E lá vamos nós :3
Aliadas
O verão estava em seu pico. Os animais já haviam terminado de migrar para as áreas quentes, o que deixava a floresta com diversos sons de pássaros e de famílias inteiras de macacos e onças. Ao longe, perto do lago e no fim das montanhas, rinocerontes procuravam um local seguro para o seu bando, competindo com os outros animais para sobreviver.
Quem se aventurasse mais ao fundo da floresta, encontraria uma cachoeira, que desaguava num lago de águas límpidas e intocadas, verde como as folhas que caiam vez ou outra. Se fosse ainda mais aventureiro, encontraria a pedra mais alta, encaixada no local perfeito, que proporcionava a visão não somente do alto da cachoeira, mas de toda a floresta e as montanhas além. Então se fosse corajoso, poderia mergulhar, e encontrar alivio do calor que fazia na água fresca da cachoeira.
Muitos verões foram passados assim, calmos, monótonos. Se respeitasse a natureza, ela te retribuía com seus frutos e te permitia viver mais um dia, sem ninguém para incomodar. De certo que não havia apenas animais vivendo entre as árvores, tribos montaram suas casas entre os galhos, suspensas no ar e protegidas de predadores selvagens no meio da noite. Mas não eram nativos, e sim fugitivos. Cada vez mais chegavam de terras distantes, fugindo das leis ou dos problemas que criaram em seus lares, buscando um novo começo.
Foi buscando fugir dos assassinos da sua mãe, que Emeril foi levada por seu pai ao centro da floresta, onde os fugitivos se concentravam. Já não era uma criança quando ela viu pela primeira vez uma criatura nova aos seus olhos, mas ao invés de sentir medo, ela se aventurou na curiosidade, e se aproximou. Sabia que o animal não fazia parte da sua espécie, mas pareceu não se importar de imediato.
Naquela noite, a loba atraiu a garota para longe de sua tribo, temendo suas reações se a vissem perto. Desviou das criaturas noturnas, e só parou quando chegaram a uma clareira. Os sons da floresta indicavam que não estavam completamente sozinhas, mas estavam seguras naquele pequeno espaço.
—Você é um lobo?
A loba andou ao redor da garota, farejando seu cheiro, parando a sua frente.
—Você anda com outros lobos?
Lentamente, ela moveu a cabeça de maneira positiva, seu corpo rígido, à espera de alguma emboscada.
—E onde eles estão?
Seu focinho se ergueu, farejando, sentindo o cheiro úmido da terra abaixo das suas patas, das folhas molhadas da chuva fina que caia, então sentiu mais além, seu próprio cheiro e o da garota, pelo caminho de onde vieram, e não demorou para encontrar seu bando, em torno da aldeia. A garota entendeu para onde ela apontava, seus olhos curiosos deslizando pelo corpo comprido do animal, sua pelagem molhada escurecendo o tom laranja que possuía, escura nas patas e na cabeça. Estendeu a mão, querendo tocá-la, mas a loba recuou, insegura.
—Eu não vou te machucar. Pode confiar em mim.
A felina quis rir de suas palavras, novamente andando ao redor da garota, curiosa com seu cheiro, seu corpo girando para acompanhar o movimento do animal. A loba se inclinou nas patas dianteiras, então saltou, derrubando a garota no chão e a mantendo ali. Mostrou os dentes, rosnando, perto do rosto juvenil, mas sua única reação foi rir, movendo as mãos para apalpar os músculos nas costelas da loba.
—Você ganhou. É muito mais forte que eu.
A loba saiu de cima da garota, movendo a cabeça, sem acreditar. “Ela não tem medo”, constatou, sentando sobre as patas traseiras, esperando que ela se levantasse, mas ela também sentou, imitando seu gesto, mãos curiosas agora tateando as patas dianteiras, dedilhando no peitoral, e se esticando para tentar alcançar sua cabeça, mas a loba era alta demais nessa posição. Bufando, ela deitou, deixando a jovem tirar toda a curiosidade que tinha, esperando que se cansasse.
—Você é tão linda. — Falou admirada. — Você tem nome?
A felina estreitou os olhos para essa pergunta. “Já faz tanto tempo”, pensou, “normalmente entre os outros é um som.” Ainda assim, assentiu. Animada, a garota se esticou para pegar um galho, sinalizando para o animal.
—Meu nome é Emeril. Eu vou escrever letras no chão, e você me diz qual letra tem no seu nome.
A loba bufou, fazendo um gesto negativo. Deslizou a pata no chão, sinalizando o mato e as raízes, de forma que ela não poderia escrever nada ali.
—É verdade. Vamos para a margem da floresta, lá tem terra.
Ela voltou a negar, continuando deitada, seus olhos mirando o caminho da aldeia. “Temos que voltar”, pensou, “eu não deveria estar aqui. Os outros vão estranhar.”
—Mas eu preciso saber seu nome. Como vou escrever sobre você no meu diário? Não vou sair daqui enquanto não souber seu nome.
A loba bufou, levantou-se e seguiu para a árvore mais próxima. Emeril imitou seus passos, sem entender, ficando ao seu lado e olhando entre ela e a árvore, esperando. Então ela se apoiou nas patas traseiras, as dianteiras pressionadas na madeira. Então ela golpeou com suas unhas, arrancando as cascas como se fossem folhas secas no chão. Com habilidade, suas unhas fizeram traços na madeira recém lascada, reproduzindo letras para que Emeril entendesse. Então se afastou, dando espaço para que ela lesse, esperando por sua reação.
—São símbolos estranhos. — Disse, os dedos tateando a madeira. — Mas posso decifrá-los. Meu pai trouxe alguns livros, e lembro de um deles possuir símbolos parecidos. Posso trazê-lo aqui para traduzir.
O ronco que ecoou da garganta da loba alertou sua aversão à ideia, mas Emeril não desistiu.
—Então eu volto aqui pela manhã, marco os símbolos, e pego o livro sem ele saber. Que tal?
Outra vez, ela negou em resposta, e olhou ao redor, enquanto a garota se mexia impaciente no lugar. Caminhou entre as árvores, farejando o chão, encontrando uma folha de bananeira, achando que seria do tamanho ideal, então a pegou entre os dentes, e levou para Emeril, sinalizando para o graveto que ainda segurava. A garota suspirou, balançando a cabeça em frustração, tirando uma lasca da madeira e começando a fazer furos na folha, copiando os símbolos.
—Você é um lobo que gosta de mandar. — Comentou, suspirando. — Aposto que é líder dos outros lobos. Deve mandar em todos.
A loba suspirou, sentando, à espera que ela terminasse de marcar a folha, passando vários minutos até que ela furasse a última vez, voltando sua atenção a felina.
—Posso te encontrar amanhã?
Em resposta, a loba negou, erguendo a cabeça para o céu, fechando os olhos em busca de ouvir melhor o ambiente, sentindo que a chuva logo iria se intensificar, cobrindo mais ainda o brilho da lua. Quando olhou novamente para Emeril, seu focinho tocou a mão dela, erguendo-a, deixando que ficasse no ar. Então tocou uma vez cada dedo, e repetiu outros dois, olhando nos olhos escuros da garota, em busca de dúvidas.
—7 o que?
Olhando para cima, ela fez a garota entender.
—7 noites? Só daqui 7 noites eu vou te ver?
A loba olhou para a folha em sua outra mão, também usando o nariz para tocá-lo.
—Descobrirei seu nome assim que voltar para a aldeia.
Então ergueu a pata, baixando um dedo por vez, até que restassem apenas três. Emeril tinha o cenho franzido, em pura confusão.
—Se eu descobrir o nome, volta em três dias?
A loba sinalizou de forma negativa, e esperou dez minutos enquanto a garota fazia diversas suposições, até que bufou em impaciência. Repetiu o mesmo gesto, mostrando a folha e então seus dedos, afastando-se dela por fim.
—Espere! — Emeril tentou impedi-la. — O que vai acontecer se eu descobrir seu nome?
Outra vez, ela balançou a cabeça, caminhando até a borda da pequena clareira. Inclinou a cabeça, aspirando o ar lentamente, e quando abriu a boca, o uivo saiu claro e alto, ecoando pela floresta. Não demorou para que outras dezenas de uivos ecoassem em resposta, não durando mais que alguns segundos, até que os olhos alaranjados da loba se fixassem nos castanhos de Emeril. Era uma despedida. A loba desapareceu na floresta assim como apareceu na vida de Emeril.
A garota decifrou os códigos naquela mesma noite, mas ainda não entendia o que a loba quis dizer com seus últimos gestos, o que a deixava em expectativa para que chegasse o sétimo dia. Mas os dias passaram lentos, sua rotina passando ainda mais monótona para a sua espera.
—Emeril, foco.
A garota desviou os olhos das folhas, olhando para o pai, que lhe cobrava atenção. Estavam em sua pequena casa entre as árvores, seu foco estava no livro sobre as diversas espécies que existem nas florestas ao redor do mundo, mas parou nas poucas páginas que falavam sobre lobos. As crianças corriam em meio a brincadeiras nas pontes que ligavam as casas, seus risos e seus passos sendo ouvidos por onde passavam.
—O que foi, papa?
—Faz quatro dias que não sai de casa e fica lendo esse livro. — O homem pegou o livro do seu colo, visualizando seu conteúdo. — Você não tem feito seus treinos por causa de lobos?
—Você sempre falou que conhecimento era bom. Nunca é demais saber mais sobre as criaturas desse mundo.
—Também é bom saber se defender deles, se quiser continuar estudando.
—Eu não gosto dos treinos físicos, papa. Ninguém vai nos encontrar aqui.
Ela tentou pegar o livro de volta, mas Julian o fechou, respirando fundo. Emeril bufou, cruzando os braços, frustrada com a interrupção.
—Você sabe o motivo de precisar aprender a se defender.
—Não é porque eu preciso, que eu queira. De que adiantou minha mãe saber lutar tão bem, se foi morta?
—Emeril... — Julian suspirou, segurando o livro embaixo do braço, pousando a mão sobre o ombro da filha. — Você era muito pequena para entender.
—Mas não sou agora. E eu entendo. Desenvolver minhas habilidades me protegeria dos assassinos. Mas eu não gosto de lutar.
—Mas gosta de viver. E se quiser continuar vivendo, precisa aprender.
—Eu li todos os livros, aprendi todos os feitiços que tinham neles. Por que precisaria da luta física se a função é fugir deles? — Ela bufou, sem entender. — Minha mãe lutou e perdeu.
—Nós fugimos porque você era uma criança. Eu não podia lutar sozinho se eles soubessem que você sobreviveu. Emeril... — Ele se inclinou para ficar em sua altura, sua mão encaixando na curvatura do seu ombro. — Sua mãe lutou para que pudéssemos fugir. Ela não queria o mesmo destino para você.
—Então me deixa criar meu próprio destino, Julian. Não sou mais uma criança para que cuide do que devo ou não fazer.
Ela afastou a mão do pai, pegando o livro de volta e caminhando para a porta. Parou antes de abrir, notando que os sons das crianças brincando tinham parado, e julgou que ouviram a discussão. Olhou mais uma vez para Julian, para seus olhos cansados, mas tão logo ele conseguiu formular uma resposta, Emeril saiu da casa.
A aldeia de casas era camuflada pelas copas das árvores altas, de forma que eram de difícil localização se vistas do chão. As pontes eram feitas de bambu, assim como toda a arquitetura das casas, e amarradas com cordas. As escadas que levavam ao chão eram escondidas dentro de árvores ocas, que eram abertas e escavadas, presas em outras árvores para não cair. Então as escadas eram colocadas dentro, e cobertas pelo casco. Cada casa possuía sua própria escada. Os tetos também eram feitos de bambus, cortados ao meio e amarrados com cordas finas, a fim de impedir que a água passasse, em dias de chuva.
Durante o dia, era comum os mais jovens brincarem pelas pontes, mas também procurarem a diversão na cachoeira, local de difícil acesso e que somente quem conhecesse a mata sabia o caminho. Emeril sempre fez esse percurso desde que seu pai lhe ensinou, quando era mais jovem, agora aproveitava a chance de se divertir com seus amigos. Mas não nos últimos quatro dias, depois que conheceu a loba que ativou toda a sua curiosidade. Agora ela preferia a companhia do silêncio enquanto revisava tudo que sabia sobre lobos. Seu local preferido agora era na sombra da árvore que a felina tinha marcado o próprio nome.
E era naquele mesmo lugar que foi se refugiar depois de discutir com Julian, assobiando uma música para distrair seus pensamentos da tensão que seus ombros reclamavam.
—Todos os livros... Nenhum fala de lobos tão inteligentes.
Ela suspirou, deixando o livro de lado, apoiando a cabeça na árvore, pensando.
—Ela entende o que falo, muito bem. Sabe escrever numa língua antiga. Sabe gesticular para falar comigo. Que lobo faria isso?
Fechou os olhos, sem entender, frustrada. Havia tanto que queria saber, mas sabia que todo o conhecimento que sua mãe armazenava nos livros havia se perdido para sempre, e seu pai não possuía grande informação sobre o mundo que sua mãe estava tão habituada.
—Por que minha mãe morreu, e não meu pai? De que adianta eu ter sobrevivido se não tenho nenhuma fonte para aumentar o que sei? Por que não consigo descobrir a natureza daquele lobo?
Estava anoitecendo, mas ela não percebeu. Ficou embalada entre suas frustrações e o som de grilos e pássaros, adormecendo após alguns minutos. Teve sonhos, mas se lembrou apenas de estar num precipício quando foi acordada pelo som típico de um rosnar crescente, ecoando feroz à medida que acordava. Seu sono foi rapidamente espantado ao ver um lobo preto a poucos passos de onde estava, o corpo inclinado e rígido, os dentes de fora e a língua passando entre eles enquanto saliva escorria pelas laterais, preparado para atacar a qualquer momento. Quase não o distinguiu da escuridão da noite, se não fosse pelos seus dentes e seu rosnado.
Emeril ficou paralisada, em choque por um longo minuto. “Um lobo apareceu”, constatou, tentando raciocinar, “mas não é nem de longe a loba que conheci.” Considerou que a felina que marcou o nome na árvore que permanecia apoiada era completamente diferente do que estava a sua frente, porque ela não tentou matá-la como aquele estava intencionado a fazer. “Preciso me defender”, constatou, abrindo e fechando a mão, preparando-se para tentar fugir.
—Eu não quero lutar. — Falou baixo, encarando a fúria nos olhos do lobo. — Lobos não atacam humanos. Eu não fiz nada contra você.
Os olhos do lobo miraram o livro que permanecia ao seu lado, e se aproximou mais um passo, enraivecido.
—É só um livro. Eu nunca faria mal a você ou outro lobo. — Justificou-se, ainda que surpresa por ele também gesticular. — Eu conheci outro lobo uns dias atrás. Tinha cor laranja, assim como os olhos. Você a conhece?
Seu coração acelerou em pânico quando ele se aproximou mais ainda, parecendo com mais raiva aos seus olhos. “Preciso fazer algo antes que acabe morta”, pensou rapidamente, mas não conseguiu preparar uma reação rápida o suficiente. O lobo avançou rápido como a brisa, ela só conseguiu usar um braço para impedir que seus dentes acertassem seu pescoço. Gritou de dor quando sua carne foi perfurada diversas vezes, enquanto o lobo tentava chegar no seu ponto vital. Ficou desesperada, seus pensamentos focados em sua morte iminente, todo seu treinamento sobre defesa e feitiços sendo esquecidos em meio a dor que sentia. Precisava de ajuda, mas sabia que ninguém a encontraria naquele lugar. Estava sozinha.
O lobo negro movia a cabeça, as patas firmes nas laterais do corpo de Emeril, buscando tirar o braço da proteção do pescoço, querendo quebrá-lo tão logo o tivesse entre seus dentes, os gritos e choro da garota sendo abafados pela sua adrenalina.
Em meio ao seu desespero, seus olhos se desviaram da fúria do lobo preto e de seu braço sangrento para os símbolos no tronco da árvore, o simples pensamento de não estar viva quando a loba voltasse a fazendo chorar ainda mais.
—Ilismae... — Chamou pela loba, sua voz não passando de um choro. — Ilismae! — Gritou, e então fechou os olhos, esperando pela sua morte. — Ilismae, por favor... Desculpa...
Seu braço caiu sem forças, incapaz de lutar contra a selvageria do lobo, e esperou pela morte rápida que aqueles dentes cheios de saliva e sujos do seu sangue prometiam. Mas só sentiu seu bafo quente antes de ouvir um baque e um choro do lobo, não o encontrando mais quando abriu os olhos. Não estava mais em cima de seu corpo, agora estava no chão, metros à frente, tentando se defender do lobo laranja que mordia seu pescoço.
Emeril ficou surpresa, sem entender como a loba apareceu justo naquele momento. Engatinhou de costas até a árvore mais próxima, recolhendo o braço ferido contra o corpo, observando a nova luta a sua frente. A loba laranja deixou o preto livre dos seus dentes, mas acertou a pata em seu focinho quando olhou para Emeril. Projetou seu corpo a frente da garota, rosnando para ele, impondo sua fúria conforme seus grandes pelos aumentavam seu verdadeiro tamanho, deixando claro o recado que queria passar.
—Ilis...mae... — Falou, atônita.
O lobo negro fugiu, e só então a loba se virou para a garota, que estava assustada, encolhida contra a árvore. Aproximou-se devagar, cabeça baixa, sentindo o cheiro do sangue que escorria de seu braço.
—Como você me encontrou aqui? Você disse que só voltaria em 7 dias. Ainda falta 3.
A loba parou a sua frente, tocando seu focinho na mão de Emeril, tocando três dedos dela. Então seguiu rumo a sua garganta, tocando também três vezes, esperando que ela entendesse.
—Três... Três... Três dias?
Em resposta, a loba moveu a cabeça de forma negativa.
—Três... vezes?
A loba assentiu, deslizando a língua pelos ferimentos profundos no braço dela, causando arrepios em sua nuca como resposta.
—Eu te chamei três vezes. Então descobri mesmo seu nome. Ilismae.
A loba bufou, continuando a lamber seu braço, concentrada, causando alívio na dor de Emeril. O sangramento parou, a saliva da loba havia curado as perfurações em suas veias, mas o ferimento continuava aberto. Ainda assim, tinha contido a pior parte. Afastou-se e seguiu até onde a árvore com seu nome estava. Apoiou-se nas patas traseiras, e usou a unha grossa para fazer um traço entre os símbolos. Emeril olhou para o novo traço, finalmente entendendo.
—Mae é como se fosse seu segundo nome?
A loba assentiu, voltando a ficar a sua frente, olhando seu braço que permanecia com aparência grave.
—Parou de sangrar. Obrigada. — Emeril sorriu fracamente. — Você me salvou. Eu te devo minha vida. Dê-me sua... pata.
Ainda que sem entender, Ilis estendeu a pata, sendo segurada pela outra mão de Emeril. Uma suave luz azul saiu de sua mão, formando um símbolo sobre os pelos da loba, que somente observava.
—Ele só vai desaparecer quando minha dívida estiver paga. Ninguém vai poder ver, só eu e você. — Explicou, oferecendo uma suave carícia em sua pata.
A loba assentiu, e olhou em direção a aldeia, ouvindo maior movimentação aos arredores. “Devem estar procurando por ela”, pensou, voltando a encará-la.
—Preciso achar as ervas para fazer isso cicatrizar logo. E preciso lavar minhas roupas. Se chegar em casa nesse estado meu pai nunca vai me deixar sair em paz de novo.
Ilis franziu o cenho, movendo a cabeça de forma negativa. “Por que ela é tão teimosa?”
—Você não conhece meu pai, não me faça essa cara. De qualquer forma, eu briguei com ele. Não quero voltar lá tão cedo.
A loba olhou a própria pata, visualizando o símbolo. “Não é humana comum como os outros nativos”, constatou, suspirando, “por isso o cheiro é diferente.” Ainda assim, ela não fazia ideia do que Emeril era. Bufando, ela virou as costas para a garota e a olhou por sobre o ombro, gesticulando para que se levantasse.
—Por que? Vai me levar de volta para a aldeia?
Ilis avançou, sem paciência, seus dentes se prendendo na camisa dela, arrastando-a pelo chão.
—Ei! O que está fazendo? — Emeril protestou, prendendo o braço ferido contra o corpo para proteger do contato com o chão. — Ilis! Eu posso andar!
A loba bufou, revirando os olhos. Em resposta, Emeril se agarrou aos pelos nas costas da loba e se forçou para cima dela, seu tronco deitando cansado nas costas da felina pelo esforço e pela perda de sangue. A adrenalina havia esgotado sua energia, mas não seu ânimo. Ilis balançou a cabeça, sem se incomodar com o peso acima, e continuou a andar, enxergando bem na escuridão, desviando das árvores e das raízes no chão. Era um lobo grande, com mais de um metro e meio de altura, algo comum na sua espécie.
—Para onde está me levando, Ilis? — Emeril perguntou, abraçando o pescoço da loba com um braço. — A aldeia fica do outro lado.
“Como se você fosse entender se eu respondesse”, ela bufou, continuando a andar, tentando fazer com que a garota não caísse.
—Você precisa falar comigo. Se eu dormir vai ter que me arrastar. Posso pensar num feitiço que me deixe saber o que está pensando, assim pode me responder.
Ilis balançou a cabeça, em desacordo, ouvindo o riso de Emeril atrás de si.
—Eu não faria isso. Mas sei que é possível. Só precisaria dos ingredientes certos.
Emeril abraçou mais forte o pescoço da loba quando esta pulou um galho, então acariciou sua pele, aspirando seu cheiro.
—Você cheira como a terra depois da chuva. — Observou, abrindo um pequeno sorriso. — Como se tivesse todo o aroma bom das folhas.
“Falando de ervas e agora dizendo que cheiro a plantas”, Ilis estreitou os olhos, “será que é uma bruxa?”
—Ilis... Por que você é um lobo inteligente? Aquele lobo preto parecia entender, mas bem menos que você.
Ilis passou por baixo de uma árvore tombada, evitando saltar. Tinha que chegar logo em seu esconderijo, ela tinha certeza que a garota acabaria adormecendo se demorasse demais. Aos poucos os sons da aldeia ficaram distantes, e somente seus passos podiam ser escutados.
—Ilis, estamos indo para a cachoeira?
A loba assentiu, sem a certeza de que ela entenderia, então continuou o caminho, ouvindo as diversas perguntas que ela era capaz de pensar, sem que pudesse responder a maioria, dada a sua situação atual, de carregá-la nas costas.
Ilis passou pela borda do lago, deixando que Emeril descesse de suas costas. A garota não se demorou em mergulhar, com toda a sua roupa. Como ainda se sentia fraca, não tentou nadar, somente se limpou e lavou o que podia das suas roupas, tirando todas as peças quando saiu da água. Ilis se surpreendeu com o ato súbito, franzindo o cenho com a visão. Emeril apenas riu.
—O que? Nunca viu uma mulher pelada?
“Exceto que você não é uma mulher”, considerou, desviando o olhar. “Não deve nem ter atingido a maior idade.” Virou as costas, continuando a andar, ouvindo os passos e o riso da garota logo atrás, seguindo seu caminho. Ilis olhou ao redor antes de contornar uma pedra na borda da quebra d’água, e surpreendeu Emeril quando achou a passagem para baixo. Era um buraco, mas possuía degraus, escondido entre a pedra e o lago. Ilis entrou sem gesticular, desaparecendo na escuridão do interior, mas a garota seguiu logo atrás, movendo os dedos para uma luz fraca sair de sua mão, iluminando a caverna.
—É sua casa?
Emeril viu poucas coisas no interior da caverna, a maior parte eram frutas, e pouca madeira acumulada num canto, que julgou que fosse para acender uma fogueira. Não havia mais nada. Ilis foi em direção a madeira, mas Emeril a seguiu, ajudando a empilhar algumas, e movendo os dedos para o fogo sair de sua mão e acender na madeira. Estendeu suas roupas no chão ali perto, sentando em cima para ficar perto do fogo. Ilis ainda andou pela caverna, deixando frutas perto da fogueira e procurando pelas ervas que mantinha armazenadas ali. Quando as levou para Emeril, a garota estranhou as ervas, analisando em seu colo.
—Ilis. Você é uma loba suspeita. Como é possível ter esse tipo de ervas numa caverna?
Ilis somente gesticulou seu braço ferido, sentando ao seu lado. Emeril começou a arrancar as folhas, juntando um punhado de cada erva na mão. Com cuidado, aproximou do fogo, capturando um pequeno fragmento antes de cuspir na mistura e fechar a mão. Sussurrou algumas palavras, uma luz verde saindo pelas brechas do aperto que manteve por alguns minutos. Ilis apenas observou, curiosa, mas com cautela. Não sabia dizer o que a garota era, e sabia que ela não diria, porque também escondia dela sua verdadeira natureza.
—Minha mãe dizia que há diversas criaturas no mundo. Ela sabia identificar todos apenas por olhar.
Ela segurou a respiração, então passou lentamente a mistura queimada pelo braço, contendo o gemid* de dor pelo contato quente que sentiu nos ferimentos.
—Eu queria saber o que você é. Porque sei que não é um lobo comum. Mas eu não me importo em não saber.
Ela sorriu, ainda que cansada, lentamente deitando sobre as roupas.
—Você veio quando chamei. Não sei como, ou por que. Se é algum tipo de feitiço. Se veio por obrigação ou porque me ouviu e quis vir. Só sei que serei eternamente grata a você, porque você é a única que eu pude mostrar quem sou, e sequer sentiu medo.
Ela fechou os olhos, ouvindo a chuva começar a cair lá fora, e se encolheu, sentindo a brisa fria atingir sua pele. Acabou dormindo, sem perceber o corpo da loba se apoiando em suas costas, fornecendo o calor dos seus pelos e seu corpo.
Fim do capítulo
Olá pessoal!
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Lea
Em: 27/02/2022
Você está querendo dizer que a Emeril vai ter outro pessoa além da Ilis?
Resposta do autor:
Como assim? Fiquei confusa agora ahahah
Em que momento dei a entender isso?
A dona Emeril tem toda a intenção de permanecer com a Ilis.
Acho que me perdi nas referências do comentário ahahah
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Yara sousa
Em: 18/07/2021
Amei o começo da história, lerei os próximos, amo historias com lobos.
Resposta do autor:
Olá Yara!
Que bom que gostou, espero que continue :D
Lobos são uma maravilha, não é mesmo?
Aproveite a leitura ;)
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