Liberdade provisória
— Você tomou alta – ela diz animada, sorridente como se tivesse me dando a notícia de um prêmio inestimável – Não está feliz?
Ouço a tal novidade em silêncio. Feliz? Triste? Não sei. Pra falar a verdade, não esperei que fosse ouvir isso algum dia depois de tanto tempo. Parece que é uma realidade falsa a qual não faz o mínimo de sentido.
— Entramos em um consenso de que já se encontra apta ao convívio social novamente.
— Tá, e o que eu faço com isso?
Ela escuta aquilo emudecida, perdendo o ar latente de alegria que sentia por mim, franzindo as sobrancelhas.
— Sou jogada na rua e fica por isso mesmo?
— Nada disso, Morgana – ela balança a cabeça aturdida, como se o que eu falasse fosse um absurdo tremendo. Nada que eu já não fale normalmente – te chamei porque estamos preparando um cronograma para sua readequação enquanto sua irmã passa por... melhores cuidados onde ela está
Pela cara dela, Isolda deve estar mais fodida do que eu, mas ela não quer estragar a minha suposta felicidade em sair daqui.
— E se eu não quiser? – cruzo as pernas, apoiando as mãos no joelho.
— É necessário – ela se recosta na poltrona acolchoada de diretora – tem algumas coisas lá que são diferentes do que você está acostumada a viver aqui. Convenções sociais principalmente, sem contar...
— Não sei se estou pronta pra isso – olho para a janela na tentativa de fugir da conversa. Ela se levanta, e coloca a mão esquerda em meu ombro, olhando-me de cima.
— Você está, só não se deu conta disso.
Dou com os ombros, deixando o ar sair pelos lábios, cansada. Grande merd* tudo isso.
— Posso contar com seu aval para começar o programa? Em duas semanas, você vai poder sair, se tudo correr bem.
— E eu tenho escolha?
— Querida – ela volta a me acalentar – eu te garanto que será melhor pra você, por mais assustador que pareça.
Dou de ombros, e ela abre a porta. Levanto sem dizer nada. Enfio as mãos no moletom e ando pelos corredores frios daquele lugar que conheço melhor do que qualquer um. Não é como se eu não soubesse que esse dia fosse chegar, mas agora que chegou, não sei o que pensar. Daqui a alguns dias, vou estar lá fora.
Mas, enquanto não estou, tenho uma rotina pra seguir, e pelo que vejo no relógio, já está quase na hora da terapia.
*
— Sentir medo é normal.
— Não estou com medo – nego com um aceno – quer dizer...um pouco. Acho que não saber o que esperar é o que melhor se encaixa.
— Da última vez conversamos sobre seus planos para o mundo lá fora... – a psicóloga volta a notar na sua caderneta – continua sem nenhuma pretensão?
— Não sei, morrer de overdose ou me jogar de uma ponte?
Ela me olha séria, e rio.
— Eu não vou me matar, tá bom? Só estou brincando, nossa – cruzo os braços, chateada – qualquer coisinha vocês já acham que vou me enforcar e cortar meus pulsos.
Ela faz uma pausa, coloca o caderno de lado e dá um gole na garrafinha d’água. Feito isso, volta a me olhar com seriedade.
— Eu não daria o aval de sua alta se não soubesse que você está bem o suficiente pra voltar ao convívio social, mas não é por isso que vou deixar de me preocupar com seus comentários de atentado contra si mesmo, ainda mais numa situação que pode ter causado stress.
É, não tenho bem o que falar. Todo mundo aqui sabe como eu fico quando me sinto realmente estressada, e ela pega a caneta entre os dedos, tentando olhar na minha direção, mas como sempre, desvio olhar.
— As coisas podem estar um pouco diferentes lá fora, mas nada diferente daquela adaptação que fizemos nas últimas semanas, certo? Mas eu quero que saiba de uma coisa...
Ela aproxima a cadeira giratória, naquele estilo de “estou me aproximando porque você pode confiar em mim” tal qual como um adestrador de cão, e volta a falar.
— Caso não se sinta bem ou à vontade e comece a sentir aquelas coisas que já conversamos, sabe muito bem que pode voltar pra cá se assim preferir. As portas sempre estarão abertas pra você.
— Tá, certo.
Ela dá um sorriso amigável, e recua a cadeira. Tento fazer o mesmo, mas sem sucesso. Tenho certeza que ela sabe que no fundo, quanto mais verdadeira parece ser essa realidade, mais apavorada fico.
Mas é como ela disse, sentir medo é normal...É, não é?
Tenho que conferir tudo mais uma vez, só para ter certeza de que não esqueci nada.
Minhas setes mudas de roupa estão aqui. Escovas de dentes, pasta, absorventes, sim. Três pares de meias, calcinhas também. Meu MP3 está no bolso carregado. Não tenho telefone. Meus livros também estão aqui, itens indispensáveis para qualquer um. Minhas anotações também, meus chinelos. Já calcei meu velho All Star e meus jeans preferidos, assim como minha camiseta da sorte. Sim, está velha e gasta, mas tem valor emocional e isso é o que vale.
Me olho no espelho mais uma vez. Espero não ser uma pária lá fora, mas não estou nem um pouco a fim de arrumar esse cabelo. Vai ficar assim mesmo.
Pego as coisas e nem olho para o quarto antes de sair. Tenho certeza que se eu olhar, vai doer.
Quando saio, o corpo do local está me esperando. Me pergunto se estão felizes em finalmente me verem indo embora pra não estarem mais com minha presença ou se estão felizes porque a esquisitona aqui vai voltar pra sociedade como um animal bem domesticado.
A diretora, aquela que fala que me considera uma filha – uma bem problemática, possivelmente – me abraça com firmeza e me entrega alguns documentos em uma carteira de couro nova. Lá tem meus documentos de identificação, um cartão com uma senha anotada e várias notas em dinheiro.
E, dessa vez, me entregam um telefone. Aqueles simples, que só faz ligação, manda mensagem e tem o jogo da cobrinha – pelo menos espero que tenha.
— Aí está salvo meu contato e outros de emergência. Também deixei o da clínica em que sua irmã está e... – ela puxa da bolsa papéis anotados com algumas coordenadas detalhadas – como chegar a alguns destinos, como o terminal rodoviário, entre outros que achei...pertinente. Rondei alguns endereços que você pode se hospedar perto da clínica dela, caso deseje. Pra facilitar a visita, essas coisas.
— É... – olho para o objeto que é pouco menor que a minha mão na cor preta – obrigada.
Ela volta a me abraçar, mas agora com lágrimas nos olhos. A psicóloga, o psiquiatra, a copeira, o porteiro, todo mundo veio pra me dar tchau, agora se é um até logo ainda não sei dizer.
— Nós acreditamos muito em você – ela continua me abraçando, mas lentamente me solta – e vamos sentir muitas saudades... – diz a diretora enxugando as lágrimas – Mande notícias, por favor, e tome cuidado.
Aceno e, pela primeira vez depois de anos, vejo os portões daquele lugar se abrirem e eu, guiada por uma atração magnética que me levou para fora, vejo o céu azul da manhã fora dali.
E é estranho, pra caramba. É assim que um passarinho se sente quando deixa o ninho?
Fim do capítulo
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Lea
Em: 03/11/2022
Na vida,sou como a Morgana.
Qual é o objetivo de estar AQUI?? Não me encaixo a nada,e nem a ninguém. Nem com meus familiares sinto-me "em casa". Queria eu ter um clínica assim,para me internar,e esquecer esse mundo aqui fora.( Suicídio não está nos meus planos. Kk sou medrosa)
*
Não dá para tirar muitas conclusões sobre a vida da Morgana. Vamos lá, conhecê-la mais um pouco.
*
Boa tarde, Shoegazer!
Resposta do autor:
Vish, com a feiticeira de Avalon o buraco é mais embaixo kkk mas e compreensível.
Infelizmente nossa protagonista vai ter uma jornada bem conturbada, e garanto que ainda assim, rola muita identificação. Eu particularmente tem frases que releio e batem com força contra mim.
No mais, se ainda tiver acompanhando, espero que esteja curtindo!
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