Lia entra em casa com pressa, os passos ao mesmo tempo trôpegos e incertos. Na passagem, a porta foi batida com força, provocando um estrondo no corredor do prédio, o som ecoando dentro dos demais apartamentos, afundados no marasmo daquele fim de tarde. Sentia a cabeça girando, os pés flutuando, o corpo todo adormecido, junto com a mente, completamente entorpecida. Não era possível que aquilo estava acontecendo e dentro dela tudo o que ouvia era a sua própria voz, berrando: “não acredito!”! Ainda não conseguia definir se era bom ou ruim, pois estava surtando.

                Jogou os tênis no canto assim que trancou a porta e foi descalça até o banheiro, os pés suados dentro da meia encardida grudando no chão de taco de madeira empoeirado. Foi direto para onde guardava o jornal usado por Mingau para fazer suas necessidades (dentro do bidê, peça comum em apartamentos mais antigos, que ela não usava porque aquele era desregulado, e molhava até o teto de gesso quando eventualmente ligado). No caminho, foi deixando rastros atrás de si da chuva que escorria de suas roupas, molhando todo o chão do corredor. Secou as mãos úmidas no jeans molhado, inclinando a cabeça para que o cabelo não pingasse em cima da pilha de jornais, os óculos quase caindo do rosto.  

Ela não gostava de ver o resultado do seu trabalho sendo mijado (e cagado) pelo cachorro diariamente; era uma questão de apego – e olhe que Lia cuidava do que tinha menos glamour na redação: revisava os textos e era a responsável pelos horóscopos (no caso, sua incumbência era ch*pinhar as previsões de algum portal de notícias). Mas admitia ser bastante vantajoso trabalhar em um jornal, e levar para casa, de graça, os papéis que seriam descartados, de todo jeito.

“Notícia de hoje é o banheiro de amanhã” era uma frase que sempre se dizia, em tom de chacota, quando voltava para casa com montes de jornal de ontem.

                Despejou vários cadernos de jornal no chão do banheiro, o barulho parecendo um dos trovões que resmungava lá fora. Pamonha e Curau, os gatos, estavam parados na porta, com olhar de julgamento. Em geral, Lia faria graça daquilo; adorava inventar vozes para os gatos, que na sua imaginação eram nobres, esnobes, que criticavam tudo o que ela fazia. Agora mesmo, sentia a reprovação vinda daqueles olhos amarelos, mas estava no meio de uma tarefa importante, e precisava localizar a última edição da Gazeta. Encontrou só no fim da pilha, um dos últimos jornais que olhou. Com os dedos trêmulos, foi direto para a página 05 do Caderno Cultura. Na folha ímpar, alinhado à esquerda, no topo, encontrou o box de previsões. Os olhos aflitos pararam em cima da previsão para o signo de Peixes:

“Prepare-se para novas e bem-vindas aventuras.
O mar está para peixes, não se esqueça de levar o guarda-chuva!”

                Tinha sido uma piada, uma brincadeira entre Lia e Isa, que sentava ao seu lado na redação; acreditava que ninguém mais tinha o hábito de ler os horóscopos de jornal impresso. Logo, ninguém veria aquilo.

                Mas Lia permanecia séria, depois de ler a previsão de mentirinha mais uma vez, sem nenhum vestígio ou possibilidade de achar alguma graça agora. Seu rosto estava abatido e sem expressões quando se deixou escorregar para o chão, encostada na porta do box, quase apoiada na privada. Ao cair ao seu lado, meio dobrado, o jornal trazia a manchete de capa em letras garrafais: “MAIOR SECA DOS ÚLTIMOS ANOS NÃO TEM PREVISÃO DE TERMINAR”.

Fim do capítulo