nossos pais já nos esperavam. Meu pai fazia algumas perguntas sobre a viagem para a minha mamãe.
— O Luke resolveu se revoltar contra a família. – Luke é meu primo, filho da tia Luciana, única irmã da minha mãe. — Aquele menino não tem nada na cabeça.
— E o que ele fez de tão grave? — Meu pai perguntou.
— Levou o tal do namorado pra conhecer o papai e a mamãe. Uma falta de vergonha sem igual... – Segurei o garfo com mais força. — Esse mundo tá totalmente do avesso.
Ana me olhou, revirou os olhos.
— Mas querida, o Luke é um rapaz maravilhoso, até mesmo já é um empresário de muito sucesso em Washington. – Minha mãe torceu o beiço.
— Tanto potencial desperdiçado. Ele deveria procurar um psiquiatra, sei lá. Do que adianta ser tão inteligente para os negócios, mas ser um... qual a palavra que usa? Homossexual? – A fome que sentia, simplesmente passou.
— Querida, pare por aqui. – As feições do meu pai mudaram. — Não admito esse tipo de palavras ofensivas dentro de casa.
O clima na mesa ficou sufocante.
Eu nem quero imaginar o que ela faria se soubesse que ambas as filhas se interessam por mulheres. Desde que me descobri, não houve um dia sequer que não temesse que a minha mãe soubesse. Ela sempre foi dura, inflexível, tão diferente do meu pai.
— Não falei nenhuma mentira, Joaquim. Essa raça ruim...
— Mamãe, por que a senhora não cala essa boca? – Ana ficou de pé.
A surpresa foi geral.
— Bem dizem que não há como ter tudo. Ou se dá beleza, ou se dá inteligência... – Minha irmã tremia levemente, mas parecia ser só raiva.
— Com ousa falar assim comigo, Ana Clara? Eu acho bom que saia daqui agora e vá pro seu quarto. Castigo... sem celular, sem computador, sem saídas.
— Como a vossa senhoria quiser. – Ana fez um reverencia. Eu estava surpresa e envergonhada.
Surpresa pela coragem de Ana e envergonhada por ser uma covarde.
— Eu vou subir... preciso estudar alguns casos. – Fiquei de pé.
— Tudo bem, querida... – O meu pai sorriu. — Minha médica preferida e requisitada.
— Um dia, quero chegar a ter o mesmo prestigio que você, papai. – Dei a volta na mesa e beijei sua testa.
Subi degrau por degrau no automático, com um sentimento estranho. Às vezes, uma vontade enlouquecedora me dizia para chutar o pau da barraca, afinal, tenho vinte e nove anos, a um ano e meio terminei a minha especialização, sou financeiramente independente, logo terei o meu apartamento, porém a covardia sempre me vencia e tudo o que conquistei não serviam de base.
Ser a menina dos olhos da minha mãe sempre ganha.
— Ana... – Entrei.
— Se veio defende-la, dá meia volta, Lara. – Me aproximei.
Abracei minha irmã por alguns segundos, eu também precisava disso.
— Você é a melhor de nós, Ana. Tô orgulhosa...
Ela me encarou desconfiada, mas logo suas feições mudaram.
— Sei que um dia também vai sair desse lance de ser perfeita, Lara. Acredito em você...
Ana beijou a minha bochecha. As nossas alturas quase que iguais, facilitava o ato.
Passei a tarde toda no quarto, estudei alguns casos, tentei manter a minha cabeça ocupada e consegui. Só notei que já havia anoitecido, quando Antonella me ligou e me convidou para um vinho em sua casa. Haveria mais algumas pessoas do nosso ciclo de convivência.
Tomei um banho rápido e uma hora depois, adentrava o apartamento de Antonella.
— Marcela tá aqui. – Ela cochichou em meu ouvido. – Tem roupas suas no closet, o quarto tá disponível.
Não pude deixar de rir.
— Em outra vida, tenho certeza que éramos irmãs. Não é possível, Antonella. – Ela me abraçou.
— Sempre pensei assim também... dorme aqui, vamos juntas pro hospital.
— Sim senhora...
Fomos lado a lado até a extensa varanda de Antonella, os meus olhos caíram sobre a linda mulher de pele cor de jambo. O seu olhar malicioso me fez sorrir. Aceitei a taça de vinho que um dos rapazes me ofereceu. Limpei a minha mente e me permiti ser eu mesma. Deixei a Lara “sedutora”, como Antonella dizia, assumir o comando.
— Olá, doutora... – Marcela sussurrou em meu ouvido. — Já se recuperou da última vez?
Um sorriso charmoso brotou na face bonita.
— Acho que eu quem deveria te fazer essa pergunta. – Segurei um pouco acima do quadril arredondado. — Já consegue suportar uma nova rodada?
Marcela me encarou por alguns segundos.
— Te espero no quarto, doutora, não me faça esperar... – Ela retirou a taça da minha mão e entrou.
Mordi o lábio, olhei para Antonella que apenas piscou para mim.
Fechei a porta, passando a chave e foi quando Marcela deixou o banheiro totalmente nua. Aqueles encontros eram da forma que eu podia oferecer: sex* e sem promessas.
— Não sabe o quanto vibrei quando te vi. – Ela se aproximou, tirando a minha roupa.
— Só vou acreditar depois que gem*r o meu nome...
Agora não existia mais nada, somente eu e essa bela mulher.
São Paulo, 14 de agosto de 2022.
— Terminei a outra mala. Nem acredito que você vai mesmo pra Belo Horizonte depois de tanto tempo. – Rafaela jogou uma maça para mim.
Senti o suco delicioso da fruta na primeira mordida.
— Foi muito difícil pedir demissão, a Camille não queria de forma alguma. Tive de apelar... – Rafa sentou ao meu lado no carpete. — Estou aliviada, isso me trará um pouco de paz.
O meu apartamento ficaria fechado por aquele tempo. Amava aquele espaço, por isso o manteria.
— Aquela mulher me assusta, Yas, não sei como você se envolveu. – A loira amarrou os fios em um coque. — Ainda bem que acabou, ela não vai mais te encher a paciência.
— Também fico aliviada, a Camille ficou muito imprevisível. Me arrependo muito...
— É bom que se arrependa mesmo, eu estava louca pra te segurar pelos ombros e gritar pra sair daquele lugar.
Não pude deixar de rir.
— Obrigada por ter vindo me ajudar. O Hugo até queria vir, mas tá atarefado com a faculdade. – Rafaela sorriu.
— Sempre e sempre, Yas... confesso que fiquei surpresa. Não achei que tivesse algum interesse de trabalhar no hospital. – Dei mais uma mordida na maça.
— É importante pro meu pai. Eu sempre fiz o que queria, ele nunca me pediu nada, me deixou escolher a minha profissão. Me deu apoio incondicional... os meus pais, eles são maravilhosos. Achei que seria o mínimo aceitar concorrer ao cargo.
— Seus pais são uma graça. Fico admirada do quanto são humildes, mesmo sendo tão ricos. Você herdou isso deles...
— Eles são incríveis mesmo. – Fiquei de pé. — Morro de orgulho.
O meu pai é um médico muito respeitado, mas antes de chegar no lugar que está agora, ele trabalhou duro. Os meus avôs, que Deus os tenha, fizeram tudo o que puderam para que o seu Alonso estudasse, se formasse e entrasse na faculdade. Meu pai costumava dizer que o que mais o motivou a não desistir da medicina foi o desejo de dar uma vida melhor aos meus avôs.
Eles se foram tem uns anos, foi um período muito difícil.
— Acho que não falta mais nada. Vamos ao restaurante aqui do lado? Estou morta de fome. – A ajudei a ficar de pé.
— Vamos sim... quero me entupir de carboidrato.
— Você é uma péssima nutricionista, Rafaela. – A loira sorriu.
— Meus pacientes não precisam saber. Aliás, quem serão as suas concorrentes?
— A filha do Joaquim e a filha do Patrick. Fortes concorrentes, pelo que soube. – O meu pai me alertou que não seria tão simples.
— Bem, mas você tem muita experiencia com administração, acho que tá um degrau acima. Sabe alguma coisa sobre elas? – Pensei por um instante.
— Na verdade, só o que o meu pai me conta. A Lara virou uma cirurgia e a Nicole também trabalha no meio da administração.
Pegamos o elevador, andamos até o restaurante, onde conversamos bastante sobre o hospital. A Rafaela e eu nos conhecemos ainda no ensino médio e foi o que algumas pessoas chamam de “encontro de almas”. Desde então, somos amigas, eu diria que irmãs.
Ela sempre pode contar comigo para tudo e a reciproca é verdadeira.
A noite estava bonita, um vento gostoso adentrava a varanda. Rafaela estava dormindo, o seu fim de semana que seria para descanso, ela usou para me ajudar com as coisas que levaria para a casa dos meus pais.
O interfone tocou.
— Senhorita Yasmin, uma mulher chamada Camille Pimentel pediu para subir. Posso autorizar a sua subida? – Aspirei o ar com calma.
“Merda.”
— Pode sim, Luan. Obrigada...
— Tudo bem. Boa noite, senhorita... – Passei a mão sobre a cabeça.
Com toda a certeza não seria uma conversa fácil.
Alguns minutos se passaram, até que a campainha tocou. Abri a porta, dando de cara com uma mulher que não era a Camille. Ela entrou sem ser convidada, enquanto a olhava sem acreditar na audácia.
— Com licença? – Fechei a porta.
— Você é a Yasmin Leal, a amante da minha mãe. – A minha boca abriu e fechou várias vezes. — Sou a Luna, filha da Camille.
“Não, não, não... não pode ser.”
— Não precisa ficar com essa cara de idiota. Não vou fazer nada, apenas quero pedir que não volte a se aproximar da minha mãe. O meu pai e ela são muito felizes juntos. – Ergui a sobrancelha.
— Tão felizes, que ela foi atrás de uma amante e ainda por cima, disse que era divorciada. – Voltei ao controle. — Não se preocupe, não tenho a menor intenção de ir atrás dela.
— Espero mesmo que não, pois se assim não for, vou ter que agir de uma forma que não desejo. – Não pude deixar de rir.
— E o que mesmo você iria fazer? Ah, por favor. – Abri a porta. — Vá embora.
— Espero que não me teste...
A garota ficou me encarando por vários segundos, até decidir deixar o meu apartamento. Tranquei a porta, fui até o sofá e sentei. Aspirei o ar com calma, com mil coisas na cabeça.
— Onde estava com a cabeça quando me meti com essa mulher?
Conheci a Camille há alguns anos, quando comecei a estagiar na concessionaria. Ela era a encarregada do RH, e eu fazia pequenos serviços no início. A gente se envolveu, ela estava em processo de separação, mas um tempo depois descobri que era tudo mentira. O seu marido na verdade é o dono e soube também mais adiante que eu não era a primeira. Terminamos, porém, tive algumas recaídas. Eu fui muito apaixonada por ela, tentei pôr um fim definitivo, mas ela sempre vinha atrás e eu cedia. Como um cachorrinho, o que não era típico de mim, me coloquei a inteira disposição dela. Faz só três meses que me livrei daquela teia de mentiras.
Não era amor, hoje eu sei, era algo mais perigoso: paixão e desejo.
— Mas essa agora.
Eu estava ciente do meu erro, deveria ter sido mais enfática, sou a primeira a admitir.
— Yas? Vamos dormir, amanhã acordamos cedo. – Ouvi a voz da Rafa.
— Já vou...
Não iria me martirizar por isso, amanhã não estaria mais aqui e tudo isso ficaria no passado. Desliguei as luzes, indo para o meu quarto. Rafa já havia voltado a dormir, então tratei de fazer o mesmo.
O voo foi tranquilo, o meu pai veio nos recepcionar e trouxe até uma plaquinha com o escrito “bem-vinda de volta, carinho”. Ele estava feliz e eu também, tanto que chorei ao abraça-lo. Era bom estar de volta a cidade em que nasci, depois de anos morando em São Paulo.
— Rafaela, querida, durma em casa esta noite. Amanda disse que faz dias que você não aparece.
— Obrigada, Joaquim, mas não posso. Amanhã tenho que estar na clínica cedo e todas as vezes que vou na sua casa, nunca temos hora pra dormir. – O meu pai riu, pois era a mais absoluta verdade.
— Então, assim que tiver uma folga, faça isso. – Ele tinha um carinho enorme pela loira. — Temos umas partidas de dama pra pôr em dia.
— E quanto tá o placar? – Perguntei e Rafa gargalhou.
— Rafaela tá ganhando, mas logo chego lá. – O meu pai deu de ombros.
Rafa veio de Pernambuco com os pais, que depois de uns anos, trouxeram vários outros parentes, que moravam na mesma rua. Também tem uma origem humilde e batalhou muito para estudar, se formar. Ela trabalha em uma clínica e pretende abrir a sua própria em breve.
Ela negou toda e qualquer ajuda, quer fazer por conta própria.
— Ligo mais tarde. – Ela deixou o carro.
— Manda um beijo para os seus pais. – Rafa fez um gesto com o polegar.
Meu pai deu partida.
— Ela é uma ótima menina. – Olhei para o celular que vibrava em minha mão.
Era a Camille.
— Yasmin, por que você e a Rafa não namoram? – Tirei a minha atenção do aparelho.
— Papai!
— O que, filha? Ela é uma ótima menina. Esforçada, aos poucos tá dando uma vida digna para a família.
— Papai, o senhor namoraria algum amigo seu? – Ele ficou pensativo.
— Se eu gostasse de caras... – Não pude deixar de rir.
— Pai, a Rafa e eu temos uma relação de irmãs. Vai ser sempre assim...
— Oh, então tudo bem. Eu bem que tentei. – Ele bagunçou o meu cabelo como sempre fez.
Quando chegamos ao condomínio em que eles moram, a minha mãe estava na porta nos esperando. Sai do carro e fui abraçada por longos segundos. A sensação maravilhosa de estar em casa nunca passava, em todas as vezes que vinha até ali, sentia o aconchego.
— Que saudade, mamãe. – Ela me apertava.
— Nem posso acreditar que você voltou mesmo, filha. – Me afastei para olha-la.
— Você tá ainda mais linda. Olha esse cabelo, que macio. – Toquei nos fios castanhos.
— Não como os seus, filha. Esse cabelo vermelho...
— Ela sempre morreu de inveja do meu cabelo, filha. Esse ruivo aqui faz sucesso. – Meu pai piscou para ela.
— Deixa de ser convencido, homem. Rum...
— A não, você veio mesmo. Que saco, hein. – Outra cabeleira ruiva surgiu.
— E aí, panacão? – Hugo me abraçou.
— Senti sua falta, maninha. – Não pude deixar de sorrir.
— E eu a sua...
Colocamos as malas para dentro e fomos para a cozinha comer algo. Eles faziam perguntas, entusiasmados, enquanto o meu prato não ficava vazio nem por um segundo.
— Vai ser uma responsabilidade e tanto. Logo irei ao hospital, andar por lá e me familiarizar. O que preciso saber mais da concorrência? – Levei um pedaço de bolo de laranja a boca.
Uma delícia.
— A filha do Joaquim, a mais velha, é uma menina muito gentil e uma grande cirurgiã. – Lembrava vagamente da garota de cabelos negros.
Brincávamos juntas quando criança, mas depois que me assumi, ela e os outros se afastaram. Das poucas vezes que tivemos algum contato, ela não se importou em ser uma tremenda chata, metida, mas a filha do Patrick, essa com toda certeza era pior.
— A Nicole, bem, ela trabalha no hospital e posso dizer, é uma mulher muito difícil. Infelizmente, nos últimos meses, notei que o Patrick ficou estranho, sabe filha.
— Estranho como, papai?
— Ele não vai mais aos encontros do poker, não aparece mais em nenhuma das nossas reuniões e quando sugerimos que a Lara e você também entrassem na disputa, ele ficou bravo, disse que você não entendia nada sobre hospitais e que a Lara era muito inexperiente ainda. Falou que a filha era a mais capacitada.
Meu pai soltou o ar com força.
— Ele sempre foi o mais ambicioso de nós, mas agora... parece outro. Não sei mais quem ele é. – O tom entristecido do meu pai me doeu no coração.
— O senhor não precisa dele, papai. O Patrick é um pau no...
— Hugo, não termina essa frase, garoto. – Minha mãe o advertiu.
— O Hugo tem razão... vem cá, me dá mais um abraço. – O apertei.
Passamos grande parte da tarde conversando, depois aceitei o convite de Rafaela para irmos ao shopping. O aniversário da mãe dela seria logo, ela queria antecipar o presente.
— Estava pensando em comprar um perfume. Ela adora. – Entramos em uma loja.
— Também preciso comprar... então vou de perfume também. – Uma moça veio nos atender.
Uma mulher muito bonita.
— Boa tarde, posso ajuda-las? – Dei o meu melhor sorriso.
— Pode sim, querida. Estamos à procura de novidades, é para presente. – Rafa ergueu a sobrancelha esquerda.
— Tenho ótimas indicações, aposto que ao menos uma delas irá lhes surpreender.
Ela foi a frente.
— É sério? Você não sossega nem nessa hora?
— Aí, Rafa, é só um flertezinho sem maldade.
— Você não presta, Yas...
Depois de muito escolher, conseguimos achar o que queríamos. Peguei o número da atendente sob o olhar nada satisfeito de minha amiga. Fomos para a praça de alimentação. Pedimos hamburgueres, suco e batata frita.
— Tudo bem? – Rafa olhava preocupada para o celular.
— Meu chefe me mandou mensagem, ele disse que terei uma nova paciente. Olha, reconhece esse sobrenome?
Ela me mostrou a tela.
— Ana Clara Almeida Pinheiro? É a filha mais nova do Joaquim. Tá preocupada? – Rafa colocou o celular sobre a mesa.
— Todas as vezes que pegamos pacientes de famílias poderosas, há uma pressão enorme. É um saco...
— Você vai tirar de letra, Rafa. Tudo o que você faz é com muita dedicação. – A loira me olhou por um tempo e depois sorriu.
— Obrigada, Yas, você é uma irmãzona.
Apesar de ser a mais nova, Rafaela sempre foi a mais madura de nós.
— Ontem a filha da Camille foi me procurar. – Esperei pela reação.
— Então ela sabe... o que ela fez?
— Me ameaçou, discretamente... – Tomei um gole do suco.
— Nem vou repetir que te avisei, Yasmin. Ainda bem que tomou juízo e tirou essa aventura do currículo. Não se mete em mais confusão, esse mundo anda perigoso. – Eu merecia ouvir aquilo.
— Juro, esse erro foi um grande aprendizado. – Os olhos castanhos me fitaram. — E o seu rolo com aquela garota da clínica?
— Acabou, ela queria mudar pra minha casa. A gente se conhecia fazia apenas duas semanas, de forma alguma iria fazer um absurdo desses. – Não controlei o riso.
— O mundo congelaria se um dia você fizesse algo imprudente. – Ela rolou os olhos.
— Uma de nós tem que ter juízo.
— Ainda bem que é você...
Rafaela me deixou em casa, tomei um longo banho e depois de jantar com a minha família, subi para descansar. O meu telefone tocou pela milésima vez, então decidi atender.
— Camille, pare de me ligar.
— Eu preciso que me ouça, Yasmin... sei que a minha filha foi até a sua casa. – A sua voz estava arrastada, claramente bêbada. — Não leve nada do que ela disse a sério.
— Me deixa em paz, só o que desejo...
— Eu vou atrás de você, meu amor. Não vou desistir de nós...
Pela primeira vez, ser chamada de “meu amor” não surgiu nenhum efeito.
— Não existe nós...
Finalizei a ligação.
— Que merd*...
Fim do capítulo
Heeeellloooooo.
Aqui estamos outra vez. UFFA!!!
Seguinte, por enquanto será dois caps por semana, depois aumentamos para 3.
Por agora, nas segundas e quintas. Eu trabalho, a Tany trabalha, então nossos dias são corridos.
A Tany é a pessoa responsavel pela edição dos textos. Por enquanto, é isso.
Beijos e vamos para mais uma jornada.
Comentar este capítulo:
Lea
Em: 02/01/2023
Bom começo de ano, FELIZ 2023!
Vocês merecem aquele tempinho para acalmar a mente.
Ficarei ansiosa e aguardando os próximos capítulos!
Resposta do autor:
Feliz 2023 pra você também, obrigada pela compreensão tu é maravilhosa. Um abraço meu e da Leh.
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jakerj2709
Em: 30/11/2022
Olá Tany e Le comecei Lê agora, mas já te disse q vc é minha autora favorita....Enfim tenho certeza que irei amar esse seu novo trabalho....Obrigada por compartilhar....
Jake
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Lea
Em: 31/10/2022
Foram longos 2 anos e 5 meses, até "acordar","namorando" uma mulher casada. Hoje não faria mais isso! Kkk
*
Poder ser quem você é, é tão maravilhoso. Parabéns por você conseguir se LIBERTAR!
Resposta do autor:
kkkkkkkkkkkkkkkk olha, nem vou te julgar, já fiz algo assim e não me orgulho. Seis meses e até hoje me pergunto porque droga fiz...
Hoje, assumidissima, estou muito feliz.
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Dessinha
Em: 23/10/2022
É ver mais uma dessa autora e ter a certeza de ótima leitura. Felicidade aqui, é certeza de dormir um pouco mais alegre. Letícia Petra não decepciona nunca.
Resposta do autor:
Ah, eu fico muito feliz em saber disso. Estava louca para voltar.
Saiba que é uma delicia escrever para vocês e saber que estão gostando dos meus trabalhos só me fortalece a vir com outras. Muito obrigada!
:)
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