Seja bem-vinda
Para a minha surpresa – de um jeito bom – depois do café, procuro pelo prédio guiada pelas lembranças da noite anterior, e acabo acertando o endereço. Na parte de baixo há o porteiro distraído assistindo televisão e, quando chamo sua atenção, ele se assusta, recuando.
— Olá – diz ele ajeitando a postura – no que posso ajudar?
— Como faço pra alugar um apartamento aqui?
— Bem... – ele cerra as sobrancelhas – tem que falar com a síndica, pra ela te indicar um e falar com o proprietário.
— E como faço pra falar com ela?
— É pra você? – assinto que si, e ele surpreso – O que, sério? Bem, vou interfonar para ela, só um instante, tá bom?
Concordo e me sento no banco que fica próximo a um elevador. Ele fala alguma coisa a qual não presto atenção, e logo gesticula pra mim.
— Ela já está vindo.
Em questão de minutos, ela chega. É uma senhora de cabelo preto, com mechas brancas, um nariz protuberante, lábios finos e sobrancelhas grossas. Usa um moletom preto e roupas de ginásticas, e desce pelo elevador, sem notar minha presença.
— Onde está a moça que queria falar comigo?
Ele aponta pra mim, e ela olha para mim com a mesma surpresa que ele. Pareço ser tão jovem assim ou sou só estranha mesmo?
— Você que quer alugar um apartamento? – ela estende a mão para mim enquanto me levanto para nos cumprimentarmos – Sou a Rosana.
— Sim, de preferência mobiliado.
— Bem...tem o 505, que vagou há pouco tempo. Você queria pra quando?
— Pra hoje, se possível.
— Pra hoje? – ela ri, surpresa – Não acho que conseguirei entregar hoje, falta limpar, organizar e o contrato, além da entrada e...
— Não tem problema, pago à vista se puder.
Tanto ela quanto o porteiro ao qual não sei o nome olham incrédulos, com certeza se perguntando como é que eu tenho dinheiro assim. É melhor nem saberem.
— Bem... então... – ela pigarreia, indo até o elevador – você não quer vê-lo, pelo menos?
Dou com os ombros, concordando, e entramos no elevador, que para no quinto andar. Ela pega o molho de chaves que está ao seu lado, e caminhamos até o final do corredor, onde tem três portas, abrindo a da esquerda, o número indicado.
Devem estar se perguntando de onde tiro o dinheiro, e a resposta é até simples: pensão. Não entrarei em detalhes, mas basicamente ganhei uma indenização polpuda do governo – assim como minha irmã – e com isso, tenho direito a pensão do meu pai. Como não houve tramitação do dinheiro durante todo esse tempo além de um ou outro custo adicional, não preciso me preocupar com questão monetária por enquanto. Claro, não paga metade das coisas que aconteceram, mas dá pra ajudar no futuro. E é só isso que tenho a falar para os curiosos de plantão.
Ela abre a porta branca com o número inscrito em cima, e um leve cheiro de mofo invade minhas narinas, típico de um local fechado. A parede do corredor é revestida por um papel de parede azul e branco, em listras que por dentro, imita um bordado clássico. Ele descasca nos rodapés brancos, e o piso é lajotado, diferente do piso queimado que eu sou habituada.
— A casa é feita pra solteiros... Você é casada? Tem filhos?
— Ahn? – digo, aturdida – Não, possivelmente minha irmã vai ficar aqui...
Do lado esquerdo tem uma cômoda a qual acredito ser o banheiro. No maior, um sofá simples de dois lugares fica próximo da parede, e uma bancada americana divide a sala da cozinha. Itens em tons brancos, como a geladeira de uma porta e um fogão de quatro bocas, assim como um armário em cima do fogão. Do lado das grandes persianas, há o que acredito ser a área de lavar, que consiste em um tanque grande.
— A vista daqui é ótima – diz ela puxando as persianas, abrindo a porta de correr. Do lado de fora é a vista da rua em um aglomerado de prédios e poluição sonora. Bem de longe, dá pra ver o horizonte levemente cinzento – ali fica o depósito, que também pode servir como um quarto menor, e aqui – ela aponta para o cômodo inicial – fica o quarto.
Toda a casa, com exceção da cozinha, que é ladrilhada, tem o mesmo papel de parede. Já no quarto, ele é pintado em um tom ocre. A cama de casal é revestida por um jogo de cama estampado em azul, dois travesseiros médios, e um armário de madeira de duas portas, pequeno, mas comprido, fica no canto do quarto. Na janela não há cortinas, e tem uma bancada improvisada contra a cama, assim como um cesto que deve ser para as roupas sujas.
Olho por mais um período pelo espaço, a passos lentos. É bem simples e iluminado. Exatamente o que preciso.
— Onde assino?
*
O resto do dia se prestou a assinar papeladas e dar garantias. Aluguei o apartamento no período de dois meses, podendo ser estendido se eu assim desejar. No final da tarde, fechei o contrato com a Rosana como mediadora, já que o dono do prédio não está no país. Tudo correu rápido porque não tinha dívidas e o dinheiro estava na mão, só precisando seguir os trâmites burocráticos para evitar problemas.
— Quero que saiba que desejo que seja muito feliz aqui no nosso condomínio – diz ela, em um cumprimento caloroso – Qualquer coisa, é só chamar.
Eu também desejo, mesmo que parece uma hipótese distante. Fico sozinha no que é agora meu apartamento, e o olho sem bem acreditar no que está acontecendo. Seria mais viável pagar por ele do que por um hotel, pelo que calculei na minha última estadia em um, mas a sensação é estranha. Eu cuidava das minhas obrigações lá, mas será que consigo manter a ordem em uma casa?
Sei que preciso de duas coisas: ir para o supermercado comprar coisas de casa, e ligar para Isolda para avisar que temos uma casa novamente. Primeiro, as compras. Tento focar no ritmo de limpeza que tinha na clínica: vassoura, um rodo, desinfetante, água sanitária, sabão em pó e em barra. Três tapetes, um para a entrada no lado de dentro, um para o banheiro e outro para o quarto. Toalhas, mais duas. Panos de prato, um jogo de cama novo. No apartamento tem três jogos de talheres e pratos, cinco copos, algumas panelas. O bujão de gás está pela metade, pelo que ele disse. Dois tubos de pasta de dente, um fio dental. Um pano de chão. Água, dois galões de água e um bebedouro enquanto não compro o maior.
Comida. Eu não sei cozinhar, como deve se esperar, então pego biscoitos recheados, miojo e bolacha de água e sal, assim como achocolatado. Pão, queijo e presunto. Frutas. Isso deve me manter até eu pedir comida e aprender a fazer alguma coisa. Uma jarra de água e três pacotes de suco variados, dois pacotes de chá, um de café solúvel, leite em pó.
Preciso de um computador, mas isso não dá pra fazer agora.
Pelo menos o quebra-cabeça já está no carrinho.
Acho que é isso, se eu precisar de mais, volto aqui. O supermercado fica a três quadras de casa, o que concluo que é uma boa localização, então levo as compras na mão.
Chego em casa, e guardo as coisas. A casa não está tão suja, então acho que dá só pra trocar as cobertas e dormir. Passo um pano dentro do armário, encho com a naftalina que tinha em um dos cômodos e guardo as coisas em um processo bem mecânico. Coloco meus livros na cômoda e...
Parece que minha vizinha gosta de Madonna, porque desde a hora que cheguei das compras ela está a ouvindo alto e cantando. Dá pra ouvir o barulho dos passos dela, então deve estar dançando. Bem, alguém tem que ser feliz, e não está realmente me incomodando.
Esquento um Cup Noodles, tomo com água e, depois de bater o sofá, me deito, ainda ouvindo a cantoria desafinada de fundo.
Pelo visto, Morgana, você virou adulta. Está até comprando coisas de casa, parabéns! Sua terapeuta ficaria feliz e repassaria para a diretora na mesma hora. A luz da cozinha está ligada, então deixo a da sala desligada enquanto encaro o forro levemente empoeirado, enquanto o vento que vem lá de fora climatiza o ambiente.
Não sei o que achar isso.
— Acho que está tendo sorte, não acha?
Viro para o lado e ela, com as pernas contra o corpo enquanto se abraça, me encara com a cabeça apoiada no braço, piscando um dos seus profundos olhos castanhos, sentada no hack.
— Em não ter sido morta até agora? Sim – dou um sorriso de canto – Mas, o que está fazendo aqui?
— Não sei – ela dá com os ombros – me diga você.
—Talvez essa situação estressante está me fazendo ir para cenários que me trazem conforto, como é quando falo contigo...
Me viro em sua direção, e ela dá aquele habitual sorriso aos quais seus olhos somem, virando pequenos riscos.
— Ou porque eu sinto muito a sua falta e quero que esteja comigo de um jeito ou outro., principalmente agora... – suspiro lentamente – Olha só onde cheguei. Você lembra, não lembra?
Ela se levanta, senta ao meu lado e estende a mão até o meu rosto, o afagando com o polegar. Fecho os olhos, tentando não me sentir daquela forma de novo...
— Eu nunca me esquecerei disso.
Não faz isso comigo, por favor. Engulo em seco, e abro os olhos. Por mais que eu seja expert em reprimir meus sentimentos, tem horas que é uma tarefa impossível, como agora.
— Por que você foi embora?
Ela fica em silêncio, e dá com os ombros, aproximando-se de mim, com as mãos ainda tocando meu rosto.
— Eu não te abandonei... – e começa a levar o indicador pelos contornos do meu rosto – Não estou aqui contigo?
— Você está?
Seguro sua mão contra o meu rosto, e ela apoia a testa na minha. É como se eu pudesse sentir seu ar quente contra a minha pele de novo, as unhas arrastando devagar. Eu odeio fazer isso, mas acho que vou chorar.
— Valentina – pressiono meus dedos contra os dela – por favor, não me deixa.
— Mog... – sinto seus dedos roçando contra o meu rosto – feche os olhos. Isso vai passar logo. Respira comigo.
Faço o que ela diz, e depois de cinco expirações guiadas, abro os olhos.
Como o esperado, ela não está aqui. Volto a olhar para o forro, enxugando a lágrima intrusiva que desceu.
Eu preciso dormir. Preciso relaxar um pouco. Eu preciso...
Fim do capítulo
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