A dança dos cisnes
— Maninha, você está com uma cara péssima.
Como se a dela estivesse melhor. Tal qual como um ídolo decaído, as olheiras se formam em bolsa debaixo de seus olhos, assim como a maquiagem pesada que dá o tom ainda mais escuro em um país de olhos carregado em linhas grossas e delineador com listras grossas, além da sombra azul. E isso porque são nove da manhã.
Ela é aquilo que podem chamar de padrão: branca, olhos azuis, cabelos loiros platinados aos quais a tinta já se encontra na metade, excessivamente magras, lábios carnudos, sobrancelhas grossas como as minhas, cílios curtos. Nesse ponto, ela puxou ao pai, e não que ela gostasse muito de lembrar ele, mas usou isso em seu benefício próprio.
Além do mais, não tiro a razão do comentário. Não consigo mais dormir, e não quero ligar pra minha terapeuta para falar com o psiquiatra e liberar uma receita de remédio de dormir para mim, por mais tentador que esteja sendo.
Eu só durmo por exaustão e por poucas horas. Vivo cansada e já não saía de casa, agora sequer vejo a luz do dia, pedindo comida pelo delivery e o resto das minhas compras. Sei que parece um cenário decrépito, mas tenho esperança que logo eu fique bem e, por um momento, meu cérebro forneça os hormônios necessários aos quais eu pare de ter a lembrança constante de Valentina.
— Não estou conseguindo dormir.
Ela se aproxima de mim e diz em um sussurro, apoiando os cotovelos na mesa entre nós.
— Se quiser tenho um negócio pra isso.
Tentador. Preciso desconversar esse ponto.
— Como estão te tratando aqui?
Isolda revira os olhos e se recosta na mesa.
— A mesma merd* de sempre, mal vejo a hora de sair. E como está na casa nova? – ela gesticula no ar – Estou na maior ansiedade de conhecer.
— Indo – dou com os ombros. De mal a pior.
— Tem conversado com alguém?
Só com as vozes na minha cabeça, mas entraremos nesse assunto depois.
— Morgana? – ela volta a dizer, pigarreando, chamando minha atenção. Já estava divagando sobre a minha atual situação.
— Tem uma vizinha, a Isabela... – faço uma pausa por um instante – ela anda sendo bem solícita comigo.
— E vocês já estão saindo? – Isolda levanta uma das sobrancelhas, e não consigo esconder minha careta pelo comentário.
— Claro que não – nego com a cabeça – além do mais, ela tem namorada. Quer dizer, acho que...
— Então não rolou nada porque ela tem namorada? – e seu sorriso sugestivo aparece no rosto, com o ar risonho de uma criança preste a aprontar alguma coisa sabendo que é errado, mas divertido.
— Não é isso que quis dizer – levo as mãos para frente em um gesto ansioso – é só que ela está sendo bem gentil...e é a pessoa que ando mais tendo contato.
— E quando vai levar ela pra cama?
— Isolda – digo em um tom sério – eu não vou trans*r com minha vizinha só porque ela é legal comigo – e cerro as sobrancelhas – que merd* você anda assistindo por aí?
— Qual é, Morgana – ela se recosta na cadeira – faz quanto tempo desde a última vez? Uns quatros anos?
Sim, vai fazer quatro anos final do mês.
— E até quando vai fazer esse voto de castidade?
— Eu não vou me deitar com ninguém se não consigo superar a Valentina – digo entre os dentes – não entende isso?
Isolda faz uma cara insatisfeita, como se esperasse que tivesse dado início a novas aventuras sexuais. Será que ela pensa que lá mudaram a minha personalidade? Quem me dera.
— Tenho certeza que ela odiaria te ver assim.
Engulo em seco. Mais uma vez não tiro a razão da minha irmã, e ela faz um bico com os lábios, pensativa.
— Anda tendo aquelas coisas de novo, não é?
— Sim – respondo em tom incisivo, voltando a engolir em seco e encarar minhas mãos para não a encarar – agora, podemos mudar de assunto?
— Já ligou pra sua psicóloga?
— Não quero dar motivo pra ter que voltar pra lá, Isolda – continuo em meu tom ríspido – eu consigo me virar, sério.
— Se não quer mais voltar pra lá – ela dá com a mão direita no ar, voltando a se apoiar na mesa – por que continua agindo como se estivesse? Morgana, eu te conheço, tenho certeza que está sem sair de casa, comendo porcaria e evitando todo e qualquer contato humano pra ficar nas suas esquizo...
— Eu não sou esquizofrênica! – bato com o punho fechado na mesa, chamando atenção nos demais. Odeio que me chamem assim porque usam esse transtorno de forma ofensiva – Para de me chamar assim.
— Desculpe – ela levanta as mãos como se rendesse – vou me corrigir – e leva a mão direita até o peito – Com suas depressões, dissociações e crises de TOC.
Agora sim, bem colocado.
— Você precisa sair mais, ver gente que não esteja amarrada em uma camisa de força ou coisa assim – ela volta a gesticular – chama a sua vizinha pra sair, ver um filme. Pelo menos é alguém pra você interagir e conhecer outras pessoas.
— Eu já saí – bato os dedos levemente na mesa – quer dizer, ela me chamou pra ver uma exposição e eu fui.
— Menos mal – ela sorri e dá uma batidinha fraterna em meu ombro, como se me consolasse.
— Você já tem previsão de sair daqui?
— Se eu continuar me comportando... – ela volta com o rosto risonho – daqui a duas semanas ou três.
— E você está? – o que duvido muito, mas vou esperar a resposta.
— Tentando né... – ela pigarreia de novo – não sou perfeita, mas estou evoluindo.
Ela está mentindo. Quando ela mente, franze a sobrancelha que nem está fazendo agora, mas não vou falar nada.
— Logo estarei na nossa casa – e dá um sorriso genuíno – pra sairmos pra todo lugar e fingir que somos normais pelo menos para os outros.
Concordo e damos as mãos. Suas mãos magras tocam a minha fraternalmente. Senti muita falta disso, já que fazia meses que não nos víamos, mas logo isso não é o suficiente. Ela se levanta, anda até mim e me dá outro abraço apertado, tal qual como o que demos quando cheguei.
— Senti muitas saudades suas, viu? – disse ainda comigo em seus braços, beijando minha cabeça – Te amo muito.
É bom ouvir essa frase de vez em quando, mesmo que com o passar do tempo ela tenha se tornado tão rara.
No centro de reabilitação, temos a manhã livre com o internado, então levei o quebra-cabeça para montarmos enquanto ela me atualiza da sua vida e eu do pouco que acontece na minha.
Isolda é muito extrovertida, acaba se dando bem com qualquer um, inclusive com os guardas que traficam bebida e remédio para ela e os pacientes com a urina limpa. Alguns chamariam ela de corrupta, outra de esperta, já eu acho que ela se engana. Do que adianta ter que ficar fazendo isso se ela acaba se internando de novo? É a quinta passagem dela em uma rehab.
Tento não julgar aqueles que devem olhar para a nossa pequena família e pensar que não passamos de dois casos perdidos, mas sei que as coisas recaem piores nos ombros dela. Há esses que acham que ela não tem mais jeito, mas eu acredito que ela irá mudar no dia que fazer isso seja significativo. Enquanto ela puder curtir bebendo e usando o que tiver na frente sem maiores consequências além de consigo mesmo – o que ela já não se importa, um dos vários lados cretinos do vício – ela não vai parar.
Nem preciso apostar pra saber que, assim que ela chegar, vai fazer uma festa de parar tudo, ligar para os antigos contatos, e farrear até dizer chega. Ou eu até dizer chega. Nossa relação sempre foi muito boa, claro com alguns altos e baixos como qualquer uma, mas sempre bem estável, tirando esse ponto.
O que talvez aceite porque a quero do meu lado, não importa como, mas eu a amo a ponto de aceitar que, às vezes, ela fica melhor longe, hipoteticamente se tratando pra ficar bem. No entanto, acho que ela está focada em herdar os bons gestos de família.
Até que, em um dado momento, ela faz aquela valiosa pergunta.
— Já mandou seus textos para avaliação?
— Ainda não.
Ela levanta o olhar, e balança a cabeça em negativa.
— E por que não?
— Não me sinto segura o suficiente.
— Morgana... – ela diz em tom chamativo, e levo o olhar para ela, como alguém entediado em levar uma bronca – Sério? – e volta a colocar a peça no lugar – Aquela peça que eu li estava excelente. O que está faltando? Que a mamãe dê o aval?
Levo meu olhar sério pra ela, que retribui do mesmo jeito.
— Se não meter a cara, quem vai fazer isso por você?
— Eu vou ver...
— Você precisa ter mais confiança em si mesmo – ela volta a segurar meu ombro – Teu texto tá excelente, só um louco que não vai gostar daquilo, com todo o respeito.
Ouço em silêncio, procurando a peça certa para o canto ali. Realmente não tenho estima pra achar que o que fiz está bom.
— Tenho medo da rejeição – de mais rejeição, devo salientar.
— Morgana, pelo amor de Deus! – ela volta com o tom incisivo – Não todo mundo vai levar na vida, tem que se preocupar com o sim que vai receber. Pra dar em cima da Valentina você não teve medo, né?
Ela sempre vai usar essa justificativa? E a vejo rir de canto, procurando por outra peça.
— Eu não dei em cima dela – não que eu tenha feito isso conscientemente, mas tem quem diga que sim.
— E ela adorava teus textos – Isolda levanta o olhar – era tua maior incentivadora quando eu não estava. Isso já não serve de pretexto?
Por que ela tem que ficar falando da Valentina assim?
— Eu sei que não está sendo fácil, ainda mais que vocês sempre...
Apoio minha mão na dela, como um pedido, respiro fundo e volto a encarar seus olhos cristalinos, levemente confusos.
— Podemos não falar dela por um minuto? – minha voz sai como uma falha – Eu só quero aproveitar um pouco do dia com minha irmã.
Ela entende o recado, assente e continuamos a montar o quebra-cabeça.
Não terminamos, mas levo a metade com cuidado dentro da caixa. Colamos as partes que fizemos em papelão, o que facilita o trabalho, e antes de ir, nos abraçamos com força. Tenho vontade de chorar, não vou mentir, mas preciso ser forte, assim como ando sendo nos últimos anos.
— Até logo, tá ouvindo? – ela sussurra em meu ouvido – Se cuida, e vê se come direito, viu? E pega um sol, e... Pega um presentinho.
Entrega em minhas mãos uma cartela de remédio, seu preferido. E, para o azar daqueles que esperavam que eu negasse e continuasse na situação em que estou esperando pelo milagre da serotonina, aceito, e ela dá uma piscadinha antes de ir.
O caminho pra casa é relativamente longo, em torno de três horas e meia e mais uma até chegar no apartamento. Abro a porta e sou recepcionada pelo mormaço. Tiro os sapatos, coloco a caixa na mesa e me afundo no sofá. É o começo da noite, e me sinto exausta pra caramba.
Esquento meu último Cup Noodles, e olho para o texto dito pela Isolda, mas desde que o terminei de revisar, nunca o mexi. Deveria mesmo me aproximar da minha vizinha? E, quem sabe, mostrar meu texto a ela, já que é a única pessoa que conheço a ponto de ter alguma aproximação, mesmo que a mínima?
Não consigo pensar direito. Eu nunca consigo me decidir de nada e acabo nunca fazendo nada, e fico me culpando por isso depois. Sério, eu só quero dormir e acordar semana que vem, ou nunca mais.
Escuto o barulho dos passos da minha vizinha chegar em casa, abrir a porta e entrar. Depois de uns cinco minutos, escuto ela fazer as coisas em casa, mas dessa vez não liga o som, não sei porquê. Isso também não deve me importar. Será que ela pensa que eu sou grosseira por não me aproximar? Nunca ter a chamado pra comer alguma coisa para revidar ou não a ter cumprimentado desde a última vez? Ela sabe como eu sou, e talvez não queira me incomodar...
Porr*, eu preciso parar de pensar em um instante. Quando não é a lembrança de Valentina ficando pior a cada dia, é a imagem da minha irmã como um fantasma do que já foi, e agora eu fico me culpando por não saber como agir direito. Eu preciso descansar, eu preciso dormir, eu preciso de um minuto de sossego, nem que seja...
Meto a mão no meu bolso, e sinto as pílulas.
É melhor não pensar muito. Abro o envelope das duas e as engulo de uma vez. Que diferença tem entre mim e Isolda, no final das contas? Somos só um efeito com diferentes consequências.
O efeito não é imediato, mas quase. Depois de minutos, meu corpo é coberto por um delicioso torpor. Minha pele formiga, minha boca amarga, um arrepio passa pelo meu pescoço e vai até a ponta dos meus dedos. É quando minha mente vira um barulho estático e fecho meus olhos. Finalmente um momento de paz.
Meu corpo flutua, e levo os dedos pela textura áspera do sofá, lentamente... Só tem uma coisa que quero muito agora, mesmo sabendo que não me faz tão bem.
Abro o computador e procuro por uma rede aberta. Pra minha surpresa, a rede Gutierrez é aberta e é a mais próxima. Será a dela? Clico e conecta depois de alguns instantes. Com os dedos ainda formigando e sentindo a minha alma fora do corpo e como outra pessoa está fazendo as coisas por mim agora, abro o navegador e digito no YouTube seu nome, e aquela... Apresentação em específico, a terceira da lista. Clico e me sento na cadeira, afundando nela, com os olhos fixados nas cenas que vão se desenrolar.
Começa com aquela apresentação breve de que é a dança do Cisne Negro, movimento final, Tchaikovsky e... Aqui está ela, que está... perfeita. Não há uma Odile melhor do que minha mãe. Ela não aceitava menos do que a perfeição.
O medicamento começa a vir em uma onda mais pesada, ainda mais com seus passos tão suaves que chegam a flutuar, assim como me sinto, e o som lamurioso do violino de fundo. Ela está estonteante nesse vídeo, brilha mais do que todos ao redor. O centro das atenções, como a boa narcisista que ela é.
Ela anda de ponta de pé como se fosse a coisa mais simples do mundo, rodopia com maestria e estica os braços tais quais um cisne, uma feiticeira, a que tem controle de tudo e que encanta com sua beleza e desenvoltura. O violino que chora aos seus movimentos tão carregados de paixão, o seu companheiro de dança que parece inexistir tamanho porte da bailarina que ela é.
Ou era.
“Não se torture tanto pelo passado.”
Tudo isso aconteceu antes.
“Concentre-se no seu futuro”.
Ela rodopia no próprio eixo com fervor, e desponta de um lado a outro, com os olhos focados. Não está mais ali. Entrou em um estado de êxtase criado por si ao saber que, a cada movimento, ela se consagra entre as melhores, mesmo com todos os sacrifícios.
O sorriso, a coroa de pedrarias que parece ser feito para ela quando gira com delicadeza nos braços do companheiro, o sorriso que poucas vezes podia ser visto... Ela está esplêndida, e seus olhos estão marejados de felicidade.
“Não deixe que as marcas do passado tomem conta de você.”
Quando não era infeliz. Quando não éramos infelizes e vivíamos... Como é a palavra? Em uma mentira. Sim, era mentira, mas era reconfortante. Bem melhor do que a realidade.
— Morgana? – escuto a voz falar comigo, e algo me envolve – Morgana, fala comigo!
Não consigo abrir os olhos. Está pesado demais para abrir, e tenho uma vontade incontrolável de sorrir, e a ópera continua de fundo. Levo minha mão até o que está me chamando...Um rosto. É, é um rosto e... Uma boca.
Sinto que levanto do chão duro por alguma força que não consigo explicar. Quero abrir os olhos, mas não consigo. Tudo se mistura. Sentimentos, sensações... Será que estou dissociando de novo?
“Sim, mas não quero sair daqui” murmuro comigo mesmo como uma prece enquanto a orquestra complementa lindamente a apresentação. Tenho vontade de rir, tamanho a beleza disso. É surreal. É um sonho lindo.
Fim do capítulo
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