HERA

 

Observei o sono conturbado de Lorena, enquanto me perguntava com que ela estaria sonhando dessa vez. Duas batidas suaves na porta me tiraram do passatempo que tenho feito com frequência: observar Lorena dormir. Ela dificilmente dorme bem, todas as noites resmunga coisas que não consigo entender. Chora. As vezes grita. E em todas as vezes consigo sentir a angústia que ela sente. Em todas as vezes juro internamente que logo, farei a família dela pagar por tudo o que fizeram com ela.

 

Caminho até a porta sem tirar os olhos de Lorena, e abro uma pequena brecha. Matheus vestia um jeans casual e uma camiseta branca, seus pés descalços chamaram minha atenção.

 

- Miranda chegou, estão todos na sala te esperando. - Ele diz baixo como se soubesse que Lorena está dormindo.

 

- Ok. Já estou descendo. - Fecho a porta e volto para cama, para observar Lorena silenciosamente.

 

Depois dos acontecimentos na floresta, Lorena e eu ficamos em casa o restante do dia. Por mais que tentasse conversar com ela, Lorena simplesmente não quis falar. Ficou a maior parte do dia na sala de esportes distribuindo socos no saco de box. Ela estava irritada, pude sentir. Como ela não quis me contar o que havia acontecido, com uma rápida ligação para o Supremo ele resumiu tudo o que Miranda havia contado a ele, e depois do choque inicial entendi porque Lorena estava tão relutante em conversar sobre o assunto. Desconfio que ela não acredite no que a bruxa disse, por questão de lógica e muitos anos de vida, não a culpei pelo atual estado de negação, afinal nunca existiu uma híbrida, agora, aparentemente, existe não só uma híbrida, mas uma tríbrida, e essa pessoa tão única, incomum e perigosa, é ela, a garota que passou a vida toda sendo maltratada pelas únicas pessoas que deviam amá-la. Ela, a pessoa que mais deseja estar longe de problemas.

 

Acariciei seu rosto suavemente, tomando cuidado para não acordá-la. Depois de três horas seguidas socando o saco de box, Lorena veio para o quarto, tomou banho e dormiu, insisti para que comece alguma coisa, qualquer coisa, mas ela disse que não estava com fome. Não podia simplesmente forçá-la a engolir a comida, já a forcei a sair da casa dela para vir viver comigo e com minha família, não me sinto no direito de agir de maneira tão exigente com ela, mesmo que as vezes sinta um grande impulso em fazer isso por causa de sua teimosia crônica. Lorena resmungou alguma coisa novamente, parecia estar irritada com alguma coisa, e não pude evitar sorrir com o bico que ela fez de irritação, ainda dormindo.

 

Lorena não se parece em nada com as mulheres que já conheci. Lorena é linda, mas de um jeito simples, ela não tem uma beleza forçada como a das mulheres que me envolvi no decorrer da vida. Lorena tem um rosto fino, a pele bronzeada naturalmente combina perfeitamente com seus cabelos castanhos cacheados e revoltados, seu nariz fino e delicado, mas não arrebitado, a deixam com uma aparência nada mais que simples, normal. Seus lábios não são finos, mas também não são cheios como os Botox das mulheres que já vi na aristocracia. Depois que parei para observar todas suas características, várias vezes, percebi o quão diferente Lorena é dos irmãos de sangue e do homem que deveria ser o pai dela, realmente, ela tem muita semelhança com a mãe, Lizandra, mas até mesmo na cor da pele Lorena se diferencia dela. Lizandra tem a pele terrivelmente branca, já Lorena tem um bronzeado natural, a deixando sempre com uma aparência saudável, e ainda mais linda e irresistível para mim. Lorena não se parece com ninguém que já tenha conhecido nos meus quase dois milênios de vida, e agora que a conheço, agora que a tenho comigo, me sinto completa pela primeira vez na vida, como se tivesse existido para esse momento, para ela. E agora que a tenho, não posso me imaginar viver sem ela, e nem quero.

 

Depois de depositar um beijo suave em seu rosto, tomando cuidado para não acordá-la, sai do quarto em direção a sala de estar. Ao chegar me deparo com Lucas, Luís, o Supremo, Bernardo, e meus irmãos que estão sentados em um canto mais distante do centro da sala. Os Guardas Reais, inclusive Miguel, estão espalhados pela sala de estar, minha mãe está ao lado de Miranda sentada em um dos sofás da sala. Ao me aproximar todos me olham ansiosos.

 

- Ela conversou com você? - O Supremo é o primeiro a falar.

 

- Não. Ela está irritada demais para conversar sobre o assunto.

 

- Como ela está agora? - Minha mãe pergunta, preocupada.

 

- Dormiu depois de passar três horas socando o saco de box na sala de treinamento. - Todos suspiram nervosos, a tensão percorreu toda a sala.

 

- Isso é insano e... - Lucas se pronuncia com as mãos na testa, visivelmente surpreso.

 

- Sim, não posso deixar de concordar, mas por mais insano que pareça, acredito que seja verdade o que aquela bruxa disse. Lorena pôde sentir elas antes que aparecessem, ninguém sequer pode ouvir, ou sentir o cheiro delas se aproximando, Lorena foi a única que soube. Sem contar que pude sentir o poder da Lorena assim que a vi pela primeira vez, só não disse antes porque não sabia o que estava sentindo, agora a bruxa esclareceu isso.

 

- Ela já sabia disso? - Lucas pergunta a Miranda.

 

- Não. Enquanto a bruxa dizia que Lorena é uma delas, sondei ela sem que ela percebesse, ela está tão incrédula quanto a gente.

 

- É muita coisa para uma pessoa só. - Anna diz apertando os olhos. - Ela deve estar tão confusa.

 

- Precisamos descobrir mais sobre a família dela, eles podem ser os únicos que sabem sobre isso. - O tom irritado de Luís não passa despercebido para mim. - Lorena sempre foi uma menina esforçada e educada, para mim ela ser uma híbrida é o único motivo lógico que fazia com que eles a maltratarem. Mario gosta de poder, e Lorena tem mais poder que ele. 

 

- Sim. Ela provavelmente é mais poderosa que qualquer outro ser que já pisou na face dessa terra, sem contar, que se ela não for filha de Mario, esse pode ser outro motivo pelo qual a maltratavam, ela para eles é considerada uma bastarda. - Bernardo diz.

 

- Miranda, quando Lorena estiver melhor, precisamos que você a sonde de novo, e precisamos que você vá mais fundo dessa vez, tente saber tudo o que for possível sobre ela, sobre os poderes dela, tente saber os limites dela. Você acha que consegue ter uma pista de quem é o pai dela, acessando sua memória genética? - Miranda pensa por um tempo em minha proposta.

 

- Consigo, mas isso demora. Não consigo fazer isso amanhã, nem depois de amanhã, e nem semana que vem. Antes de fazer isso preciso canalizar todo meu poder para que consiga ir tão fundo.

 

- Ela disse que não quer saber quem é o pai verdadeiro dela. - Anna arqueia a sobrancelha em minha direção.

 

- Sei perfeitamente disso, mas fico me perguntando se o pai verdadeiro dela, sequer sabe que ela existe. E se o pai dela sempre soube sobre ela e não se aproximou por causa de Mario? Isso vai fazer bem para ela, e eu quero que ela sinta isso, eu quero que saiba como é ter alguém da família de sangue com ela.

 

- Ela tem a nós agora. - Minha mãe soa indignada.

 

- Sim mãe, sabemos, ela sabe, mas isso pode mudar a percepção que ela tem de que família não é algo confiável. O pai verdadeiro da Lorena pode nos ajudar a investigar Mario e Lizandra. - Um silêncio recai na sala.

 

- Hera tem razão. Precisamos investigar o pai de Lorena, ele pode nos contar o que aconteceu entre ele e Lizandra, talvez ele até saiba que tem uma filha mas tenha sido impedido de conviver com ela, nós sabemos a fama de Mario, ele jamais teria deixado uma coisa desse tipo acontecer sabendo que poderia virar notícia na sociedade e causar um impacto na reputação dele. - Meu pai diz contemplativo.

 

- Pelo que sabemos de Mario, ele pode ter matado o pai verdadeiro de Lorena antes que se desse conta de que tinha uma filha. Não podemos dar falsas esperanças para ela. - Luís completa.

 

- Verdade, conheci Mario uma vez, sua aura é tão sombria que não me dei ao trabalho de sondá-lo para saber se ele tinha alguma má intenção, isso estava óbvio de longe. - Miranda reflete.

 

- Não é segredo para ninguém que ele não gosta da Família Real, e que se dependesse dele, já tinha cometido traição a muito tempo.

 

- Se é que já não fez, não sabemos nada sobre ele com relação a esse assunto, mas ele é capaz disso. - Lucas passa a mão pelos cabelos já bagunçados e revoltados.

 

- Bom, então vamos fazer isso. Nos avise quando estiver pronta Miranda, conversaremos com Lorena sobre o assunto. - O Supremo finalmente para de andar de um lado  para o outro, e se senta em uma poltrona.

 

- Consegui o grupo para mandar a alcateia deles, para investigar. - Luís se pronuncia. - São pessoas de minha extrema confiança, posso apresentá-los amanhã se quiser.

 

- Ótimo, vou querer conhecê-los. - Cruzo os braços aliviada de que pelo menos uma coisa estava tomando uma direção.

 

- Não podemos esquecer o que a bruxa disse - Miranda se pronuncia novamente. - Ela queria levar Lorena com ela, e como não conseguiu, disse que entraria em contato em breve.

 

- Como ela pretende fazer isso? - Pergunto.

 

- Ela não disse, só disse que entraria em contato, e era só com Lorena que estava falando. - Segue-se uns segundos de silêncio.

 

- Quando não estiver com Lorena, Miguel estará com ela, o tempo todo. - O olho parado em um dos cantos da sala, ele acena para mim com a cabeça em concordância. - Se a bruxa procurar por Lorena saberemos.

 

- De qualquer forma, sabendo ou não quem é o pai de Lorena, ele provavelmente não vai explicar o fato de Lorena ser lycan, vampira e bruxa. - Bernardo diz chamando nossa atenção e todos ficamos em silêncio refletindo sua observação. Ele tem razão.

 

- Você vai treinar a Lorena amanhã? - Pergunto para Miranda, que me olha surpresa, assim como todos.

 

- Não acho que ela vá querer treinar amanhã. - Miranda franze o cenho refletindo.

 

- Ela vai sim. Ela sempre trabalhou e se esforçou para viver, ela não quer ficar em casa sem fazer nada, a única coisa que ela pode fazer no momento é treinar, e tenho certeza que a minha companheira não vai querer ficar em casa se lamentando. Não nos conhecemos a muito tempo, mas o que conheço me provou isso.

 

- Hera tem razão. Lorena não é nada fácil nessa questão, ela nunca aceitou ajuda minha e da minha companheira para muitas coisas, ela sempre se virou sozinha. E conhecendo Lorena como eu conheço, ela vai lutar, como sempre lutou, a última coisa que ela vai fazer é ficar em casa. - Luís expões seus pensamentos me olhando compreensivo.

 

Nesse momento percebi a admiração dele por Lorena, e me dei conta do quão forte e incrível ela é. Não que não tivesse percebido isso antes, mas agora percebi que quem a rodeia e a conhece de verdade, sabe o que ela é. Lorena é uma lutadora, ela luta por sua vida desde que nasceu, e não admirar uma mulher dessas, é impossível.

 

 

MIRANDA

 

- E então, alguma outra novidade? - Átila pergunta pela chamada de vídeo em grupo. Todas nós tínhamos decidido dessa vez que não nos encontraríamos pessoalmente, devido as tarefas que o Supremo havia me passado. Que é treinar Lorena, no entanto, nenhuma outra Profeta além de mim e Elisângela sabem das novidades com relação a menina, e continuarão sem saber.

 

Refleti sobre o perigo que Lorena correrá se a notícia sobre ela ser uma tríbrida se espalhar. Depois de muito refletir, decidi que não contaria as outras Profetas, não posso arriscar uma informação tão importante a elas, por mais que acredite que nenhuma delas faça parte do grupo de informantes infiltrados nas alcateias, não posso arriscar algo tão importante como isso.

 

Tanta coisa ruim pode acontecer se Lorena for descoberta. Existem os pais dela, existem os rebeldes, existem as outras espécies, que diferente de nós, podem não ficar contentes em saber que uma híbrida deles está conosco. Mesmo entre nossa espécie, muitas pessoas não ficarão felizes em saber que uma pessoa poderosa como Lorena existe, a sociedade se dividiria, os que são a favor de ter Lorena como uma aliada poderosa nossa, e o grupo a favor de matá-la. Definitivamente, os Sacerdotes serão a favor de matá-la e a julgarão como uma abominação, dirão que ela é um erro da mãe-natureza, não a verão como a vemos. Lorena não é uma abominação, Lorena está aqui porque a mãe-natureza a quer aqui, só me resta saber, por que agora? Por que criar alguém tão poderosa e tão diferente, e igual ao mesmo tempo, agora? Por que tudo isso agora? O que está acontecendo agora?

 

"A guerra?"

 

Me sinto tão perto de saber o porque de Lorena ser quem é, no entanto, as respostas fogem, como se ainda não fosse o momento certo de saber. Será pela guerra? Lorena está destinada a acabar com a guerra? É por isso que ela é um pouco de cada espécie? É uma forma de Gaia dizer que apesar de diferentes todos nós somos iguais diante dela?

 

"Sinto que estou tão perto de saber..."

 

Se Lorena for o motivo do fim da guerra, como ela faria isso? Ela é muito nova, sequer sabe o que é uma guerra. Lorena não tem um século de vida sequer, é uma criança.

 

- Miranda? - Balanço a cabeça tentando afastar os pensamentos.

 

- Sim! Me desculpem, divaguei um pouco. Qual foi a pergunta?

 

- Você tem alguma novidade?

 

- Não, infelizmente não. Alguma de vocês teve alguma outra visão relacionada a guerra? - Após todas responderem que não, um silêncio se fixou.

 

- Fiz um desenho da marca que apareceu na árvore na última visão. - Lara colocou na tela um desenho da marca que surgiu na árvore durante a visão. - Vou mandar a imagem para todas vocês no privado depois, quem sabe não damos sorte de ver essa imagem em alguma lugar por aí. Seria uma dica e tanto da Mãe Gaia.

 

- Sim, obrigada Lara. Bom, então acabamos por aqui. - Todas nos despedimos e a ligação é encerrada. Giro a cadeira em direção a varanda do meu quarto, onde pude ver a lua cheia brilhando no céu, iluminando a noite com sua luz prateada.

 

Há muitos milênios atrás, antes da sociedade ser evoluída como agora, todas as espécies se uniam para lutar contra um inimigo em comum: demônios. Seres infernais de outro mundo que conseguem atravessar portais espalhados pela terra e adentrar nossa dimensão, para nos escravizar, ou exterminar. Esse era nosso inimigo, e depois de muitos séculos de guerras, e mortes, as espécies finalmente suspiraram aliviadas, todos os portais da terra foram encontrados e destruídos, dessa forma, nenhum demônio conseguiria ultrapassar os portais. É triste saber que agora lutamos entre nós, dispostos a extinguir a outra espécie da face da terra. Devíamos ser unidos, devíamos nos ajudar e coexistir como todas as outras espécies na face da terra, no entanto, estamos lutando uns contra os outros, em busca de poder.

 

"Ridículo..."

 

Tantas vidas sendo perdidas nessa guerra por um motivo tão egoísta. 

 

Deixei meus pensamentos voltarem para Lorena.

 

"No que Lorena é capaz de nos ajudar? Se é que ela realmente tenha sido criada para isso."

 

Duas batidas na porta me tiram do meu devaneio. Me deparo com Elisângela na porta, vestida com um pijama.

 

- Já vai dormir? Ainda é cedo. - Elisângela entra no quarto olhando ao redor.

 

- Decidiu usar as chamadas de vídeo ao invés de ficar viajando? - Ela arqueia uma sobrancelha e sorrio com seu tom sarcástico. - Milagre, acho que alguma coisa estranha vai acontecer por causa disso. - Ela se senta na beirada da cama me olhando.

 

- Já está acontecendo coisas estranhas demais para o meu gosto.

 

- É, pela primeira vez em muito tempo, tenho que concordar com você. - Segue-se uns segundos de silêncio.

 

- Andei pensando no caso da Lorena. Acredito que a aparição dela tenha a ver com a Guerra. - Elisângela pensa durante um tempo, como se estivesse tentando entender onde eu queria chegar.

 

- Me explique para ver se entendi.

 

- Acredito que Gaia queira nos mostrar que apesar das nossas diferenças, somos todos iguais e deveríamos ser unidos...

 

- Assim como todas as diferenças das espécies se uniram em Lorena?

 

- Sim, exatamente. Acho que é uma forma de dizer que somos iguais apesar das diferenças e que podemos viver juntos com essas diferenças.

 

- Entendi, faz bastante sentido. Mas não sei como Lorena poderia ter a ver com a guerra, quer dizer, o que ela pode fazer? Sabemos que a Lorena sabe lutar e se defender muito bem, mas não acho que Lorena lutando ajude a acabar com a guerra.

 

- Não estava pensando em Lorena lutando. Talvez se conseguíssemos falar com os líderes, ou talvez, os outros Profetas de cada espécie e explicássemos a situação, talvez eles entendessem e pudessem passar a informação para os líderes deles.

 

- Entendi, mas teríamos que arriscar contar sobre a Lorena, coisa que o Supremo e nem a companheira dela querem fazer. - Elisângela brinca com uma mexa de seu cabelo distraída.

 

- Sim, mas podemos tentar falar com a bruxa que veio até nos na floresta. Ela já sabe sobre a Lorena.

 

- Ela não sabe que a Lorena é uma híbrida vampira. - Confirmo com a cabeça. - Como falaríamos com ela?

 

- Acho que tenho uma ideia.

Fim do capítulo