A policial pediu novamente a fala, ignorando o fato do Delegado parecer irritado com o desenrolar dos acontecimentos. Permaneceu firme, não se importando com Paredes, não queria a aprovação de ninguém, sua narrativa lenta e performática tinha um motivo, queria tirar Ayana do seu mutismo, e para isso precisava desestrutura-la, o caramujo precisava sair da sua casca, seu castelo de empáfia precisava ruir, e sua confissão era questão de honra.

Maria Rosa chegou a acreditar que não havia conseguido provoca-la o suficiente. Apesar de todas as evidências e provas, a cantora se mantinha impassível, tão indiferente que até parecia que estavam falando de uma outra terceira pessoa.

- Sabe Delegado, o mais interessante de tudo é que a vida muitas vezes nos presenteia. Imagine o Senhor o que eu faria se recebesse uma grande oportunidade na vida, como me sentiria se de repente alguém de renome na cidade, me oferecesse aulas de canto? Seria um sonho, talvez hoje eu fosse uma cantora e não uma policial. E se a partir de uma amizade surgisse um amor? Então, só por brincadeira, um dia criasse uma música, logo depois do sex*, só para curtir, e a professora com seus ouvidos apurados percebesse em mim um talento extraordinário que ela não tinha?...é, no seu lugar ia achar que havia conseguido a sorte grande.

- Continue, quero entender onde quer chegar.

- Pois é, vamos ao caso real. Dany procurou Ayana para melhorar seu canto, a professora acolheu de má vontade, mas, lembrou que a banda havia mencionado o talento da trans certa feita, e já pensando em cativar esse nicho, como não dá um ponto sem nó, aceitou-a como aluna. Meses depois iniciam um relacionamento, Dany se apaixona pela professora, que propôs assumirem o namoro apenas no ano novo. Apaixonada, Daniella pegou o violão, cantando algumas músicas que estava compondo. Todas falavam de amor. Mas, não eram músicas comuns, eram músicas extraordinárias, que com certeza seria um marco na MPB. Imagine um cd delicioso, inédito, fantástico e principalmente sensual, sexual, mágico? Foram essas músicas que chegavam as mãos da experiente Ayana, terminando com a última em sua homenagem, que levou o nome de Alma Gêmea. Não posso esquecer que além das quinze, haviam outras três inacabadas, que a professora não teve como terminar. Não tinha talento com isso.

O Delegado Paredes finalmente entendeu onde Maria Rosa queria chegar, nunca tinha escutado o cd de Ayana, mas, sabia de comentários do potencial de beleza e sedução das músicas. Maria Rosa sorriu meio de lado com a compreensão tardia de Paredes, que esticou o olhar até a cantora que virou o rosto como se nada estivesse acontecendo.

A policial prosseguiu, andando como se estivesse em um tribunal:

- Daniella era brilhante, suas composições eram ricas, de uma beleza inigualável, com certeza iria longe se sua vida não tivesse sido ceifada de uma maneira tão cruel. Talvez por sua personalidade ímpar e por conseguir romper as estruturas de gênero, isso a permitia transitar com tanta beleza, suavidade por diferentes formas de amar, criando músicas que tocariam o coração de muitos.

O Delegado estava vermelho do peito até o pescoço, a pressão com certeza havia subido de forma perigosa, já havia entendido onde Maria Rosa chegaria com sua fala, mesmo usando metáforas e citações.

- Aliás, como tão bem dizia Jean-Paul Sartre: Nunca se é homem enquanto se não encontra alguma coisa pela qual se estaria disposto a morrer – Ou a matar como é o caso. Não é verdade Ayana, você concorda com Sartre?

Júnior e Samira ladeados, não conseguiam respirar, olhavam Maria Rosa, para depois olhar discretamente para a cantora, que estranhamente nem mudava de expressão. A cantora parecia que nem estava escutando, não confirmava, nem negava nada, as expressões do seu rosto pareciam não mudar. Nada fazia com que perdesse a pose e a arrogância, sabia que iria sair presa dali, mas, não ia entregar a motivação tão fácil.

- Policiais, Delegado, sabe o que é mais interessante? Daniella não havia falado com ninguém sobre o cd, quer dizer, era o que a Ayana pensava, não é? Fico imaginando que a sua cabeça começou a pipocar milhares de formas de roubar aquela obra, talvez a sedução fosse o caminho, tentou isso, propôs assumir a relação em troca, mas Dany mesmo apaixonada continuava irredutível em abrir mão das suas músicas. Ai Ayana pensou, e se talvez...só talvez, em um dia de sol, com um refresco de maracujá adulterado...um encontro numa cachoeira, quem sabe ela mudava de ideia por medo, já que pelo amor não deu certo? Pois acredite, Dany não mudou de ideia, então a única solução foi matar. A Cachoeira do Diabo era o lugar perfeito, tanta gente morreu por lá que quem sabe se desviasse a atenção para o ambiente o povo levava o crime para o fantástico? as pessoas podiam até culpar o lugar. O crime parecia perfeito, ninguém sabe, ninguém viu, as provas foram eliminadas, fora que o fato do crime ter acontecido em uma cachoeira, com certeza a natureza terminaria de apagar o que havia feito. Por hora era isso que tinha para falar. Acho importante ouvirmos a Chef Giulia.

- Delegado, Dany deixou uma cópia do diário comigo, queria que eu fizesse uma revisão, a sua ideia era um dia, quando fosse famosa, publicar suas memórias, contando sobre seus amores, como teve a ideia do cd, entre outras coisas. Se o senhor ler, tem tudo bem explicado, música por música, ela era genial, na época do crime até tinha esquecido disso, o sofrimento apaga as coisas na mente da gente, mas, acabei recordando dessa passagem. Bom, trouxe a xérox comigo, está aqui – Giulia entregou tudo na mão de um aturdido Paredes, saindo para sentar perto de Marília, que a abraçou, se afastando no banco para a namorada sentar.

- Mamã, mamã...ruim ela – Falou o filho de Beatriz bem alto. O Delegado olhou irritado, a médica pediu licença para sair, avisando a Daisy que iria espera-la na pousada.

Maria Rosa seguia expondo verdades, as vezes blefava um pouco, mas, nada do que dizia tirava uma reação de Ayana.

- Então Delegado, o short abaixado, a foto no ânus, tudo dava a entender que o crime tivesse cunho sexual, sinal claro de um crime de ódio, um atentado ao gênero alternativo de Dany, para além da sua sexualidade libertadora, mas, que nada, a morte de Dany está ligada a ganância, a cupidez, a inveja...e as pessoas quase que atribuem a morte ao local amaldiçoado e cheio de histórias. O pior é que esse crime também é ligado ao amor, Dany confiou levar tudo o que tivesse em suas mãos sobre a sua arte, entregando de bandeja ao algoz. Como ela ia saber? Com isso lembrei que Clarice Lispector nos alerta sobre os perigos do amor excessivo. Devemos cuidar de nós, antes de partilhar a vida e o amor com outra pessoa. Só consegui isso, quando encontrei o equilíbrio – Falou olhando para Samira, mencionando a citação da escritora:

Fique de vez em quando só, senão você será submergido. Até o amor excessivo dos outros pode submergir uma pessoa.

- Olha, que a sua história daria um livro maravilhoso, mesmo para mim que não sou fã do gênero policial – Falou Ayana pela a primeira vez.

- Sim, você quer escrever um novo final ou vai esperar que apareça dessa vez uma escritora no lugar de uma cantora para matar?

Paredes bateu na mesa, avisando que já bastava. Maria Rosa não mudou de expressão, seguiu firme, sem se deixar intimidar, já havia descoberto o parentesco de Ayana com o Delegado, mas, não desejou mais exposição, afinal, parente não se escolhe.

- Delegado, prometo que já está acabando – Falou e olhou para o pai de Dany, que sentado no meio da sala, era segurado pela mãe, ambos estavam com raiva, mas, o homem fechava o punho o tempo todo, sinal que podia perder a linha, discretamente balançou a cabeça, como se avisasse que ainda não poderia falar nada.

- Dany pelo que entendi sempre foi uma alma impulsiva, no aniversário de casamento dos seus pais, aproveitou a ocasião para contar da sua obra prima, queriam que se orgulhassem dela. Como podem perceber o pai, não tem condições de falar, tomado pela dor de ter a filha morta pelo seu talento. Dona Helena, se puder, a senhora gostaria de falar o que sua filha comentou com os senhores?

Ayana não disse nada, mas, estava pálida, e os lábios tremiam, o crime havia sido esmiuçado, inclusive a motivação, não tinha mais nada a esconder.

- Quando minha filha chegou, nos contou que tinha conseguido organizar suas músicas, mandado para Sade que prometeu ajudar com a gravadora americana, ficamos orgulhosos, ela estava feliz. Se eu falar que havia superado tudo seria uma mentira, eu amava o filho que tive, o Daniel, mas, estava aprendendo a amar quem ele se tornou, só muito tempo depois entendi que havia tido uma menina que nasceu num corpo errado. E você Ayana, tirou a vida da minha única filha só para roubar suas músicas.

Nesse instante Ayana desmoronou, contando que quando ouviu as músicas, as letras, a melodia...havia ficado impressionada, a riqueza das composições era algo que nunca havia ouvido antes, viu ali a chance de embarcar uma carreira internacional – Depois se acalmou para continuar:

- Sou muito mais bonita do que Daniella era, minha voz é superior em beleza e extensão, além do que a minha bagagem como cantora me daria uma capacidade melhor de interpretação. Do que adianta dar uma BMW a alguém que não sabe dirigir? Foi isso que pensei, e finalmente teria o sucesso que sempre sonhei, mas, ela estava irredutível, não queria abrir mão das músicas de jeito algum. No desespero acabei cometendo um crime. Tudo feito, sem ter como voltar atrás, aproveitei o velório para perguntar aos pais se eles sabiam que Dany ia gravar um cd? Como disseram que não, que ela não tinha comentado nada, então, me tranquilizei, o próximo passo era insistir que ela cedesse as músicas. Tudo terminou como já sabem...e aos poucos fui apagando as provas que podia chegar a mim.

O Delegado Paredes pediu afastamento do caso, chamando uma Delegada para substitui-lo, afinal era primo de Ayana. Enquanto esperavam, a sala se manteve em silêncio. A nova delegada chegou rápido, tirou um arco dourado da bolsa ajeitando os cabelos cacheados e curtos, com um corte desconstruído, deixando assim, o rosto livre. Em seguida balançou a cabeça, olhando Ayana com desprezo.

- Tem mais algo a nos contar?

- É um prazer vê-la depois de tantos anos Allegra, continua muito linda... – Falou calmamente, afinal não tinha nada mais a perder

– Bom, no dia do crime disse a Pietra que havia matado Daniella, ela queria me entregasse, insistiu até, mas, lógico que não ia fazer isso.

- E o que fez para convence-la?

- Poucos sabem que Pietra esse ano descobriu que tinha uma irmãzinha mais nova de 18 anos, disse que precisava ajudar, era uma tal de Melody, olha que nome mais brega. Bem, acho que deve lembrar do caso da boate Rainbow, quando um cara entrou na boate atirando, a menina foi uma das vítimas, não morreu, mas, está em coma, volta e não volta. Estou pagando todo o tratamento dela, e para silenciar Pietra ameacei deixar de pagar, simples assim – Por fim Ayana olhou Maria Rosa de cima a baixo para dizer: Nós mulheres somos um oceano de mistérios...

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A policial chegou na pousada perto do almoço, se jogou na cama de braços abertos, com a sensação de dever cumprido. Samira deitou ao lado para dizer: Parabéns meu amor, você soube conduzir a investigação como ninguém.

- Obrigada minha linda, agora só preciso ir ao cemitério deixar umas flores a Daniella, assim, fecho esse ciclo, e partiremos para descobrir o que aconteceu com a mãe de Marília.

- Com certeza vai descobrir.

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Maria Rosa se preparava para sair quando bateram na porta, era o pai de Daniella, que entregou um cheque administrativo num valor altíssimo.

- Muito obrigado por tudo.

- Que é isso, não precisa, não fiz mais do que a minha obrigação.

- Foi muito mais do que isso, recebi uma ligação, vai sair uma nova tiragem de cds com a voz da minha Daniella, os cds de Ayana, assim como os dvds seram recolhidos e destruídos. Nesse instante, está em casa, com tornozeleira eletrônica até o julgamento. Também te trouxe uma procuração, abri mão de todos os direitos das músicas, só peço que seja feito uma ONG para ajudar outras meninas trans que tenham algum dom artístico. E me deixe ajudar, quero pagar financiar um cd teu.

- Ah, esse sonho ficou no passado, sou feliz sendo policial, juro.

- Me empresta seu violão?

- Claro... – Maria Rosa entregou o instrumento, e sorriu ao ouvir o pai de Dany cantando de uma forma tão afinada.

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Porque se chamava moço

Também se chamava estrada

Viagem de ventania

Nem se lembra se olhou pra trás

Ao primeiro passo, asso, asso

Asso, asso, asso, asso, asso, asso

Porque se chamavam homens

Também se chamavam sonhos

E sonhos não envelhecem

Em meio a tantos gases lacrimogênios

Ficam calmos, calmos

Calmos, calmos, calmos

E lá se vai mais um dia

E basta contar compasso

E basta contar consigo

Que a chama não tem pavio

De tudo se faz canção

E o coração na curva

De um rio, rio, rio, rio, rio

E lá se vai...

E lá se vai...

E o rio de asfalto e gente

Entorna pelas ladeiras

Entope o meio-fio

Esquina mais de um milhão

Quero ver então a gente, gente

Gente, gente, gente, gente, gente...

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...: ♫ MÚSICA DO CAPÍTULO ♫:...

Clube da Esquina - Flávio Venturini

Fim do capítulo