As coisas começam a ficar no mínimo, emocionantes por aqui...
13. Refração
Porém, no quarto de Coralina, as coisas se tornavam ainda mais densas, sobretudo ao notar o olhar cada vez pouco amigável de Júlia.
— O que te deixou tão irritada, Júlia?
— A droga do egoísmo da Ana Clara, Coralina – ela vociferava entre os dentes - ela não faz nada pra ajudar, e quando fez nem foi com essa intenção. Pra ela isso aqui tudo deve ser uma brincadeira...
— Mas o que levou vocês a brigarem?
Júlia respirou fundo, ainda sem sair da posição em que estava.
— Se falarmos para sua amiga sobre nós, quais as chances dela nos ajudar?
— A Laura? – ela perguntou surpresa – Nossa, não faço ideia, e ultimamente não ando sabendo mais nada dela mesmo...
— Eu acho que ela pode nos ajudar, mas a Ana não está a fim de conversar com ela pra não estragar a lua de mel, só pode – Júlia revirou os olhos, e Coralina sentiu aquele leve incômodo por ainda não ter conversado com a amiga sobre a hipótese de ser... o que estava aparentando ser.
— Mas o que te faz achar isso da Laura, Júlia? – Coralina cerrou os olhos – Só por causa da relação das duas? Não faz sentido...
— Porque, Coralina... – Júlia se levantou abruptamente, indo para o quarto onde ficava as anotações, e assim Cora a seguiu. Parou em frente ao quadro e apontou para os nomes circulados – isso não era pra acontecer. Se não tivéssemos chegado aqui, não tinha chances de nos conhecermos, está entendendo?
— Mas e se isso for só o acaso? – ela cruzou os braços, pouco confiante – E se for alguma coisa com nós duas, por exemplo? Lá na frente...
— Por que não aconteceu com a gente ainda então?
— Não acha que está levando isso... – Coralina tentou se aproximar de Júlia esticando a mão para tocá-la, que recuou – a sério demais?
Estava vendo aquilo acontecer de novo. As palavras de seus pais tentando convencê-la a deixar tudo pra lá, esquecer o que tinha acontecido e seguir em frente. Seu melhor amigo e companheiro de todas as horas a ajudando com as pesquisas, mas ainda assim se preocupando para puxá-la para o mundo real como costumava dizer.
Agora, Ana Clara dizia que ela não se importava com nada além disso e Coralina, a única pessoa que podia contar ali, também acreditava que estava se deixando levar demais.
Júlia sentiu um amargor sair do âmago do seu estômago e alcançar sua garganta. Era a dúvida que criavam sobre ela que fazia com que todas suas motivações ficassem nubladas.
Mas só ela lembrava do que passou, das memórias misturadas a pesadelos vívidos, das noites sem dormir, da fome, do frio, do desamparo, do desespero, o medo desenfreado que corria por todas suas veias e se desaguavam no muro que tinha criado dentro de si.
Da imagem da sua família morta, os olhos sem vida encarando o vazio, o sangue deles em sua roupa, em sua pele, os gritos desesperados e o barulho de tiro que a perseguiam até mesmo já adulta. Levava a sério tudo em sua vida, e tinha um motivo muito convincente para isso.
— Vocês não viram o que eu vi, Coralina – ela dizia com a voz nitidamente contida entre o misto de emoções que entravam em conflito dentro de si – se tivessem visto, iam me entender.
Coralina envergonhou-se. Lembrou que, para ela, aquilo era uma aventura na qual estava aproveitando cada momento, com os desdobramentos e a investigação que acontecia sigilosa no seu quarto. Até mesmo esquecia que se tratava de algo sério, ou melhor, que aquilo significava o futuro de muita gente. Júlia, no entanto, não esquecia disso por nenhum segundo porque aquela tragédia foi o passado e presente dela, e não algo para acontecer.
— Me desculpe, Ju – ela segurou seus ombros, que pareciam relaxar – você tem razão.
Ela deu com os ombros, encarando o chão, tentando esconder que reconhecia que estava prestes a ter um ataque de raiva que culminavam em uma crise de choro em seguida. Era difícil não se abalar diante de tudo que acontecia.
— Mas é que fico me questionando como Lalá Takahashi nos ajudaria com isso...
Júlia emudeceu. Seu semblante foi tomado de um choque que fez a cor do seu rosto sumir e os olhos se arregalarem brevemente assustado, tudo isso durando poucos segundos, mas o suficiente para Coralina perceber.
— Ju, você está bem? – ela perguntou tateando seu rosto, mas Júlia manteve-se com os olhos cerrados.
— Qual foi o nome você falou agora?
— É... – Cora olhou com estranheza – Lalá Takahashi? Ela odeia que eu a chame assim, mas às vezes sai.
Sentiu um frio percorrer sua espinha. Talvez fosse só impressão sua.
— O que foi, Ju? – Coralina tinha uma péssima impressão ao ver sua colega com aquela reação, ao qual logo mudou, balançando a cabeça.
— Nada, só achei estranho mesmo você a chamar assim.
— Tem certeza?
Júlia voltou com seu olhar sério para Coralina, balançando a cabeça com uma agora convicção.
— Tenho.
Ouviram um barulho vindo da porta da frente, e quando Júlia olhou de relance, viu que era a matriarca junto ao seu marido com compras. Coralina e ela seguiram para ajudar, mas, enquanto tiravam das sacolas as compras, Cora continuava com a impressão de que Júlia estava escondendo alguma coisa.
Primeiro porque Júlia engolia em seco e mantinha o maxilar cerrado, mesmo de forma quase imperceptível e segundo porque ela não perguntaria sobre o nome da amiga a esmo. “Será que ela desconfia de alguma coisa?” pensava Cora consigo enquanto Júlia pressionava os lábios enfiadas nos próprios pensamentos.
Podia ser só uma mera impressão causada pelas emoções cada vez mais à tona, mas precisava tirar essa dúvida mais tarde, sozinha.
No lado de fora, a alguns metros, as coisas eram bem diferentes do que acontecia naquela casa. Para Laura, por exemplo, as preocupações eram outras, e elas a encaravam com seus olhos cristalinos e as bochechas levemente coradas pelo calor que fazia.
— O que foi? – perguntou timidamente.
— Nada, só estava te olhando – ela respondeu com um sorriso acanhado.
— Vai fazer alguma coisa amanhã?
— Além de ficar sob a vigia? – Ana Clara deu com os ombros, bufando – Nada, não posso fazer nada.
— Irmãos mais velhos são assim mesmo, superprotetores, tem um grilo com isso... – Laura dizia tentando contornar a situação – olha, quando eu brigo com o Zé, meu irmão mais velho, fico com raiva dele na hora, mas depois a gente sempre se acerta.
— Mas seu irmão não deve ser uma Júlia da vida...
— Irmãos são todos igual, só mudam de endereço, Ana – ela dizia com um tom mais divertido – ainda mais que vocês ficam por aí, ela só deve fazer isso pra te proteger...
— Mas você não está entendendo, Laura – sua voz ainda continha a indignação da discussão anterior – ela não está nem aí para como me sinto, só pensa em... – e respirou fundo para não dizer nada demais – no que as coisas vão dar.
— E quando ela pensa nessas tais coisas, você não está incluída no meio? – Laura disse cruzando as pernas, e ela bufou, deslizando pelo banco até sua cabeça pender no apoio.
— É difícil de explicar.
— Imagino que seja mesmo...
Não foi esperado que sua mão deslizasse até a dela. Fora algo intuitivo, mas que, ao sentir o toque, agradeceu em silêncio e correspondeu segurando a dela de volta, a mão morna tocando a sua, roçando as unhas enquanto deslizava. Era errado querer tanto tocar alguém? Na verdade, tudo o que era relacionado a Ana Clara era errado para Laura, mas ela ainda assim insistia no erro. Queria cometê-lo como se seu destino dependesse disso, e Ana Clara dizia para si mesmo que aquilo não era nada demais. Repetia isso várias vezes enquanto segurava sua mão.
“Não, isso não é nada demais, isso vai acabar em breve. Isso tudo não basta de um sonho”, pensava com o calor do seu corpo cada vez mais próximo dela.
“Isso é um erro, não deveria estar nem aqui...”, pensava Laura cada vez mais inebriada com o cheiro que emanava da pele de Ana Clara.
“Isso aqui não é nada... Vocês não são nada demais, só pessoas que se dão bem demais e estão confundindo as coisas, mas tudo isso vai passar logo...” o pensamento de Ana Clara se repetia contra o que realmente vinha de sua cabeça.
“Vocês são só colegas, ela nem vai ficar aqui, só estão passando um momento e ela vai embora e você vai voltar pra sua...vida”. Laura fechava os olhos e deixava sair de sua boca um suspiro hesitante.
“Não, Ana Clara, você não pode, você não...”
Pode.
— Me diga que aquilo não foi só um sonho bom... – Ana Clara deixou escapar dos seus lábios entreabertos o sussurro desejoso que percorria sua cabeça, pegando Laura de surpresa.
Sentiu seu corpo se arrepiar tomado por um choque repentino, e logo um frio correr por seus ombros até a ponta de seus dedos. Pensou não ter ouvido aquilo, mas assim que aquela frase reverberou em sua mente, soube que tinha ouvido certo.
O ar faltou novamente, e ela pressionou as mãos em punho, contendo todos seus sentidos que vinham como uma tempestade ao seu encontro, procurando sua solução em algo que ela desejava tanto quanto ela, mas não podia dar.
Pelo menos naquele momento, não.
— Venha às três me ver em casa na quinta – ela sussurrou em seu ouvido – por favor. Eu tenho que ir.
Ela abriu os olhos, sendo chamada daquele transe inebriante e concordou. Laura se levantou, segurou seu queixo, beijou seu rosto perto até demais de onde queria e se despediu a passos rápidos.
Fugiu como pôde porque sabia se ficasse mais alguns segundos, perderia a pouca compostura que lhe restava. Ana Clara a fazia esquecer de tudo isso, e assim ela se foi, a deixando para trás. Já Ana precisou de alguns minutos até que pudesse se recompor do convite inesperado e seguisse de volta para seu destino, onde uma Júlia provavelmente furiosa esperaria por ela.
Quando Laura chegou, os entes já estavam almoçando. Não perguntaram do seu atraso ou fizeram qualquer objeção, e por conta disso o almoço seguiu sem problemas.
Ana Clara ao chegar, não estava com fome, mas ainda assim seguiu para cozinha e para sua surpresa, Júlia não aparentava estar com raiva ou coisa parecia. Na verdade, estava mais taciturna do que o normal, mas ainda assim nada disse.
Perguntou se tinha acontecido alguma coisa para Cora, mas a mesma negou, só comentando que estavam conversando, então ela ficou calada e logo foram interrompidas. Não podia perguntar para Júlia porque tinham discutido e ela se via envergonhada de puxar assunto, então seguiu com a rotina como o esperado.
A não ser de noite, quando Laura estava fazendo um trabalho da escola e foi interrompida por seu irmão batendo na porta.
— Estou atrapalhando?
— É... – ela olhou para o caderno, e o afastou – não, por quê?
— Quem era a garota que você estava mais cedo?
Laura sentiu o coração ir para a boca e, se possível, a alma saindo do seu corpo quando ouviu a pergunta do irmão.
— Que garota? – dizia tentando esconder o aparente nervosismo.
— Aquela que estava contigo na pracinha de manhã – ele cruzou os braços, se apoiando na parede de lado – quem é?
— Ah, não é ninguém demais – ela ria nervosamente mexendo nas folhas à sua frente, o que fez seu irmão logo arquear uma das sobrancelhas – uma amiga da Cora, está passando uns dias lá com a irmã.
— Jura? – ele perguntou sem muita convicção – Pensei que fosse amiga de escola, já que vocês estavam...
— Não, não somos nada– ela respondeu rapidamente, o que o fez ficar ainda mais confuso perante sua reação.
— É... mas vocês pareciam muito íntimas, não é nem mesmo...
— Impressão sua, Hiroshi - ela só o chamava pelo segundo nome quando estava nervosa ou com raiva, e certamente ela não estaria com raiva por essas perguntas banais. Por que ela ficaria nervosa? Ele cerrou os olhos, e deu com as mãos para o ar.
— Tudo bem então, só queria saber quem era, mas já disse que é amiga de Cora...
Ela ficou em silêncio, tentando esconder o nervosismo, mas sem sucesso. O que foi suficiente para que ele voltasse a repetir o que já tinha dito certa vez a ela.
— Só não deixa otōsan e okāsan saber disso, eles podem achar ruim... Sabe o que quero dizer, né?
E saiu do quarto, encostando a porta, deixando uma Laura com os nervos à flor da pele cogitando a ideia de ter visto alguma coisa demais. Não tinha feito nada demais, e se tivesse ele tinha dito como fez na última vez que a viu próxima demais de alguma garota.
Ela balançava o lápis entre os dedos, pensativa. Teria que ser mais cuidadosa do que o habitual, já que a ideia de deixar pra depois o encontro com Ana Clara sequer passava por sua cabeça, porque era a única coisa que sua mente conseguia focar, e parecia que tinha esperado tempo demais por isso.
Mais tarde, naquele mesmo dia, todos tinham ido se deitar, menos Júlia, que alegou estar sem sono e que ia assistir um pouco de televisão. Quando se viu sozinha na sala, respirou fundo e pegou seu caderno, deixando antes dentro do armário da sala, na última porta do lado esquerdo da parte de baixo.
Ela temia o que poderia encontrar ali. Ponderou alguns minutos se era melhor fazer aquilo ou deixar do jeito que estava. No entanto, sabia que se não o fizesse, não teria paz.
Folheou as páginas cuidadosamente, engolindo em seco ao perceber que o que procurava se aproximava cada vez mais. Quando chegou ali, nas folhas próximas ao meio, parou na extensa lista e correu com os olhos os nomes de cada um, até que encontrou aquele em específico e sentiu seu ar faltar por alguns segundos.
Sabia que conhecia aquele sobrenome de algum canto. Era difícil não lembrar de algo relacionado ao conteúdo daquele caderno, ainda mais quando se leu sobre aquilo tantas vezes procurando por respostas naqueles nomes.
Principalmente aquele nome. A cabeça de Júlia latejou, e ela fechou os olhos, colocando a mão contra o rosto, o dedo nas têmporas. Sentiu sua cabeça girar alguns segundos, desacreditada do que estava acontecendo.
Não, não podia ser. Podia? Olhou para aquele nome mais uma vez e sim, podia, mesmo contando com as notáveis mudanças. Se não fosse, seria uma infeliz coincidência, e naquele lugar não haviam coincidências.
Fechou o caderno e voltou a respirar compassadamente, piscando como se chamasse a si mesmo para a realidade ali, sozinha na sala. Sabia que aquela situação toda era ímpar, mas tinha acabado de se tornar pior.
A passos lentos, foi para o quarto e parou em frente ao quadro, coisa que fazia com regularidade. Mesmo com a luz apagada, ele ainda era iluminado pela luz de fora, e foi quando Júlia pegou o giz, pousou o olhar sobre as anotações, passou a mão sobre algumas antigas e escreveu aquele nome maior, o circulando frívola.
Sentou-se na cadeira da escrivaninha, e encarou aquilo em silêncio. As mãos entrelaçadas, o olhar sisudo, a pose torta das pernas, o queixo que ia para frente e para trás com o cerrar de seus dentes, coisa que fazia quando ficava ansiosa demais.
Como falaria aquilo para elas?
Pensou que fosse melhor manter isso consigo por enquanto, até saber o que fazer com isso. Talvez tivesse que resolver isso ela mesmo, e não outra pessoa, ou só tivesse que sentar e esperar, como estava fazendo, e deixasse as coisas se resolverem.
Porque, se Ana Clara soubesse, ficar ainda mais consternada. Não queria falar nem do motivo que fazia ela estar ali, quem dirá algo do tipo, e Coralina entraria em uma crise que poderia afetar todos os planos dela. Isso sem contar que, primeiro, Laura tinha que acreditar nelas para que as coisas tivessem efeito.
Se Ana Clara continuasse se envolvendo com ela, uma hora ou outra ela se veria na obrigação de falar, levando em conta seu lado emocional, e se ela acreditasse, aí sim poderia falar sobre o que ela realmente sabia e desconfiava.
Era uma aposta arriscada, mas era a única que podia fazer. Deixou o ar sair pela boca lentamente, saiu do quarto e voltou a esconder seu caderno. Não podia correr o risco de associarem uma coisa a outra e acabarem descobrindo.
— O que tiver de ser, será – murmurou Júlia consigo depois de fechar a porta do armário e voltar a se sentar no sofá.
Aquilo era um fardo pesado, mas ela já estava acostumada a isso, não por querer, mas por necessidade. Algumas muitas coisas precisavam de respostas, mas tinha certeza de uma coisa.
De que Laura, trinta e oito anos e divorciada, seria morta.
Fim do capítulo
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Lea
Em: 24/08/2022
Nossa!!! E agora,falar ou não falar?? E a Coralina, tão observadora não se atentou ao nome da amiga?? Ou esse é um caderno extra,que a Júlia possui?
Resposta do autor:
Ela não viu, na verdade, como eram muitos nomes, não se atentou nesse, já que estavam procurando por outras coisas... então um dos nomes ali não prenderiam atenção, só de Júlia por ter pleno conhecimento de tudo que rolou.
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