A morte no hotel
Aquele parecia apenas mais um dia típico na agenda de Liz. A mulher, acostumada quase uma vida inteira a dormir somente algumas horas por noite tinha levantado cedo, antes mesmo do sol nascer, e tomou o cuidado de preparar o café com tudo o que encontrou de pó no pote. Enquanto comia uma torrada com a última fatia de pão de forma, a bunda do saco, começou o que seria uma lista de compras que ela esqueceria, minutos depois, em cima da mesa. No papel, anotou: “ir ao mercado”.
Pela manhã foi em dois endereços sem ligação entre si, apesar de próximos, na região leste de Ecila. A cidade era famosa por suas ruas arborizadas, especialmente naquela área, projetada para uma classe social mais abastada. Tudo era meticulosamente planejado e arquitetado, ao contrário do que ocorria ao sul, na parte velha do município.
Ao sair do segundo prédio, todo espelhado e refletia a luz do dia de um jeito curioso na calçada, Liz acenou, de longe, para o porteiro, que minutos antes tinha autorizado sua entrada no local. Nada nela revelava quem era, realmente, e o que fazia ali de fato. Usava uma calça jeans surrada na frente, já quase rasgando no joelho, de tanto ela se abaixar (por motivos que variavam), e uma camiseta preta desbotada, com a gola rasgada. No braço esquerdo era possível ver metade de uma guerreira, tatuada. Ao contrário do desenho, que vinha munido apenas de arco e flecha, Liz carregava na mochila uma pistola semiautomática calibre .40.
Passou a tarde em companhia de Felipa, sua parceira de trabalho. À princípio todos acharam que as duas namorariam, mas com o tempo ficou evidente que, de comum, tinham apenas a sexualidade (ou nem isso, uma vez que Felipa se dizia bi). Na real, as duas não se bicavam muito; Liz achava a companheira petulante e Felipa a considerava uma pessoa fraca. Sabia que Liz se escondia dentro de vários armários, vivia uma vida de mentirinha e achava isso absurdo (e até desnecessário!). Apesar das rusgas, porém, todos as consideravam uma boa dupla, suas linhas de raciocínio se complementavam, juntas funcionavam bem – mas eram pessoas muito diferentes, e isso não é exatamente um facilitador para uma boa convivência. Para piorar, Liz achava que Felipa sempre colocava suas ideias em descrédito e isso exigia dela uma polidez que nem sempre encontrava.
Já era tarde quando desligou o computador e se despediu dos colegas, o relógio que também mostrava a temperatura, na porta da delegacia, marcava 19h em ponto. Liz enfiou na jaqueta um objeto volumoso, e se esforçava para proteger da garoa, que parecia ter esperado por ela para cair, graciosamente.
Apressou o passo e foi a pé até um endereço anotado num pedaço de papel, agora amassado no fundo do bolso. Era uma casa vazia, quase isolada no alto do Monte de Saraivá, e Liz fotografou todos os cômodos, iluminando os espaços com a luz do flash. Dedicou mais tempo olhando para a vista da sacada, fumando um cigarro, do que com a tarefa que tinha de desempenhar. Ecila, à noite, era linda!
Dali podia ver quase a cidade inteira, e fechando um pouco o olho, apontou em três direções. Com o dedo vacilante, Liz direcionou para oeste, e fez um breve movimento, que pareceu como se ela estivesse dando um tiro imaginário. “Aposto tudo naquela direção”, disse, sozinha, antes de finalmente abaixar o braço.
Longe de descansar, percebeu que ainda estava distante do fim do expediente, pois seu celular vibrou, assim que entrava na estação de metrô, quando teoricamente voltava para casa. A mensagem de Felipa tinha apenas um endereço, e ela rapidamente calculou a melhor rota para chegar ao hotel indicado, no menor tempo. Precisaria andar cinco estações, com uma baldeação entre linhas. Já tinha passado em frente ao Hotel ConfortOn várias vezes; ficava em uma viela no distrito industrial, um local inusitado para um estabelecimento como aquele, já que ficava distante do movimento dos carros e das pessoas (especialmente dos turistas, público característico de acomodações desse tipo).
Liz não ficou surpresa, e olhou no calendário apenas para se certificar de que, novamente (e infelizmente!), estava certa: era dia 17. Se tivesse apostado, teria levado uma bolada! O problema é que aquela certeza foi recebida como apenas um palpite por Felipa, não foi levada a sério e tinha acarretado a morte de uma mulher. Liz ficou zangada por isso.
Subiu o lance de degraus da estação, sem tempo para ir de escada rolante, e depois de três esquinas adentrou no beco. Os comércios ali eram escassos, e àquela hora já estavam fechados. As ruas estavam vazias e molhadas, depois de terem sido lavadas pela chuva do final do dia.
- Eu avisei – diz, assim que avista Felipa, que vira os olhos diante do comentário.
- Ninguém viu ou ouviu nada, como sempre sem testemunhas – a policial informa, entrando no elevador com a colega – Uma camareira a encontrou, enforcada com uma meia-calça. Liz, cuidado com o sangue.
O quarto estava forrado de vermelho-vivo. Combinava com o toldo da entrada do hotel. Escorria da barriga da mulher, deitada no canto do cômodo, e já quase chegava à porta. Provavelmente ela estava ali há algumas horas, a estimativa de Rute, a perita, era de no mínimo duas. Liz já tinha visto cenários semelhantes, sendo dois pessoalmente, contando com aquele. Mesmo modus operandi: as vítimas eram sempre enforcadas, mas o assassino fazia questão, talvez como uma forma de assinatura, de desenhar uma estrela de cinco pontas na barriga das mulheres, sempre mortas sozinhas em quartos de hotel. A estrela não era a causa da morte, mas manchava toda a cena do crime de sangue, que nunca guardava vestígios de quem havia estado ali além da vítima. Não havia marcas de pisada, ou digitais, apenas o mesmo modo de matar.
Liz e Felipa se entreolharam. Aquela seria uma longa noite.
Fim do capítulo
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Zaha
Em: 12/02/2025
Boa tarde, Caribu! Tudo bem?.
Resolvi vim antes, dar uma olhadinha- na estória vencedora - de um dos desafios. Queria saber quem era Liz. Apesar de estórias independentes, sempre bom conhecer a personalidade de uma personagem que aparece em momentos especiais....
Você escreve cenas policiais muito bem, mas já tinha dito, né?! Porém, reforçar é bom! Vou me divertir muito lendo esse conto como os demais que me indicou e a justiceira TB.
Vou continuar lendo pra saber sobre as mortes....gostei da ideia da estrela na barriga. Bem pensando.
Beijos
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rhina
Em: 13/08/2021
Eu estou bem!( Como vc disse: cada dia é um dia!)
Por motivos diversos sua História real desde que li nunca mais deixou minha cabeça.
A vida urge. Estamos vivendo a prova disso neste tempos.
Não sei quando voltarei a ler. Mas sua escrita será será bem vinda pra mim.
Obrigada pela atenção.
Rhina
Resposta do autor:
A vida urge, é verdade! E é muito breve!
Aproveite bem! Fique bem!
Beijos!
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rhina
Em: 13/08/2021
Oi.
Boa noite.
Como está?
Faz um longo tempo.
Mas talvez não creia mas sempre lembro de vc e sua história real. Me marcou bastante.
Faz muito tempo mesmo que não leio nada. Vi está publicação no Facebook.....resolvi entrar e da uma olhadinha.
Gosto da sua escrita.
Rhina
Resposta do autor:
Oi, Rhina! Tudo bem? Eu estou bem (cada dia é um dia, né).
Que bom que sempre lembra da história! Sinal que transmiti bem!
Confesso que tenho andado com a cabeça às voltas daquele tempo!
Que bom que o conto te animou a ler!
Espero que esteja bem!
Beijos!
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ArvoreDaVida
Em: 19/06/2021
Não acredito que demorou tanto pra eu clicar no link desse conto, meu deus!!! Você escreve muito bem, tudo é envolvente e empolgante, estimulando muito a leitura. Já tô ansiosa para as próximas partes! Parabéns demais!
Resposta do autor:
Demorou, mas chegou! Que bom!
Fico feliz que tenha gostado! Afinal, é um desafio escrever mil palavras em 4 partes inspiradas em imagens específicas rsrs
Continue comentando! E #leiacaribu
Beijos!
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brinamiranda
Em: 16/06/2021
Olá Caribu.
Amei se conto, parabéns por ele, amo histórias de serial killers, agora sobre o nome da cidade, me veio uma curiosidade, seria o anagrama de "Alice"?.
Parabéns e mais tarde leio a continuação. Obrigada por deixar sua marquinha no meu.
abraço
Resposta do autor:
Oi, Sabrina! Que legal, fico feliz que tenha lido, e gostado! <3
Grata por comentar!
Respondendo sua pergunta, sim, a cidade tem o msm nome que eu, só que ao contrário!rsrs
Há sempre muito de mim nos meus textos e achei engraçadinho colocar esse anagrama como nome da cidade (no próximo capítulo do conto eu cito o nome do meu prédio, do meu bairro e da região que moro rs).
Beijos!
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cris05
Em: 16/06/2021
Oxe! Como assim passei batida por esse texto?? Mas antes tarde do que mais tarde rsrs.
Pra variar, mais um trabalho maravilhoso.
Tô amando!
Sucesso no desafio, caribu!
Beijos!
Resposta do autor:
hahaha
E eu quase te mandei um "PS" no último capítulo postado do Amor Incondicional, mas não sei se violaria alguma regra rsrs
Tava esperando a sua leitura! Grata! <3
Espero que acompanhe e aprecie até o final!
Beijos!
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Castrovianna
Em: 14/06/2021
Não sou leitor assíduo, você sabe, mas é incrível como os detalhes fazem o texto parecer um filme! Muito bom mesmo!!! Esperando os próximos capítulos... Parabéns
Resposta do autor:
Fico feliz por ter te cativado! Seu comentário me deixou mto contente tb!
Vamos juntos até o final!
Beijos!
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Ma Vila
Em: 13/06/2021
Empolgante, instigante e envolvente o seu texto, como sempre!! Parabéns por mais uma estória incrível, Caribu! Ansiosa pela continuação dela!! Sucesso sempre, Minha Querida!!
Resposta do autor:
Que querida, vc por aqui! <3 <3
Grata, Ma! Receba o meu amor, sempre!
Beijos!
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Saraivas1993
Em: 13/06/2021
Seus textos já são uma delícia de se ler, esse então! Uma abundância de detalhes que impressiona, tudo se encaixa perfeitamente, empolgante do início ao fim!
Adorei, sou fã do seu trabalho!
Resposta do autor:
Ah, que linda! <3
Para tudo que minha Musa comentou!rsrs
Grata, meu benzinho! Fico feliz que goste! Adoro compartilhar minhas histórias previamente com vc!
Beijos!
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ruthcbraga
Em: 13/06/2021
Escreve demais Caribu!! Adoro seus contos, seus livros, e tudo que vc escreve! Obrigada por nos agraciar com sua histórias :*
Resposta do autor:
Ah, que honra tê-la aqui!
Grata pelo comentário, e por tudo que faz! <3
Tudo começou assim!!
Beijos!
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Rosa Maria
Em: 13/06/2021
Caribu...
Que riqueza de detalhes nessa narrativa parabéns já com muita curiosidade pela continuação...
Beijo
Rosa
Resposta do autor:
Oi, querida! Que bom que gostou, espero manter sua curiosidade aguçada até o final do conto!
Beijos!
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Cristiane Schwinden
Em: 12/06/2021
Ahh que massa! Amo coisas com serial killers!! Sua narração é cativante, adorei!
Resposta do autor:
Oi, Cris!
Que legal receber um comentário seu!! Gabaritei no Lettera depois disso rsrsrs
Espero que aprecie até o fim este continho cheio de sangue!
Beijos!
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Cma24
Em: 10/06/2021
Mais um trabalho excepcional.
A vontade de compartilhar a cena com as personagens é real. Seu talento descritivo é sempre empolgante.
Sucesso no desafio :)
Resposta do autor:
Que querida! <3
Grata pelo comentário! Fico feliz que tenha gostado!
Espero que aprecie até o fim!
Beijos!
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caribu Em: 12/02/2025 Autora da história
Ah, que bom que não resistiu e veio ler!
Essa história é muito legal! Espero que goste! S2 S2
Mas sem querer dar spoiler, a outra é melhor hahahaha
Divirta-se!
Beijos!