Ruínas reparadas
Sei que vocês que estão me vendo andando sem rumo algum por essa calçada enquanto os carros passam zunindo alto ao meu lado estão sem entender nada. Parece mais que estão acompanhando o começo da jornada em um livro de tragicomédia com enfoque na história de uma personagem, mas, se o personagem principal for ser eu, já aviso de antemão que não esperem grande coisa. Sou mais disfuncional do que um forno mal regulado.
A propósito, acho que não me apresentei devidamente, desculpe. Meu nome é Morgana, mas só me chamam assim quando querem falar sério comigo ou estão com raiva. Na maior parte do tempo só me chamam de Mog. Nasci em 98 – então faça os cálculos aí de quantos anos eu tenho – e tenho uma irmã, como já devem ter ouvido por aí.
No entanto, minha família está longe de ser uma daquelas da propaganda de margarina, mas já devem ter percebido que há alguma coisa errada por aqui mesmo. Minha irmã está internada compulsoriamente em uma clínica de reabilitação há pelo menos cinco anos, entre idas e vindas. Não vou esconder bem a realidade entre nós, mas ela é alcóolatra, do tipo que não consegue se controlar.
“Mas e você, Mog?”
Fui para um local um pouquinho diferente dela. Para alguns conhecido como clínica de repouso mental, mas para os mais íntimos como hospício, manicômio, sanatório.
Pois é. Passei os últimos setes anos nessa adorável colônia de férias.
“Nossa, e o que te levou a ficar tanto tempo ali?”
Espero que me desculpem desde já, mas não é o tipo de coisa que quero falar ou lembrar. Apesar de já estar melhor estabelecida com isso eu prefiro, como diz minhas inúmeras psicólogas, recalcar isso, ou o famoso “deixa pra lá”. Tem coisas que são melhores esquecidas. Já lido com os reflexos delas suficiente pra ter que ficar revivendo isso constantemente.
“Então, você foi diagnosticada com alguma coisa?”
Vou deixar isso aí para descobrirem depois. Agora, preciso me decidir se ligo ou não pra Isolda. Além do mais, eu não sei o que fazer, sério. Ter liberdade assim de uma hora pra outra é esquisito, porque tem tantas coisas que você pode fazer que se perde. Eu tenho dinheiro o suficiente pra ir pra qualquer lugar, eu acho. Não ando sabendo muito bem como está a inflação das coisas, mas acho que é o suficiente.
Paro em uma padaria e olho para o número da clínica. Respiro fundo e ligo para lá. Faz pouco mais de quatro meses que nos falamos, por aí.
— Alô? Oi, é a Morgana, irmã da... Sim, dela mesmo. Ela está aí?
Depois da atualizada nos últimos acontecimentos do lado de lá, ouço atentamente e concordo coma cabeça, tal qual como um dos cachorros que ficava do lado do motorista do carro da mamãe.
— Então você pode dar um recado pra ela? Fala que eu saí do retiro espiritual e que ela pode retornar pra esse número. Sim, é o meu. Obrigada, que nada, eu que agradeço.
E desligo, batendo o telefone lentamente contra o meu queixo. É, definitivamente ela precisa de um tempo a mais pra relaxar, e começo a concluir que o descontrole emocional com tendências violentas deve ser algo genético, e não de criação. Ou ambos. Contrabandear bebida para uma clínica pra tratar o alcoolismo e atacar os seguranças com uma garrafa quebrada é algo de caráter ou algo hereditário?
Vou para o terminal, peço um salgado que parece menos insalubre e tento não me assustar com o preço das coisas. Olho para o guichê e escolho a cidade que parece mais legal de conhecer. É, aquela parece ser boa, lembro de ter ouvido alguém falar que lá tinha muita coisa legal pra fazer, mas quero fazer uma parada nessa outra antes. Um amigo tinha dito que tinha passado férias lá e gostado. Curioso pensar que da última vez que entrei em um veículo foi o carro branco conhecido carinhosamente como “cata-doido” e agora estou entrando em um por vontade própria. Acho que fica mais confortável quando não tem uma camisa de força apertando seus braços, sempre é mais fácil sem uma.
E sim, eu brinco muito com minha condição, mas foi o jeito que encontrei pra lidar com tudo isso.
Não demoro pra entrar no ônibus, e para minha sorte, do meu lado vem vazio e vou na janela. Será que estou com muita cara de que acabou de sair da clínica psiquiátrica? Tem uma cara pra isso? De deslumbrada? Bem, pelo menos posso ir no caminho ouvindo as melhores da Roxette sem julgamentos.
Dentro estava um clima agradável, a música ressoando em meus ouvidos, o barulho das rodas na estrada foram me acalmando de um jeito que, quando percebi, já estava abrindo os olhos, em algum ponto na estrada. Morrendo de fome, olho para a hora. Já são três da tarde, e desço pra comer alguma coisa, mais uma vez, o com menos propensão a me fazer mal. Afinal, quando se passa os últimos anos com uma dieta regrada e nas horas certas, acaba adquirindo o hábito consigo.
Acordar cedo, tomar banho de sol, ingerir vitaminas, se exercitar. Tudo para dar o equilíbrio certo para seu corpo não se tornar seu pior inimigo mais do que já tende a ser. Encho minha garrafa de água – plástica, assim como tudo que tinha ali na minha agora antiga residência – e voltamos para o trajeto.
Chego já no começo da noite, e, assim como no começo, não faço ideia do que fazer.
Então começo a andar a esmo, seguindo o maior número de pessoas. Paro no que acredito ser um centro e do lado, um parque ambiental, mas não sinto um pingo de confiança de entrar no meio do mato à noite.
Passo em torno de umas duas horas de tempo assim, e aquela sensação, aquela que a psicóloga falou que deveria voltar quando sentisse, começa a aparecer.
Ela se constitui em um vazio que começa a te sufocar de dentro pra fora apertando seu pescoço e batendo sua cabeça contra a parede. Também te deixa com um leve enjoo e com isso, uma falta de ar. Tento lembrar dos exercícios de respiração. Eles ajudam no começo, mas logo vai piorando. As pessoas começam a se tornar estranhas, sinto como se estivesse sendo julgada por todos, como se descobrissem de onde eu sai, de tudo que aconteceu. Típico de quem está tendo uma crise de pânico, tem noção disso, mas não consegue controlar.
— Não, não... –respiro fundo, ainda caminhando, mas agora mais devagar – você consegue.
Isso acontece. Já aconteceu, não posso me culpar pelo que não está no meu controle, não posso mais me culpar, respire fundo, calmamente. É só aceleração do cérebro pela iminente falta de ar.
— Eu estou bem – digo sussurrando pra mim mesmo, rápido – eu estou bem, eu estou bem. Isso não me pertence, isso não me pertence, isso não me pertence.
Mas meus ombros doem e pesam, minhas mãos tremem e eu...Eu...Não consigo respirar direito.
Paro em uma ponte de corrimão de madeira, arfando. Olho pra água escura abaixo dos pedregulhos que sustentam meus pés. Preciso me atentar ao agora...Água, barulho de água, barulho da rua, vozes ao fundo. Eu preciso...
Engulo em seco, e fecho meus olhos. Eu consigo, eu tenho que conseguir, eu preciso...
— Você está indo bem.
Conheço aquela voz, e abro os olhos. Lá está ela, com seu cabelo volumoso em ondas que caem pelos seus ombros, os óculos fundos de garrafa em uma armação quadrada, os olhos cristalinos, o sorriso desajeitado. Meu coração bate mais rápido assim que a visualizo.
— Você acha? – minha voz falha, e ela sorri, apertando ainda mais minha mão com suas esquálidas mãos.
— Tenho certeza – ela aponta pra trás – conseguiu sair dali. Muitas vezes você disse que esse dia nunca chegaria, lembra?
— É... Acho que sim?
— Sabe que tenho muito orgulho de ti – ela levou a mão que segurava a minha até meu rosto, tocando minha bochecha com os dedos – e que você ainda vai ser conhecida por suas histórias que tanto gosta.
— Você sabe me iludir muito bem – que nem minha cabeça está fazendo comigo agora.
— Eu estou falando sério, tá? – e voltou a acariciar meu rosto – Vai dar tudo certo, eu estou aqui contigo.
Sorrio acanhada, tentando não me sentir derretida emocionalmente por aquele momento.
— Por que não posso ter isso sempre?
Ela dá com os ombros, cruzando os braços com o seu suéter levantado até o antebraço.
— Você sabe o porquê.
Em um piscar de olhos, como o esperado, ela vai embora.
É, já deu pra perceber que sou um pouco... Inusual.
“Santo Deus, Morgana, você está falando com espíritos?” Não sei se é bem isso o melhor termo pra definir, mas se quiser tratar assim, fique à vontade.
“Você vê pessoas o tempo todo?” Não. Meu psiquiatra diz que isso é um meio do meu cérebro de lidar com o stress, seria mais como uma conversa comigo mesmo as do ponto de vista de outra pessoa.
“E quem era aquela mulher?” Longa história. Conforme formos nos conhecendo, vão saber diferenciar quem é quem. Não, não sou esquizofrênica, só pra constatar.
Só sei que preciso jantar e dormir. Paro em um hotel próximo, pago à vista, peço o serviço de quarto, como, assisto televisão e quando percebo, acabo dormindo de novo. Se readaptar realmente é cansativo.
Fim do capítulo
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Marta Andrade dos Santos
Em: 06/10/2022
Vai ser uma longa jornada em Morgana
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