HERA 

Dormir é um luxo. Um luxo que Lorena e eu não andamos tendo ultimamente. Dois dias depois do pronunciamento do Supremo sobre Lorena e ainda temos que lidar com pessoas tentando passar a barreira feita pelos seguranças ao redor da casa. Infelizmente, quase metade da alcateia ficou a favor de expulsá-la, e isso só não foi feito, pois o Supremo os convenceu a deixar a ideia de lado através de ameaças. Híbrida ou não, Lorena faz parte da Família Real, é minha companheira, e ser uma híbrida não interfere nisso.

Devido às mudanças e à exposição desse segredo, mais desconhecidos tem acesso à mansão, e não estou nada satisfeita com isso. Durante a noite, os Guardas Reais ficam de olho na casa e fora dela, mas durante o dia as coisas complicam. Como membro da Família Real não posso ficar sem escolta, e Lorena como minha parceira precisa de ainda mais segurança ao seu redor, segundo meu pai, como futuras Supremas Alfas não podemos respirar sem escolta. Por isso, Luís escalou mais uma vez outra Equipe de Seguranças, tanto da Equipe de Contenção como de Segurança para escoltar a mim e a Lorena. Agora, oito seguranças que não conheço andam em minha cola o dia todo, e uma equipe de quarenta seguranças fazem ronda ao redor da mansão até a noite, que é quando os Guardas Reais e minha Equipe Alfa estão disponíveis para assumir suas posições.

O Supremo está com a mesma quantidade de Guardas Reais de sempre o escoltando, eu abri mão dos meus - Miguel, Pedro e os outros - para ficarem com Lorena na escolta mista que montei para ela a partir da Equipe Alfa. Matheus está com o que sobrou da Alfa em São Paulo, tentando descobrir o que os pais de Lorena sabem sobre ela, se sabem sobre ela. Obviamente, Lorena não ficou feliz com a mudança, mas não temos muitas opções.

A Rainha Freya entrou em contato horas depois do pronunciamento do Supremo, pois ficou sabendo da notícia. Ela não gostou de não ter sido informada sobre Lorena também ser uma vampira, e depois de quase duas horas conversando por telefone chegamos a um consenso. Ela não queria que esse detalhe tivesse sido escondido dela, porém, Aliandra que estava por perto a fez entender que Lorena tem uma parceira, no caso eu, que não iria ariscar uma informação tão importante capaz de por em risco a vida da companheira, sem antes ter certeza de que a trégua estabelecida não é uma farsa.

Durante a discussão fiz questão de salientar outro detalhe importante: o acordo que fizemos estabelece que Aliandra pode ter contato com Lorena devido o treinamento, foi por esse motivo que fizemos a trégua, além de parar os ataques até que se entenda o motivo de Lorena também ser uma bruxa. Concordamos em fornecer todo tipo de informações relacionadas aos ataques e ao inimigo. Dar informações pessoais sobre a vida da minha parceira não está no acordo, portanto, ela não tem direito de exigir isso.

Depois de muito se discutir, mantivemos o acordo e a trégua, visto que Lorena ser uma vampira não altera o fato de ela também ser uma bruxa.

Apesar de termos quase certeza de que Lucas é o informante em nossa alcateia, ainda não conseguimos provas suficientes para destituí-lo do posto de Alfa, visto que em nossa tradição, os Alfas devem lutar com os outros interessados para merecer tal posição, e por merecer, não podemos destituí-lo sem uma prova concreta de traição. Quando tivermos provas de que ele é o informante o Supremo pode usar seu poder para tirá-lo do cargo, e outro combate será feito para decidir quem será o novo Alfa dessa alcateia, até lá, continuaremos nossas rotinas normalmente, ignorando explicitamente os sinais que Lucas tem dado de um possível traidor. Foi decidido que assuntos importantes demais não vão ser mais discutidos na frente dele, mas, para que Lucas não pense que nós desconfiamos dele, vamos deixar algumas informações menos relevantes saírem. Até então, Lucas ainda está de cama depois do ataque, não fomos visitá-lo, e Luís diz que Lucas está mais que irritado por ser mantido na cama por tantos dias. Um lycan se cura rápido, não tão rápido quanto os vampiros, mas rápido o suficiente, o que quer que tenham usado para infectá-lo, foi potente o suficiente para deixar o processo de cura lento.

Após olhar o celular pela quarta vez, decidi que deveria me levantar da cama. Desde que me deitei para dormir, não fechei os olhos uma vez sequer. Lorena, apesar dos pesadelos frequentes, dorme tranquila ao meu lado. Não consigo deixar de pensar em como o corpo dela está reagindo à mudança. Lorena passa cada vez mais tempo acordada durante a noite do que durante o dia, não sai da minha mente que isso tem a ver com seu lado vampiro. Durante o dia ela se sente cansada e sonolenta, e mesmo se esforçando para ficar acordada, seus cochilos durante a tarde ficam cada vez mais longos. Depois do anúncio sobre Lorena, os treinamentos fora da mansão foram todos interrompidos por tempo indeterminado. Posso ver o quão ansiosa ela está com o passar dos dias dentro da mansão. Lorena não é o tipo que fica trancafiada, ou que é caseira como minha mãe, não, Lorena é livre e independente, me olha torto toda vez que a lembro do porquê de não poder sair de dentro da mansão, e me entristece que não posso dar o que ela quer por enquanto: liberdade. O pior de tudo é que não sei se algum dia no futuro ela vai poder ter a liberdade que quer. Cresci rodeada de guardas, sendo vigiada por todos os lados, isso não me incomoda mais e na maioria das vezes não reparo que estou cercada por uma escolta, mas para ela...

Suspiro.

Durante a reunião por telefone com a Rainha bruxa, concordamos que os treinos de Lorena com Aliandra passarão a ser feitos na mansão, Freya não concordou, óbvio, mas não cedemos. Lorena agora tem os olhos de todas as espécies nela, interessados no poder que ela tem, sem contar os rebeldes, acrescentando a isso não podemos ignorar a possibilidade de nosso mais novo inimigo misterioso.

Pessoas com dons são raras. Raras e perigosas, por isso, toda a vez que uma pessoa com dom surge em nossa espécie, as escondemos, infelizmente a pessoa é obrigada a deixar a família e a vida que leva, caso contrário, pode se tornar um risco para sua própria espécie, ou pior, ser usada pelos inimigos contra sua própria vontade como era feito séculos atrás, antes do meu pai estabelecer uma lei de proteção à essas pessoas. No entanto, nem mesmo a lei foi capaz de parar o mercado de pessoas com dons, onde são vendidas e tem seus poderes violados por qualquer um capaz de tirar suas vidas. Há duas década atrás ainda encontrávamos Alfas escondendo pessoas com dons, as usando como escravas, para usar seus poderes para benefícios próprios. No século XX o Supremo criou a lei que os protege e condena quem as usa como escravos. É quase difícil de acreditar que pessoas com poderes, tão poderosas, possam ser aprisionadas e usadas, mas entende-se melhor essa situação quando se sabe que pessoas com dons tem pouca tolerância a dor física, e qualquer tortura se torna um mar de desespero para elas, escapa dessa situação a Família Real e as Famílias Fundadoras, que atualmente são somente três.

Me levantei da cama devagar para não acordar Lorena, principalmente porque a noite é o horário que ela está mais desperta, qualquer barulho diferente ela acorda e vai investigar. Segundo ela, virou uma rotina investigar qualquer coisa desde que passou a viver com a gente, não a culpo por isso.

No corredor, cumprimentei Marília, Max e Pedro que faziam a ronda. Passei pelas portas dos quartos inutilizados, abertas para que a Guarda pudesse ver e ouvir caso alguém tentasse invadir a casa por um deles. Mesmo com diversos seguranças fazendo escolta ao redor da mansão, ainda é possível que isso aconteça, e desde que comecei a trabalhar como Líder da Escolta Real, aprendi que toda a possibilidade deixa de ser uma possibilidade se não dermos a devida atenção só por ser uma "possibilidade".

Na cozinha, me servi com chocolate quente, talvez me ajudasse a dormir. Com o roupão de seda esbarrando no chão, caminhei até a sala de estar a algumas portas de distância da cozinha.

Ver a casa escura e silenciosa me tranquiliza. Costumo passar os dias em reuniões com o Supremo, e quando não estou nelas estou treinando seguranças, e quando não estou nos treinos estou resolvendo algum assunto em particular para o Supremo, sempre rodeada de barulhos e pessoas o tempo todo. Sentir o silêncio da casa e estar sozinha me dá uma sensação inigualável de tranquilidade.

Quando chego ao umbral da sala de estar noto Miguel, Adyson e Oliver conversando baixo, estavam de frente para a janela da sala de estar e não viram eu me aproximar. Me sentei tranquilamente num sofá próximo a eles e todos se viraram com facas e armas nas mãos prontos para atacar ao ouvirem o barulho emitido pela almofada.

- Puta merd* Hera! Não ouvimos você! - Uma série de maldições deixaram as bocas dos outros dois. Miguel embainhou a faca de volta na cintura, Adyson abaixou sua Berreta px4 assim como Oliver. Cocei o queixo, um hábito adquirido do meu pai.

- Vocês querem um chá para acompanhar a conversa? - Cruzei as pernas e me encostei no sofá.

Adyson deu um risinho e alisou a farda.

- Meu posto é fazer a ronda pela casa, estava passando por aqui quando vi os dois conversando. - Adyson indica Miguel e Oliver com o queixo, ambos o encaram carrancudos.

- Não estávamos conversando, estava passando minhas impressões da Equipe Alfa para que Miguel faça a escala. - Oliver fechou as mãos em punhos e os pôs nos bolsos da calça.

Miguel, o único sem farda, usando somente uma calça larga e uma regata branca, negou com a cabeça desanimado. Se sentou no sofá a minha frente. Oliver e Adyson se encaravam quando foquei minha atenção em Miguel. Além dos detalhes irrelevantes sobre sua boa aparência, notei as olheiras embaixo dos olhos, não eram fortes e bem visíveis como as da Lorena quando necessita de sangue e dormir, as do Miguel são mais sutis e fracas, quase imperceptíveis.

- Sem sono? - Cruzo os braços e ele dá de ombros.

- O de sempre. - Avalio seu rosto.

- Não me lembro de você perdendo o sono nem mesmo quando a situação era das piores. - Adyson ri.

- Miguel está sonhando com a companheira, por isso está perdendo o sono, já vai fazer duas semanas nisso. - Arqueio uma sobrancelha surpresa. Ele não tinha me contado.

Miguel lançou um olhar irritado para Adyson, que ignorou.

- Por que não me contou? - Miguel deixa um suspiro derrotado sair dos lábios, e massageia as têmporas com uma das mãos.

- Você já tem coisas demais na cabeça, não ia acrescentar essa, mas agora que sabe... - Lança outro olhar indignado a Adyson antes de olhar para mim mais uma vez. - Quero que saiba que não pretendo deixar a Guarda, amo esse trabalho, e não pretendo abandoná-lo.

- Você vai precisar dedicar tempo para sua companheira, não vou permitir que fique trabalhando como faz agora. Ela provavelmente vai querer estabilidade, e se você continuar na Guarda não vai ter isso. - Miguel balançou a cabeça afirmativamente.

- Eu sei, pensei nisso e já tenho algumas soluções, de qualquer forma, é inútil ficar aqui remoendo se não sei como ela vai ser, portanto, vamos esquecer esse assunto por enquanto. - Adyson bufa.

- Ele vive dizendo isso, quero ver quando ela aparecer, se vai continuar com o mesmo discurso. - Adyson caminhou até o umbral da porta da sala de estar, e olhou o corredor. Normalmente, o turno que Adyson está exige que ele caminhe pela casa toda, e não somente olhe os corredores da sala de estar.

- Tenho certeza que Miguel vai dar pra trás. - Oliver comenta sem tirar os olhos da janela. Para minha surpresa, Miguel ignorava os comentários sarcásticos sem nem mesmo fazer uma careta inconformada, geralmente ele repreende ou os cala com um rosnado irritado, hoje, ele só parece cansado e indisposto. Me lembrei de como foram os dias antes de encontrar Lorena, e dos dias antes de marcá-la, ambos são cansativos e torturantes, principalmente o último. Quando um parceiro vê sua companheira pela primeira vez o instinto de acasalamento se apodera do corpo no mesmo instante, a necessidade de marcá-la para que os outros saibam a quem ela pertence é irresistível e torturante para quem decide adiar o processo.

- Se serve de consolo, só piora. - Miguel me encara com um sorriso triste.

- Em algum momento para?

- Quando você a conhece e consuma a união. Depois disso pude voltar a dormir sem ser interrompida pelos sonhos, mas em compensação tenho outros motivos que interrompem minhas noites de sono. - Ele concorda com a cabeça, nada surpreso com o que disse.

Ele sabia, todos sabem, todos ouvem as histórias sobre as uniões de parceiros ainda adolescentes. Miguel sabe que não terá como fugir da companheira que Gaia preparou para ele, e por mais que ele tenha demônios internos para lidar, vai ter que resolvê-los rápido, se o que está o incomodando tanto for o que estou pensando.

- Acho que Gaia quer que você parta para o nível dois da vida. - Comento.

- Ainda não lidei com a parte um, e nem sei se quero lidar com isso por enquanto.

- Já fazem décadas Miguel, quase dois milênios, você tem que aceitar isso. - Ele não responde, somente encara um ponto aleatório no chão. Oliver continua imóvel olhando pela janela, sem dizer nada, Adyson sabia que o assunto era delicado e saiu da sala assim que comecei a falar.

- Não é tão fácil assim.

- Acredite em mim, eu sei, eu entendo. Mas ignorar para sempre não vai resolver, você precisa aceitar e superar isso.

- Eu vou, um dia... - Dessa vez eu bufei.

Medos e inseguranças são demônios que não nos deixam seguir em frente. Eles tem o tamanho que decidimos dar a eles. Se os ignorarmos crescem e aos poucos vão nos matando interiormente. Lidar com eles depende da nossa coragem em enfrentá-los para seguir com a vida. Talvez Miguel precise conhecer a companheira para isso acontecer.

Com esse pensamento em mente, voltei para o quarto, para o calor da minha companheira.

Fim do capítulo