CAPÍTULO 1: FOI PRA SEMPRE ENQUANTO DUROU
Já se passara um ano do acidente, e minha vida continuava exatamente a mesma. Cumpria as mesmas rotinas naquela cidade e nada mais fazia sentido, voltar para aquele apartamento frio, solitário, representava um sacrifício que eu não estava mais disposta a pagar.
Estava mais do que decidida a antecipar a defesa do meu doutorado e voltar para o Brasil o quanto antes. Permanecer em Londres, fingindo fortaleza depois da tragédia que outra vez assolou minha história, foi um erro. Precisava estar perto das pessoas que eu amava e que me amavam também.
Minha vida desde o fatídico 31 de maio de 2009, perdeu o sentido. Sempre que me lembro, desejo voltar no tempo e impedir que Camila entrasse naquele vôo. Nossos últimos dois anos juntas foram conturbados, na maior parte do tempo estávamos separadas, pelos compromissos profissionais. Por isso, nossa rotina de viagens era constante, todo o tempo que podíamos, uma viajava para encontrar a outra, e foi justamente para ir ao meu encontro, que Camila partiu do Rio para Paris, onde eu estava em um Congresso Internacional de Neurologia.
Era um domingo, por volta das 19H quando Cami me ligou, amorosa como sempre:
-- Amor, estou embarcando, daqui a pouco vou desligar o celular, amanhã estarei pertinho de você pra matar essa saudade toda...
-- Vou estar te esperando cedinho no Charles de Gaulle. Vou comprar aqueles brioches que você agora, bem quentinhos... Cheia de saudade meu amor...
-- Isa estou lavando tanto pão de queijo que sua tia me mandou, que estou com medo de ser presa por tráfico...
Gargalhamos no telefone.
-- Amor, quando você estiver grávida, não tenha desejos mineiros em plena Londres... Vai ficar difícil atender e nosso filho nasce com cara de feijão tropeiro...
-- É mais seguro que eu passe a gravidez no Brasil amor... A comida daqui é um horror...
-- Conversamos isso quando eu chegar aí, agora tenho que ir. Até daqui a pouco meu amor.
-- Boa viagem minha vida...
-- Obrigada, tchauzinho.
-- Ei!
-- Oi amor.
-- Te amo.
-- Também te amo minha vida...
Essa foi a última vez que nos falamos. Camila embarcou no vôo AF 447. O vôo da Air France que caiu no Oceano Atlântico, após uma pane elétrica após atravessar uma área de tempestade. Ainda era escuro quando fui para o aeroporto buscar Camila, com um embrulho de padaria, com os brioches de uma padaria perto do hotel, que ela adorava. Minha ansiedade por rever meu amor deu lugar a uma angústia inexplicável que me sufocava, quando cheguei ao saguão, a concentração de repórteres, e de pessoas apavoradas, algumas em desespero, anunciaram as piores horas de minha vida.
Busquei informações com os funcionários da Air France, e para meu desespero, afirmaram o desaparecimento da aeronave, desde a madrugada, às 23H no Brasil. Pelo susto da notícia, fiquei paralisada, o embrulho, deixei cair no chão, como se não tivesse forças para segurar nada, nem meu próprio corpo. Tive a sensação de desmaio, e fui amparada por um dos funcionários. Acomodaram-me em uma poltrona, e nesse momento meu celular tocou, no display o número de minha sogra:
-- Isa?
-- Oi Márcia...
-- Minha filha... Diga-me que Camila não embarcou nesse vôo...
Márcia falava ansiosa, com respiração ofegante. Como eu gostaria de dizer o que ela queria ouvir...
-- Sinto muito Márcia...
Caí no pranto ao ouvir o grito desesperado de minha sogra.
-- Isa minha filha... Onde está minha nossa Camila? Meu Deus não leve minha filha...
Márcia dizia coisas desconexas, e eu parecia anestesiada, olhava para aquelas dezenas de pessoas angustiadas, apreensivas, algumas rezavam, outras mantinham a esperança que o desaparecimento do avião fosse resultado de algum pouso forçado em algum lugar sem comunicação com satélites. Eu tentava acreditar nisso, mas meu coração sentia que eram falsas esperanças, minha alma estava sendo inundada de uma tristeza e vazio inenarráveis, e foi uma questão de horas para se confirmar oficialmente a queda do Airbus e a partida de Camila para sempre da minha vida.
Todos os rituais simbólicos de despedida foram desgastantes, mas não tanto como a expectativa pela localização e identificação do corpo de Camila. Eu, a irmã mais nova de Camila e Márcia, minha sogra, acompanhamos todo esse processo juntas em Recife, onde a Airfrance disponibilizou uma equipe para assistir aos familiares das vítimas.
Fiquei no Brasil por cerca de dois meses, tia Sílvia e Lívia ficaram comigo em Campinas, depois fui com elas para Valença, mas nada me tirava do profundo abismo que me via. Bernardo e Olívia bem que tentaram, passaram um final de semana comigo na fazenda do vovô, entretanto, o máximo que conseguiram foi me fazerem sair de casa para jantar no restaurante do meu padrinho que agora era o marido de tia Sílvia.
Depois desse tempo, decidi voltar para Londres e concluir meu doutorado, mergulhar no trabalho e dar continuidade às pesquisas de Camila tornou-se uma missão para mim. E foi exatamente o que fiz nesse tempo, há mais de um ano e meio vivo nessa rotina vazia, ao menos no que diz respeito a carinho, amor, calor humano. Afastei a maioria das pessoas que tentaram se aproximar, e rejeitei a companhia de alguns amigos que se ofereceram para passar comigo uma temporada em Londres, minha aparente força chegava ao fim, era hora de voltar.
Falei com meu orientador, e com a tese pronta, apresentá-la antes do prazo não foi difícil. Como esperávamos, a defesa foi um sucesso, e meu título de doutora foi homologado. O grupo de estudos fundado por Camila ficou responsável pelo prosseguimento pelas pesquisas em Oxford, e eu, voltei para Campinas.
Minha chegada foi meio surpresa, justamente para evitar as boas-vindas, as possíveis festinhas que meus amigos e minha família podiam aprontar. Desde a morte de Camila, até meu sorriso era coisa rara, que dirá comemorações. A única pessoa que sabia da minha volta era dona Francisca, nossa faxineira de confiança, eu ia precisar da minha casa limpa quando chegasse.
Entrar na casa que durante anos foi um pedaço do paraíso, que dividi com Camila foi como cravar uma lança no meu peito. As lágrimas que durante meses sufoquei como se isso poupasse meu sofrimento, banharam fácil meu rosto. Camila estava em toda casa, e como se estivesse em um filme, assisti as cenas de nós duas juntas na cozinha inventando receitas com as sobras da geladeira, vi o sofá que por tantas vezes acolheu Camila comigo no seu colo, olhei para nosso quarto e lá as cenas que relembrei foram um misto de saudade com uma dor insuportável pelo fato de todo aquele amor eu nunca mais teria em toda minha vida. Assisti Camila e eu nos amando, dividindo piadas que só tinham graça para nós duas, revi seu olhar doce, seu sorriso acalentador e deitada abraçada com sua camisola de seda, esforcei-me para sentir o lugar mais seguro no mundo para mim: seus braços.
Nossa casa estava cheia de fantasmas, mas eu não tinha certeza de que queria me livrar deles. Amar Camila mesmo que ela não estivesse mais nesse plano, não era para mim um peso, pelo contrário, minhas orações antes de dormir sempre pediam para que Deus a trouxesse para mim de volta pelo menos em sonho. Às vezes meu pedido era ouvido, e eram as únicas vezes que meu sorriso era sincero.
Não podia me esconder ali para sempre, e depois de um dia inteiro, enfurnada em minhas lembranças e fantasmas, liguei para tia Sílvia e Lívia avisando sobre minha chegada. No final da manhã, fui até a chácara da família de Camila, visitar especialmente o Vô Elias que já não andava mais,e desde a morte da neta, demonstrou uma piora no seu estado de saúde.
A família Drumond não era a mesma, todo aquele jeito efusivo de Márcia estava apagado com as mortes do marido e da filha, ambas de maneira abrupta, violenta.
-- Isa... Que bom que você está de volta minha querida...
Márcia me acolheu em um abraço demorado, e emocionadas olhamos ao mesmo tempo o retrato de Camila na estante.
-- Às vezes ainda não acredito que ela está morta, Isa... Fico esperando que ela entre por aquela porta e me arranque essa dor, essa saudade que me consome...
-- Sinto o mesmo Márcia. Você não imagina como foi voltar pra nossa casa...
Não agüentei concluir meu pensamento, parei para dar lugar ao choro, e depois de conversamos sobre nossa saudade, Márcia pegou minhas mãos, segurou-as forte e disse:
-- Eu sei o quanto vocês se amavam Isa, mas temos que aceitar, e você principalmente, que ela não está mais conosco, mas você está. Você tem que seguir com sua vida, você é jovem, merece ser feliz.
-- Ser feliz sem a Camila? Impossível Márcia...
-- Você nunca foi feliz antes de conhecê-la?
-- Sim... Algum tempo...
-- Então... Não deixe que esse coração que tanto amou minha filha se feche... A amargura e a solidão não deve ter lugar na sua vida Isa.
As palavras de minha sogra para mim naquele momento não fazia muito sentido, mas quando ela me perguntou se nunca fui feliz antes de conhecer Camila, a primeira pessoa que veio a minha mente foi Suzana.
Fim do capítulo
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PHoenix_72
Em: 01/01/2022
Então, me parece q na parte 1 a mãe de Camila se chamava Carmen.
Bom, mas o fato é, pq Camila teve q morrer????
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