CapÃtulo 5 – Uma releitura lésbica e fantástica
A Cigarra sempre foi festeira. Nunca se preocupou em economizar, em fazer provisões, porque nunca considerou a falta. Viveu sempre desta maneira: se divertindo enquanto trabalhava, indo dormir quando todos acordavam.
A Formiga sempre foi trabalhadora. Sempre se preocupou com a reserva, com a possibilidade da falta, porque foi assim que aprendeu. Viveu sempre desta maneira: vendo os outros se divertirem enquanto ela trabalhava; trabalhava enquanto todos dormiam.
Cigarra e Formiga sempre foram opostas, em tudo. Na personalidade, no trabalho, na vida, até mesmo na maneira de lidar com um vírus desconhecido (ainda que ambas usassem máscara e fossem a favor da ciência, do SUS e da vacinação). Mas mesmo tão diferentes se viram obrigadas a enfrentar uma situação que acometeu a todos. Uma epidemia, quando chega, abala todo o mundo, embora uns sejam mais ou menos afetados.
De comum entre elas, naqueles primeiros meses de isolamento social, só o medo – do futuro, da doença e até de morrer.
Antônia e Alícia voltaram a se encontrar quase um ano e meio depois do primeiro contato. Se esbarraram por acaso, na fila da vacina. Alícia fingiu não a ver, mas Antônia fez questão de cumprimentá-la. Desde aquela virada de ano que eventualmente pensava no comentário desastroso daquela noite, e nos olhos intensos da mulher.
Graças à iniciativa de Antônia, Alícia deu seu número de telefone, e naquele dia mesmo começaram uma conversa que quase virou a noite (isso só não aconteceu porque Alícia precisava trabalhar). Era ótimo porque, por serem tão diferentes, tinham pontos de vista e vivências completamente opostas uma da outra. De alguma forma, tinham vivido de maneiras distintas até a pandemia começar, e por isso consolavam uma à outra, quando precisavam de um pouco de equilíbrio para enfrentar todos aqueles temores.
Quando a Formiga soube que a Cigarra estava com problemas (de trabalho e até de moradia) devido à crise provocada por aquele Grande Inverno, não pestanejou em colocá-la dentro de casa. E daí que eram diferentes, que até ali uma tinha trabalhado enquanto a outra só cantava? Nada as impedia de se isolarem juntas, e dançarem juntas.
E foi o que fizeram. Antônia ensejava Alícia a pisar no freio, Alícia inspirava Antônia a pisar no acelerador. Uma conduzia enquanto a outra bailava, e aí invertiam – a música, o ritmo, a cadência, o som. Foram meses enfi*das dentro de casa até finalmente saírem às ruas, naquele nublado 2 de outubro de 2021.
Ainda não havia segurança (política ou sanitária), ainda havia a obrigatoriedade das máscaras, do álcool gel, do distanciamento, dos cuidados todos (sabemos que não há tratamento precoce, que remédio de vermes só trata vermes). Mas, ainda assim, Cigarra e Formiga estavam juntas na manifestação daquele sábado, unidas com várias outras espécies, todas juntas pedindo a saída do animal que ocupa o cargo de presidência.
No coro de vaias e gritos de protesto, a voz de Antônia é a que mais se faz ouvir, a plenos pulmões, com uma das mãos em concha em volta da boca (cantando “pisa no chão, pisa maneiro, quem não pode com a formiga não atiça o formigueiro”). A outra segura a mão de Alícia, que carrega uma faixa onde se lê “Viva o SUS!”.
Graças à politização (quem consegue fugir disso nos dias atuais?), nos seus dias de isolamento a Cigarra compôs várias músicas de protesto. Graças ao investimento de Formiga, aquele conteúdo inflamado se pulverizou e agora essas canções são entoadas pelas demais cigarras, onde quer que se vá – aquelas que se apresentam nos bares, com violão e voz, mas também as outras, as que cantam das árvores nos dias e noites mais quentes.
Ou seja, agora, sempre que você ouvir esse canto de cigarra, saiba que o que está sendo dito é “Fora, Bolsonaro genocida”.
Fim do capítulo
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GLeonard
Em: 12/10/2021
Fantástica! Há muito tempo não entrava na plataforma. Me sinto gratificada por te-lo feito. Releitura fantástica, bem escrita e com conotação política de quem percebe a triste realidade desse momento obscuro que estamos vivendo. Grata. Agora vou ler seu outro trabalho.
Resposta do autor:
Que delícia começar o dia com o seu comentário!
Grata!
Fico contente que tenha retornado ao Lettera, e lido esta singela releitura!
Agora o canto fora de hora das cigarras faz mais sentido pra mim! E pra vc tb! <3
Espero que goste do que for ler! Depois me conta!
Beijos!
cris05
Em: 02/10/2021
Caraca, amei essa releitura! Perfeita!
Mais um trabalho maravilhoso dessa autora maravilhosa! Parabéns, caribu!
P.S hoje a cigarra cantou aqui de manhã, há tempos eu não ouvia. Fiquei feliz!
Beijos!
Resposta do autor:
É o fim dos tempos! Cigarras cantando no outono é um sinal preocupante!
Na verdade, a ideia da releitura veio quando comecei a ouvir cigarra cantando no inverno (o deste ano foi loucão, né, com altas temperaturas). Fiquei pensando o que elas estavam cantarolando (só podia ser algum protesto rs)
Aí veio a fábula na cabeça, e gostei que, apesar de tão opostas, as duas estavam juntas no protesto!
A história ficou bem curtinha, mas fiquei satisfeita! Estou feliz que vc tb tenha gostado!
Beijos!
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NovaAqui
Em: 02/10/2021
Que versão top!
A Cigarra falando demais foi engraçado
Pensei que a Formiga fosse jogar todo o conteúdo da taça na cantora kkkkk
Gostei muito
Gostei da presença delas nas manifestações de hoje! Foi demais
Parabéns por mais um trabalho lindo
Pode continuar com a história tá? Acho que tem que ter mais do envolvimento delas. Não quero imaginar nada não! Não quero que você deixe por minha conta esse momento delas! Minha imaginação é limitada kkkkk
Abraços
Resposta do autor:
hahaha
Inicialmente essa história ia ser livro, justamente pq esse envolvimento seria gostoso de ler.
Mas mudei para conto pq fiquei dias com o arquivo aqui aberto e não saía nada. Nem uma letrinha sequer. Qdo decidi que seria conto, na msm hora fluiu!
A Cigarra e a Formiga me representaram no evento de hj, em todos os protestos Brasil afora! Eu infelizmente não fui, sou cagona, só tomo a segunda dose na terça.
Mas me senti representada, e estou contente por saber pelo o que cantam as cigarras rs
Feliz que vc tenha gostado!
Beijos!
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