Capitulo 1
“A paixão queima, o amor enlouquece, o desejo trai. Talvez esses fossem bons motivos para decidir entre a alegria e a dor, mas não são. Se a virtude estivesse mesmo no meio termo, o mar não teria ondas, os dias seriam nublados e o arco-íris em tons de cinza.
O nada não ilumina, não inspira, não aflige nem acalma, apenas amplia o vazio que cada um traz dentro de si. Não deixe que a saudade sufoque, que a rotina acomode, que o medo impeça de tentar. Desconfie do destino e acredite em você.
Gaste mais horas realizando que sonhando, fazendo que planejando, vivendo que esperando porque, embora quem quase morre esteja vivo, quem quase vive já morreu.”
Sarah Westphal Batista da Silva em “O quase.”
Capítulo 01 – O Medo do Desejo
Sete anos antes...
Duas garotas tomavam sorvete e riam animadamente no saguão do shopping onde costumavam se encontrar, cochichando indecências sobre as pessoas que passavam sem prestar atenção nelas.
A mais velha, Debra, desabafava sobre os pais entre um comentário e outro, mas o assunto fluía mais facilmente quando falavam de cabelo, roupas, da estréia de um novo seriado e principalmente quando os olhos de Debra se perdiam nos glúteos de qualquer ser do sex* masculino que passasse.
As duas amigas ouviram um grito estridente vindo do outro lado, perto das escadas rolantes. Olharam-se sem surpresa: só havia uma pessoa em Nova Iorque com coragem ou falta de juízo suficiente para atravessar aquele saguão aos berros...
– Richie!! – disseram juntas, uma para a outra.
O garoto se aproximou das duas e mal podia conter as palavras, ou mesmo as lágrimas. Praticamente chorava de alegria. Ainda ofegava, uma vez que viera correndo.
– Kiki, você não vai acreditar! – ele se curvou, apoiando ambas as mãos nos joelhos, depois se levantando novamente. – Você... Você está numa revista! E não estou falando de uma notinha miúda no final, você está na capa!
Debra derrubou o sorvete sobre o colo. Kirsten não conseguia respirar. Evidentemente a reportagem não era sobre ela, mas sobre o filme que rodara meses antes daquela tarde, um longa com diretor promissor, roteiro interessante, mas orçamento baixo e elenco desconhecido.
– Impossível – disse, praticamente sem mexer os lábios.
– Você deu sorte, sua maluca! – Richard balançava a cabeça, atônito. – Estava com medo de ser um fracasso de mal gosto, mas parece que só viram arte nas cenas... Estão indicando o filme aqui como um ótimo programa cult. A bilheteria está subindo!
– Merda... – ela curvou a cabeça e a escondeu entre os joelhos.
Debra e Richard entendiam sua apreensão. Tentaram alertá-la antes sobre as conseqüências, mesmo que obviamente lhe dessem toda a força para aceitar o trabalho.
Ela tinha dezessete anos quando chamou a atenção de um diretor alemão. Tinha uma formação artística pífia mesmo para sua idade e nenhum contato de peso na indústria cinematográfica. Fizera cursos de interpretação, mas queria ser escritora.
A coisa toda foi mais uma cisma do diretor em trabalhar com ela, e de Kirsten em fazer alguma coisa diferente durante as férias.
Quando perguntada mais tarde sobre o que a levara a se tornar uma grande promessa como atriz, respondeu que tinha, simplesmente, sorte.
Naquela tarde, no shopping, pela primeira vez Kirsten sentiu uma pontada no estômago, um medo desconhecido e incontrolável. Abraçara aquele projeto como se fosse a última coisa que faria na vida e gostara muito do resultado, mas não havia parado para pensar que uma vez exposta, seria julgada. Era apenas uma adolescente tranqüila que preservava demais sua intimidade.
Ao ver o cartaz de seu filme em uma revista de cinema, não reconheceu a imagem que via no espelho todos os dias. A personagem nada tinha a ver com quem a encarnava. Era uma mulher, repleta de sensualidade, de feminilidade padrão, de malícia. Uma rainha. Uma aristocrata jovem demais para o peso de sua coroa, que decretava sua morte ao se apaixonar perdidamente pelo último homem por quem poderia fazê-lo: o próprio marido, jovem como ela, manipulado por um conselho ambicioso e traiçoeiro, e atormentado pelas rígidas regras da Igreja que o sustentava no Trono.
Kirsten pusera claro aos amigos os termos do roteiro. Havia mais de uma cena que insinuava sex*. Se aceitasse o papel, estaria dando um passo muito largo, não em sua incipiente carreira de atriz, mas na vida.
Qualquer um poderia ver o filme, desde milhões de completos desconhecidos, até pessoas que ela via e com quem conversava com freqüência. Por alguns segundos Kirsten achou que nunca mais conseguiria sair na rua e lembraria, depois do susto, por muito tempo, que a primeira conseqüência do sucesso na sua vida foi a vergonha.
* * *
Uma funcionária terminava de varrer o chão quando ergueu os olhos para cumprimentar o trio que entrara na coxia, conversando alto e fazendo algazarra. “Todos malucos” ela pensou, embora tenha se limitado a acenar.
Semestre após semestre uma nova turma júnior era formada naquele teatro comunitário. Os professores eram voluntários e o dinheiro vinha da prefeitura.
Aqueles três já eram formados há um ano, mas permaneciam ligados ao projeto, ajudando com o que pudessem e lamentando não terem sido aceitos em companhias permanentes.
Azar.
Ainda adolescentes, começavam a descobrir que o caminho para a Broadway dependia, antes de qualquer coisa, de bons contatos e força de vontade – talento era um item dispensável naquela lista.
Mesmo assim, todos ali sonhavam alto. Gail tinha corpo de bailarina e disciplina irrepreensível, além de uma facilidade nata para decorar textos.
Fred era sempre escolhido para estrelar as montagens, uma vez que conjugava desenvoltura no palco com um rosto atraente e uma projeção de voz incrível.
Amanda não tinha nem muita disciplina e muito menos concentração, sendo de longe a mais insegura sobre seguir carreira no teatro, mas tinha o que os professores, admirados, chamavam de “alma de atriz”, o que a tornava capaz de arrancar as emoções mais profundas do público ao subir no palco.
Fred e Amanda eram namorados e estavam de aniversário no dia que toparam com a servente atrás do palco. Gail era a melhor amiga dos dois. Ela conseguira, de um conhecido, documentos falsos que permitiriam ao trio entrar no cinema e assistir a uma sessão não indicada para menores.
Fred planejara um encontro romântico, mas Amanda insistira que fossem os três, não apenas porque fora Gail quem possibilitara a entrada, mas porque nunca se separava da amiga.
Eram íntimas além do ponto que Fred poderia compreender.
Ele ria quando as duas trocavam olhares e insinuações provocantes, quando passavam juntas, quase próximas demais, o texto que interpretariam no palco e não se importava, de modo algum, quando Amanda apanhava seu violão e cantava hits românticos olhando para Gail e não para ele, pelo menos na maior parte do tempo.
Fred achava engraçado. Todos achavam, pois quando a brincadeira estava ficando séria demais, Amanda e Gail riam e mudavam de assunto.
No cinema, o trio se sentou em poltronas bem próximas da tela de projeção, pois o filme escolhido começava a se tornar concorrido e a demandar mais salas para atender ao interesse do público.
– Amanda e seus filmes difíceis... – reclamou Fred, com vinte minutos de enredo.
– Pelo menos dessa vez não é um documentário interminável sobre política ou direitos humanos – abrandou Gail, dando um tapa de leve no ombro de Fred, que riu.
– Nem uma balela eco-chata! – completou o garoto.
– Vocês não precisam ficar aqui. Eu assisto sozinha, ta legal? – Amanda se defendeu, ofendida com a cumplicidade de Gail e Fred ao criticar seus gostos.
– Desculpa, não precisa ficar brava – disse Gail. – É que...
– É que o quê? – ela perguntou, irritada, logo em seguida ouvindo protestos dos ocupantes das poltronas adjacentes.
– É um filme de época, amorzinho – sussurrou Fred. – Eu não vejo graça nenhuma nisso.
– É uma obra-prima sobre duas pessoas que são obrigadas a se casar sem amor e que quando passam a se amar, são obrigadas pela tradição a fazer sex* apenas para reprodução, tudo controlado pela Igreja – explicou ela.
– Então era por isso que aquele Padre estava assistindo tudo, antes? – Fred estava decepcionado com aquele encontro.
– Era assim que funcionava com os monarcas, por muito tempo. A concepção do herdeiro do trono deveria ser fiscalizada, sem o risco de ocorrer pecado.
– Pecado?
– Prazer, seu idiota. O corpo é dom de Deus e pertence a Ele, o prazer físico é pecado e conduz ao inferno – Amanda tentava explicar Filosofia Cristã e ao mesmo tempo prestar atenção no filme.
– Pra mim é demais – Fred se levantou e alguns protestos foram ouvidos a sua volta. – Vou esperar na lanchonete.
Amanda pulou para a poltrona dele. Não disse nada. Gail também estava um túmulo, mas sua respiração era nervosa e Amanda podia perceber, quando apurava a audição.
Amanda esperou que a outra se distraísse com o filme, notando sua mão sobre o braço que separava os dois lugares. Agindo naturalmente, Amanda colocou sua mão sobre a de Gail, que não protestou.
O filme se tornou mais tenso, embora nada comparado aos batimentos cardíacos das duas garotas, que já estavam de mãos dadas. Gail fingiu um bocejo e inclinou sua cabeça, pousando-a sobre o ombro de Amanda, que algum tempo depois soltou a mão dela, mas passou o braço por suas costas e lhe acariciou o ombro. Era uma carícia muito diferente dos afagos amigáveis que trocavam geralmente.
O filme esquentou. A sala estava no mais absoluto silêncio e um nervosismo palpável parecia tornar o ar mais pesado. Amanda continuava com o braço atrás da nuca de Gail, esporadicamente lhe acariciando a pele do pescoço com as pontas dos dedos.
Ela agradeceu aliviada quando a cena terminou, pois mesmo o que acontecia consigo, que era talvez o momento de maior medo e tensão de toda a sua vida – muito pior que qualquer estréia nos palcos – não conseguia evitar que seu corpo reagisse ao estímulo recebido pelos olhos.
Soube antes daquela cena o que a fizera escolher esse filme: havia alguma coisa na atriz principal, desconhecida, que a inquietava.
Quando pôs os pés na sala de cinema, de mãos dadas com Fred e logo após rever o cartaz, na entrada, Amanda percebeu pela primeira vez que uma mulher era capaz de lhe despertar o mesmo desejo que sentia pelo namorado ou por homens em geral.
Gail se mexeu sensivelmente e seu rosto roçou na face de Amanda. Ambas apertaram os olhos com força, além das mãos entrelaçadas. Já não podiam mais evitar. Dessa vez não haveria risadas nem mudanças de assunto, elas queriam ir até o fim, não se importando com as conseqüências daquele ato.
Beijaram-se longamente, ocultadas pela escuridão do cinema, protegidas pelo anonimato e movidas pelo desejo da descoberta, que naquele momento sobrepujou, finalmente, o medo e a incompreensão do que sentiam.
Fim do capítulo
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