Cuidados especiais
Pressionei os olhos, tentando me concentrar no que estava acontecendo ali.
— Eu espero que você saiba o quanto de compromissos que tive que adiar para estar com você aqui desde ontem – ela cruzava os braços, assim como as pernas e me encarava com a cabeça levantada.
Continuei em silêncio.
— O que aconteceu, Hǎi yún? – ela voltava a perguntar, com a voz embargada.
— Eu...preciso comer alguma coisa – apontava para o café que estava ao meu lado e com um esforço maior do que imaginava, pegar aquilo era difícil.
— Qual é a última coisa que você se lembra, então?
— Eu... – engolia aquilo com dificuldade – Não lembro.
Mas eu lembrava bem, só não me sentia à vontade para comentar sobre. Ainda era de manhã e por mais que eu me sentisse melhor, ainda estava exausta.
Ela se levantou, caminhando de um lado para o outro.
— Eu pensei que estava tudo bem quando sai de casa – minha mãe falava séria – Hǎi yún.
Mantinha um grande esforço para tentar ficar com o corpo levantado, mas assentia a tudo que ela falava.
— Ela que te encontrou e não sei como, ela conseguiu entrar em casa, provavelmente porque você não trancou a porta – ela trazia as mãos para mais perto do seu corpo, pressionando os lábios – E foi ela que me avisou o que tinha acontecido.
Mastigava as coisas devagar, tentando tomar o café com certo receio. Meus braços fraquejavam por vez e outra, eu não tinha energia o suficiente para continuar a conversa a não ser acompanha-la com os olhos.
— Você não faz ideia do desespero que ela estava – ela trazia as mãos para perto do rosto – Do meu desespero de te encontrar naquela situação.
Minha mãe voltou a se sentar do meu lado, e segurou minhas mãos, trazendo-as para próximo do peito.
— Eu... – respondia com dificuldade – Só estou cansada.
Ela abaixou a cabeça, olhando para meus braços.
— Hǎi yún – ela pressionou os lábios mais uma vez, mordendo com firmeza – Minha filha, eu não sei o que seria de mim se eu te perdesse. O que seria das suas amigas, da...
— Mãe... – fechei os olhos mais uma vez, falando em um quase sussurro – E eu?
— Você o quê?
— E eu? O que eu sinto... – levantei as mãos em sua direção – Não importa?
— Não é isso que estou dizendo, Hǎi yún, mas...
— Mas? – voltei a me recostar, sentindo minha cabeça doer – Eu sofro, e quando tento acabar com tudo, faço os outros sofrerem.
— Hǎi yún – ela respirava compassadamente, tentando manter a compostura – Você não está fazendo ninguém sofrer. Se estamos assim, é pelo medo de perder você.
— Se vocês me amam tanto, por que não me deixam terminar com isso?
Minha mãe se levantou, andando colérica de um lado para o outro. Reconhecia aquela atitude de qualquer lugar, ela o fazia quando estava muito nervosa, principalmente para falar alguma coisa.
— Olha, Hǎi yún... – ela ajeitava seu óculos – Nunca mais diga uma atrocidade dessa. Eu não admito que você fale uma coisa dessa quando...
E parou de falar, enxugando as lágrimas que desciam por seu rosto. Poucas vezes tinha visto minha mãe chorar. Eu sabia que ela fazia isso, mas era sempre às escondidas, tentando disfarçar. Agora ela deixava bastante claro.
— Suas amigas estão para ficar loucas atrás de você. A Judite quando não está me ligando está aqui comigo – ela falava ansiosa, apoiando para o próprio peito antes de apontar para mim – Eu larguei uma reunião com diretores no meio e até agora não voltei porque não consigo imaginar ficar longe de você, e se isso não for o suficiente para você...
Ela engolia em seco, olhando para o chão até que voltou a olhar para mim.
— A Amanda que te encontrou, Hǎi yún – ela falava séria – Aquela garota chorava tanto com um... – ela gesticulava no ar – Um terço pedindo pros santos que você ficasse bem. Ela rezava com tanta firmeza passando aquelas contas, de joelhos em frente a uma imagem. Ela não foi pra casa e nem comia até ver que você acordou bem.
Sentia-me mal por aquela situação. Minhas mãos tremulavam por conta da tensão que percorria meu corpo.
— Vou me certificar que na próxima ninguém mais sofra.
— Hǎi yún – ela segurou meus ombros com força – Como você não consegue perceber que estamos fazendo isso para o seu bem?
— Como quando o pai me bate e você fica olhando? – dizia com o olhar cerrado.
— Agora vai dizer que isso tudo é culpa de eu não ser uma mãe perfeita? – ela se levantou furiosa, gesticulando em minha direção.
— Eu nunca pedi perfeição, só pedi presença.
— Acha que é simples cuidar de uma família? Dar tudo isso que você usa enquanto seu pai fica preso no mundo dele assim como você?
— Então por que será que quando eu comecei a me machucar e você sabia, só tentou disfarçar em vez de conversar comigo?
Ela ficou em silêncio.
— É muita coisa para eu lidar, Hǎi yún – ela continuava dizendo em um tom alto – Acha mesmo que é fácil para mim aceitar sua opção sexu*l*? Me met*r em brigas com seu pai por conta disso? Eu tenho que lidar com tudo isso sozinha.
— Já que estamos falando de vida, acha mesmo que é simples seguir a vida mesmo se odiando? – dizia em tom irônico – Ou melhor, acha que é fácil se descobrir homossexu*l* e o peso que isso traz? Claro que não sabe.
— Como eu vou saber se você nunca conversa comigo, Hǎi yún? – seu tom era suplicante.
— Em algum momento você chegou e perguntou se estava tudo bem comigo se não fosse da boca para fora? Ou quando eu me senti confusa e com medo? – balançava a cabeça indignada – Você, como o pai, só sabe cobrar que eu seja perfeita quando eu estou longe de ser isso.
— Só queria o melhor pra você, por isso sempre te cobramos, para que tivesse um destino diferente do nosso.
Revirei os olhos, e pressionando os lábios, comentei.
— Sabe quantas vezes você falou essas coisas para mim? Nenhuma – virei a cabeça para o lado, para que assim a visse mais uma vez –Tenho que tentar me matar mais uma vez para que você converse comigo?
— Não seja tão... – ela se aproximou, falando em um enérgico tom.
— Cruel? Ingrata? – dizia, exaltando-me – Ou apática? Agora que a senhora descobriu que há alguma coisa errada comigo? Ou é só a homossexu*l*idade?
— Hǎi yún, já chega! – ela gritava comigo.
— Não chega nada! – gritava de volta – Passei a vida toda tentando entender o que acontecia comigo, e quando penso que entendo, vocês me ignoram completamente. A senhora está tão focada no seu sucesso acadêmico que nem se lembra que tem uma família.
— Não diga isso de mim, você não sabe o quanto...
— Se esforça para manter as aparências?
Ela levantou a mão para me deferir um tapa, mas logo voltou atrás.
— Não ligo se me bater, a raiva que tenho de mim é maior do que qualquer tapa ou soco que vou levar.
— Eu vou ignorar o que você está falando – ela dizia mais calma.
— É? – dizia com sarcasmo – Então tente ignorar isso.
Levantei com dificuldade, sentindo meu corpo todo tremer, mas ainda me mantive ali.
— Nossa família é uma farsa – murmurava – Eu sou uma farsa, nós somos uma farsa. Eu não vou deixar de gostar de garotas, não vou deixar de detestar os negócios da nossa família e muito menos vou desistir de acabar com tudo isso.
— Hǎi yún, o que você... – ela murmurava de volta, coberta de medo notável em sua voz.
E, com uma força ao qual não imaginava ter naquele momento, arranquei bruscamente as ataduras que cobriam meus braços, mostrando o cortes profundos que corriam por todo meu braço, ligados por incontáveis pontos.
— Hǎi yún, não! – minha mãe gritava, tentando segurar minhas mãos, sem sucesso – Socorro, alguém me ajuda!
Mas quando tentei tirar o resto, alguém correu e me segurou. Era Jude, que me afastava da minha mãe, com o corpo ainda tremendo.
— Calma, Hǎi yún... – ela sussurrava para mim – Calma.
— Por que não ignorou isso, mā? – dizia em tom sarcástico, quase gritando – Como tudo na nossa vida?
— Já chega, Hǎi yún – Jude me pressionava ainda mais contra seus braços – Tia, vá lá pra fora.
Sentia meu corpo ficar mais calmo e conforme eu me acalmava, lágrimas desciam pelo meu rosto, sem dizer nada.
— Vai ficar tudo bem, Hǎi yún – ela passava a mão no meu cabelo.
— Não vai... – dizia entre um soluço e outro.
— Olhe pra mim – ela segurou meu rosto para olhá-la com atenção – Vai ficar tudo bem, eu prometo.
Jude segurou minha mão com firmeza e uma mulher de branco entrou com um sorriso amigável, aplicou uma injeção em meu soro e saiu. Jude, que estava na minha vista acariciando meu rosto, foi ficando turva até o momento que, sem perceber, acabei apagando.
Fim do capítulo
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Marta Andrade dos Santos
Em: 17/09/2021
Conflitos
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