Capítulo com conteúdo bastante sensível... mas interessante de ver em como vai se dar as coisas.
Psicoterapia
Alguma coisa, aquela sensação que temos no fundo da garganta perante a alguma situação, me dizia que aquilo não daria certo. Uns dizem que é a intuição ou paranoia, e eu estava tendendo mais a segunda opção, mas não anulava o fato de que, conforme a noite se aproximava, aquela sensação aumentava a ponto que percorria meu peito e principalmente, minha mente.
Era uma catástrofe anunciada, e ela começara a dar forma no momento em que meu pai resolveu chegar alguns dias mais cedo de viagem, alegando que tinha algo urgente a resolver aqui. Provavelmente não sua intuição, mas seu faro para detectar algum problema que diz respeito a integridade do seu lar.
Porém, ele não resistiu a situação de jantar com os pais da namorada da sua filha, afinal, querendo ou não, Amanda tinha sido crucial em um momento delicado, e meu pai, um homem tradicional, queria retribuir de alguma forma, e aceitar aquele jantar parecia a mais cabível. Ser respeitoso com algo aversivo a ele seria seu trunfo sobre nós.
A noite chegou, e minha mãe estava à toda na cozinha. Vestiu um de seus vestidos mais elegantes, o que tinha o corte que a favorecia, e meu pai fumava na sua poltrona, assistindo jornal, com a roupa de trabalho. Eu encarava do sofá sua face séria, taciturna que encarava as imagens que se reproduziam na tela tentava mascarar o que devia estar percorrendo nas profundezas de sua mente, provavelmente um meio de fugir da situação em que se encontrava e sem saber como.
— Hǎi yún, não vai se arrumar? – perguntou minha mãe, tirando algo que cheirava bem do forno.
— Já estou arrumada.
— Vista-se um pouco melhor pelo menos – ela continuou a insistir.
— Estou bem assim – respondi sem desviar o olhar, mas soube ainda assim que pelo seu silêncio, ela havia desistido de argumentar sobre isso. Não que ela não tivesse argumentos o suficiente para uma noite toda, mas sim porque não queria se estressar, segundo as palavras dela que já bem conhecia.
Amanda ligou assim que saiu de casa. Um amigo de André havia dado carona para eles, e acabaram chegando antes da hora, mesmo a casa deles não sendo tão perto da minha, e isso sempre me fazia questionar sua força de vontade de estar aqui comigo quase todo dia, mesmo depois de um extenuante dia de trabalho e cursinho.
Quando a campainha tocou, fui atendê-los. Minha mãe continuava ocupada com a arrumação da mesa e pela posição em que meu pai estava, duvidava que ele iria se levantar dali. Ao abrir a porta, deparei com uma cena pouco usual: o da família arrumada como se fosse à missa. Pensei isso porque já tive a oportunidade de ver a mesma cena e ri comigo mesmo.
— Podem entrar, fiquem à vontade – disse ao abrir o portão e ao todos entrarem, fechei e os acompanhei até a entrada.
— Como você está, minha filha? – pergunta a mãe de Amanda para mim, dando um abraço apertado.
— Estou bem, e vocês?
— Está tudo ótimo também – ela lançou um de seus sorrisos fraternais, ajudando o também sorridente senhor Arnaldo, mesmo com dificuldade de se locomover, era ajudado pelos filhos.
— Vocês precisam de ajuda? – perguntei ao reparar a situação.
— Não – Arnaldo disse rapidamente – Não se preocupe, minha filha. Está tudo sob controle.
Ao entrarem em casa, pareciam maravilhados com a estrutura, comentando consigo mesmo os detalhes da casa e minha mãe, ao vê-los, foi cumprimenta-los cordialmente. A mesa estava posta, e Amanda olhava para o chão, séria. Não que estivesse chateada, mas ao olhar para ela, percebi o que a incomodava: meu pai, que lançava um olhar pouco amigável para aqueles que estavam ali.
— Vamos lá pro quarto – disse, segurando sua mão, mas ela recuou.
— Tem certeza? – sua voz quase falhou ao proferir as palavras, e segurei sua mão mais uma vez.
— Não tem problema – neguei com a cabeça – vamos deixar eles conversando.
E sem mais resistir, mas ainda visivelmente acuada, Amanda me acompanhou até o quarto. Fechei a porta, vendo-a se sentar na cama, encarando as paredes.
— Não precisa ter medo – disse a ela.
— Não é isso, quer dizer... – ela suspirou fundo – também é, mas é que parece que estamos incomodando. Estamos?
— Claro que não – respondi franzindo as sobrancelhas – vocês são nossos convidados.
Amanda deu com os ombros. Pegara a mesma mania que eu, e sorriu de forma acanhada.
Fui até a mesa de desenho, e peguei algo que tinha feito.
— Dá uma olhada – entreguei o desenho em suas mãos, e ela o encarou com os olhos resplandecentes, assim como seu sorriso.
— Ficou lindo como você – comentou ao me encarar.
Porém, ainda assim, algo parecia estar errado, e a onda me invadiu sem avisar.
— Você não me parece feliz, Hǎi yún – Amanda disse com pesar.
Engoli em seco e sentei ao seu lado, acariciando os contornos do seu rosto com a ponta dos meus dedos.
— E eu já estive feliz?
— Ei, não fale assim... – ela segurou a mão que acariciava seu rosto com carinho, beijando-a – Estou aqui com você.
— Só quero deitar na cama, dormir e morrer.
Amanda mal me deixou terminar a frase e me abraçou. Abraçou-me com força, como se pudesse juntar todos os pedaços quebrados de dentro de mim e os arrumasse com aquele gesto. Passou-se um bom tempo ali, em silêncio, ouvindo a respiração uma da outra, a da Amanda mais ofegante, e o barulho de conversas que corriam do lado de fora.
— Eu tenho certeza que isso vai passar – ela sussurrou para mim – acredite em mim, por favor.
— Acha que ainda tem jeito para mim?
— É claro que tem – ela voltou a me abraçar com força – você vai ficar bem logo.
— Como, se vivo em um jogo de aparências sem fim?
Amanda continuou em silêncio, encarando meus olhos diretamente. Mordi os lábios, reticente.
— Só não sei até quando vou aguentar isso.
— Então venha morar comigo – ela segurou minhas mãos trêmulas firmemente – por favor. Cuidaremos de você. Eu cuidarei de você.
— Não, Amanda, eu não quero incomodar... – neguei com a cabeça, mas ela segurou meu queixo e me fez olhar em seus olhos castanhos embaçados pelo sentimento que permeava nela.
— A única coisa que me incomoda é ver alguém que eu amo sofrer – ela respirou fundo antes de continuar – por favor, só quero ver você bem.
Antes que eu pudesse dizer qualquer coisa sobre aquele embargante momento em que nos encontrávamos, antes que eu pudesse segurar o seu rosto e dizer por diversas vezes que a amava muito, mas eu não me suportava mais e antes de dizer que eu era um caso perdido no final das contas, alguém bateu na porta.
— Meninas, jantar – era a voz da minha mãe. Levantamos e nos recompomos para voltar ao contato com os outros.
As pessoas já estavam as postos nos seus lugares. Meu pai estava sentado na cabeceira da mesa e Amanda sentou ao lado de mim junto com seu irmão. Começamos a nos servir do jantar e junto a ele, a tensão se formava em meio a mesa.
Meu pai encarava Amanda, que encarava o chão, e que eu encarava Amanda, que André me encarava, no qual seu pai olhava para nós e Maria, mãe de Amanda, olhava para minha mãe, que tentava sorrir envergonhada com aquilo que se tornara intragável, diferente da comida fresca que tentávamos engolir.
— Está tudo bem? – sussurrou Amanda em meu ouvido.
— Você acredita em intuição? – respondi a ela sem tirar os olhos dos demais na mesa.
— Sim, por quê? – Amanda olhou para mim antes de olhar para os demais – Aconteceu alguma coisa?
— Ainda não – e segurei sua mão por debaixo da mesa – mas acho que vai.
— Não se preocupe...
Mas não consegui prestar atenção no que Amanda disse depois. A única coisa que prendera minha atenção fora prender a respiração para a tsunami anunciada que estava vindo.
— Vocês fazem o quê da vida? – disse meu pai após tomar um gole de seu vinho, encarando o pai de Amanda – Digo, trabalhar com quê?
— Eu era pedreiro, mas né... – ele respondeu em tom humorado, apontando para sua perna – A Amanda era minha ajudante, mas acabou indo para um outro emprego que...
— Amanda filha? – ele apontou para ela, e quando ele o fez, segurei sua mão com mais firmeza.
— Amanda... – sussurrei para ela, sentindo o peso tomar conta do meu peito.
— O quê?
— Sim, ela mesmo – o pai dela apontou em nossa direção – Por quê?
— É melhor vocês irem embora – disse por fim, mas era tarde demais.
E a risada dele ressoou por toda a mesa, ocupando a cozinha e a casa toda e junto a ela, a vergonha lancinante no rosto da minha mãe e a ira no rosto geralmente pueril de Amanda.
— O que tem de tão engraçado nisso? – dessa vez, ela afirmou isso segurando com mais firmeza a minha mão como forma de se manter ali.
— Wǒ xiàng wúzhī de qióngrén kāifàng wǒ de jiā...[1] – ele dizia em tom zombeteiro, o que inflamou a ira da minha mãe.
— Yǒng, não fale isso na frente dos nossos convidados – ela disse se levantando, e ele ao fechar a cara, desagradado, mas ainda com ironia em seus trejeitos, voltou a comer.
Porém as coisas não iam ficar assim, e aumentando a crista da onda que iria ser quebrada naquele lugar, olhei diretamente para ele e, dando o mesmo lugar que ele distribuía para nós, me certifiquei de falar o mais claro que poderia falar.
— Não fale isso da minha namorada, bàba.
Como nos filmes, no qual uma cena trágica é passada em câmera lenta com música clássica de fundo aumentando ainda mais a carga dramática, sucedeu-se os fatos após meu fatal comentário.
Em uma tremenda rapidez, meu pai se levantou da mesa em minha direção, o qual Amanda ficou na minha frente e o empurrou com a força que só ela tinha, e que o fez cair do outro lado da mesa, se levantando e continuando a querer brigar. Só que minha mãe, intervindo, acabou sendo agredida por ele, que acabou sendo agredido de forma branda por Amanda e André, que tentavam tirar ele de perto dela, que estava no chão, caída, com o sapato quebrado e o coração também, dissolvido em meio a lágrimas que insistiam em cair.
Tudo isso ocorreu em questão de segundos, o qual mal pude perceber, já que a selvageria contida pelas palavras grosseiras e chulas do meu pai direcionadas à aquela humilde família, que me abrigou como pôde e sua filha, que insistia em ficar ao meu lado quando tudo mostrava que o melhor que ela podia fazer era ir embora.
Seu pai, acometido pela condição das muletas, junto com a sua mulher, fizeram o papel de pacificador e tiraram eles de cima de meu pai, que ainda bradava ofensas para todos dali, dizendo que o melhor que faziam eram ir embora dali que não tinha o que fazer naquela situação.
Amanda continuava furiosa, mas ajudava minha mãe e André, seu cúmplice, continuava com o olhar agressivo em direção ao meu pai, que dessa vez nada fez.
Eu fiquei aonde estava. Não sabia o que fazer, o que falar e mal processara o que meus olhos tinham acabado de ver. É quando você sabe que as coisas vão dar errado, mas no fundo esperam que não deem e no final das contas, elas ficam piores do que você imaginava.
— Nos perdoe, minha filha, por tudo isso – a mãe de Amanda tentava me consolar, tirando do transe em que me encontrava – se você quiser, pode ir para casa conosco agora. Você quer ir?
Nada respondi. Meu pai saiu para o lado externo da casa, e minha mãe continuava a chorar desolada no chão e Amanda, com suas mãos sempre generosas, segurou meus ombros.
— Hǎi yún, por favor, você não precisa ficar aqui... – sua voz denotava o desespero que sentia, mas ainda assim não conseguia sair do ponto em que me encontrava.
— Por favor, Hǎi yún... – ela continuou a repetir, com sua voz agora embargada, mas fora interrompida por André, que me olhava com comiseração.
— É melhor a gente ir, Amanda – ele segurava sua mão – e acho que a Hǎi yún quer ficar um pouco só.
Amanda acolheu o que ele disse, mas contra sua vontade e ali, sem dizer mais uma palavra, a vi ir embora com sua família.
O relógio soava no silêncio mortal que fazia ali, que fora quebrado pelo grito do meu pai.
— Você sempre estraga tudo, Hǎi yún! – e veio em minha direção – Com essa história de namorada – e fez uma careta de desagrado, nojo, uma genuína repulsa.
— Para de falar isso da nossa filha! – minha mãe gritou para ele de volta, mas ele continuou a rir sarcasticamente.
— Ela está louca – ele apontava para mim – isso é tudo coisa da cabeça dela, você não diz que ela está doente?
— Eu, louca? – perguntei em um sussurro para ele, que continuou afirmando. Talvez ele tivesse realmente razão.
— É, louca – e apontou para a própria – sempre disse para sua mãe que você era diferente, e...
— Louca? – reafirmei a pergunta, e dessa vez minha mãe que interviu enquanto meu pai se aproximava cada vez mais de mim, com os olhos injetados.
— Não, Hǎi yún, você não é nada disso, você...
— Talvez eu esteja mesmo louca.
E dei um sorriso de um canto a outro da boca, e comecei a rir. Não um riso animado, alegre, que demonstra toda sua alegria, mas um riso colérico e doentio.
— Eu estou perdendo o controle – levantei de onde estava e, ainda rindo, quebrei o primeiro prato no chão, seguido de escorregar meu braço por todo o porcelanato da mesa, junto com os talheres, que todos quebravam com a voz desesperada da minha mãe de fundo e meu pai, que encarava atônito, seus bens preciosos se partirem em segundos.
Embebida pela fúria que tomou meu corpo inteiro, andei até a sala, incansável, e destruí tudo que vi na minha frente em um ódio cego. A televisão fora a primeira vítima quando atirei o vaso que ficava na mesa de centro em direção a ela, quebrando sua tela no meio e abrindo um buraco, junto com o barulho dos fios entrando em curto.
Meu pai resolveu agir quando estava destroçando o sofá com o resto do vaso em cristal que tinha partido, mas antes que pudesse chegar mais perto de mim, apontei o caco pontiagudo em sua direção, para que ele recuasse.
— Não chegue perto de mim – eu cuspia as palavras – seu desgraçado.
— Hǎi yún, minha filha, por favor, se acalme – minha mãe tentava se aproximar, mas sem sucesso.
— Eu não vou me acalmar, sabe por quê? – gritava para eles, com o caco em minhas mãos cada vez mais firme em direção a meu pai – Porque eu sou desequilibrada, não é?
Repetia em tom de ironia para meu pai, que continuava calada.
— Fala de novo que eu estou louca! – gritei ainda mais alto que outrora – Que sou uma aberração, a vergonha da família porque eu gosto de garotas e não quero seguir com a sua loja querida! Vamos, fala!
De repente, senti as lágrimas descerem do meu rosto, mas respirei fundo e pressionei os lábios, que ficavam encharcados com minhas lágrimas, assim como meu pescoço.
— Eu nunca me senti tão infeliz na minha vida, porr*! – continuei a dizer em um tom alto – Eu me odeio e odeio vocês porque vocês me fazem sentir mais infeliz ainda! Mas quer saber de uma coisa? Não vou mais dar preocupação para ninguém.
— Hǎi yún, o que você... – ele murmurou ao ver o caco tomar outra direção.
Ele correu pelo meu braço verticalmente, deixando a listra escarlate tomar conta da minha pele e em seguida, tomar conta do outro braço, fazendo um corte quase uniforme que desceu até o pulso e me fez largar o caco pontiagudo, com a ponta e quase todo ele no mesmo tom de vermelho que pulsava em meu corpo e escorria por minhas mãos.
Eu gostaria de ter dito alguma frase de efeito ou pensado em algo impactante que mudasse a percepção de todos pelas minhas atitudes, mas não havia, e não tive tempo de pensar com mais afinco sobre. Por mais que isso passe por sua cabeça, você só pensa nisso realmente depois que o faz.
Mas não havia arrependimentos. Eu queria ter pensado em algo ou alguém que me impedisse, mas não havia Amanda, não havia Jude, nem mais ninguém além do ódio que sentia por mim mesmo. Os dias quentes de domingo ou as risadas, sonhos ou tudo aquilo que faz alguém se levantar todo dia da cama.
Nem mesmo o amor que nutria por outra pessoa seria capaz de me fazer sentir algum remorso por acabar com tudo mais uma vez. A convicção de que o fazia por um motivo plausível se mostrava clara: isso só iria acabar quando eu terminasse com isso.
Prestei-me a me despedir com a ponta dos dedos, minha visão ficou turva e, com as palavras desesperadas dos meus pais de fundo que seguravam meu corpo, tudo apagou-se.
[1] “Abro minha casa para pobres ignorantes”, em chinês: 我向无知的穷人开放我的家...
Fim do capítulo
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