Os raios de sol entravam pela copa das árvores banhando de dourado o dia, se alguém observasse a paisagem por uma fotografia jamais imaginaria a temperatura baixa que fazia, os pássaros cantavam nos galhos, mas, nem eles ousavam sair do lugar.

Júlia chegou meia hora antes no horário combinado, escolheu com cuidado o figurino, vestia uma blusa térmica branca e por cima um agasalho azul náutico, com listras brancas nas laterais da calça, as mãos iam dentro do abrigo da mesma cor, escondidas dentro do bolso, o corpo exalava um delicado cheiro de lavanda que só podia ser sentido com proximidade. Olhou o parque com olhos extasiados, não apenas pelas amapolas, mas, pelas flores de cores variadas que enfeitavam todo o lugar, algumas comuns, outras exóticas.

         O Parque das Amapolas sempre foi considerado o mais bonito jardim de Ilha Verde, 7 milhões de bulbos de flores são plantados ano após ano, mais do que um parque, o lugar podia ser chamado de um encantador jardim botânico. Júlia tirou da pequena mochila a câmera fotográfica, querendo registrar cada nova flor que via em seu caminho, por sorte, apesar do parque ser bastante grande, era setorizado e após algumas fotos se encaminhou para frente das tulipas, onde havia marcado com Nicolle, que pontualmente chegou, descendo da bicicleta com um sorriso no rosto, vestia uma blusa térmica preta por baixo do moletom mostarda com detalhes em preto, baixou o capuz duplo com cadarço, segurando uma pequena cesta que estava amarrada no lugar do carona.

.

- Bom dia, sou da cidade, mas, não me canso de olhar essas flores. – Falou encostando a palma da mão esquerda na de Júlia.

- Esse lugar é um paraíso.

- Trouxe um lanchinho para nós, como forma de me desculpar por ontem.

- Não foi culpa sua, seu marido queria entender com detalhes a vida de uma lésbica, só faltou perguntar, o que comem?, como copulam?, como sobrevivem sem um p*nis para chamar de seu?.

- Hahahahah...mesmo assim peço que me desculpe.

.

         Caminharam até chegar ao descampado onde outras pessoas faziam picnic, Nicolle estendeu a toalha xadrez, convidando Júlia a sentar, em seguida tirou da cesta de vime as xícaras e os pratinhos, servindo o chocolate alpino e os pãezinhos com paté e queijo, além de um delicioso rocambole de doce de leite.

.

- Esse lugar é mágico, nunca pensei em viver assim, olha essa calma, as pessoas exalam paz, nem parece que é segunda.

- Você trabalha com o que Júlia?.

- Bom, sou jornalista, estou afastada, me recuperando de um CA.

- Nossa, não sabia...

- Não me olhe assim, estou bem, e você?, o que faz além de cuidar de Alvinho e cozinhar divinamente.

- Sou arquiteta, ou era...

- O que é isso?, se gosta podemos pensar em um projeto, quero fazer uma reportagem sobre as grandes construções de Ilha Verde e suas histórias, se quiser me ajudar vai ser um prazer.

- Claro, podemos marcar para amanhã?, se tiver tempo, claro.

- Tempo é o que mais tenho agora. – Júlia falou tomando um gole delicado no chocolate quente.

- Desculpe, esqueci de oferecer, gosta de chantilly?.

- Sim, adoro...com licença – Falou enquanto tirou uma mexa dos cabelos ruivos que chicoteavam o rosto rosado pelo frio, colocando atrás da orelha.

- Obrigada.

- Não por isso, Nicolle não saia dessa posição, fica assim, quero tirar uma foto sua.

.

         Júlia ajeitou a ocular e registrou o momento, os raios do sol faziam com que os cabelos vermelhos brilhassem, depois se aproximou para mostrar a foto.

.

- Nossa, você é uma excelente fotógrafa.

- Que nada, a modelo ajudou.

.

         Dessa vez foi a vez de Nicolle pedir licença e tirar a pequena manchinha de chantilly do canto da boca da loira, levanto o dedão para sua boca.

.

- Como soube que era lésbica?.

- Como soube que era hetero?.

- Sei lá, em minha casa fui criada para ser o que quisesse desde que hetero, nunca me passou na cabeça me relacionar com mulheres.

- Nunca teve nenhuma experiência, nem um beijo?.

- Nada, nem um beijo, mas, quando começou a pandemia, sei lá, passei a ler literatura LGBT, observar mais atentamente as formas femininas, passava horas pensando como era o beijo, o toque, se as relações são doces, delicadas e intensas quanto imagino.

- Interessante, parece que a pandemia bagunçou o interior de todo mundo, preciso pensar em tua fala porque nem sei o que te dizer.

- Não diga nada, estou abrindo meu coração contigo. – As duas sorriram ao mesmo tempo em que viraram o rosto em direção ao som curioso que vinha de uma caixinha de música gigante que enfeitava o jardim.

.

- Que lindo, é Tchaikovsky, dance of the sugar plum fairy.

- Eu conheço a música, é do soldadinho de chumbo?.

- Do Quebra-nozes.

- Eu não entendo como uma mulher sensível como você, casou com um cara tão diferente, isso tentando ser educada.

- Álvaro era o badboy da faculdade, lindo, simpático, sedutor, me parecia tão descolado, fomos felizes no começo, depois fui levando, parece que estamos juntos uma vida inteira, depois sinto como se não o conhecesse de fato, bom, um dia engravidei e casamos.

- Entendi.

.

         Mal terminaram a fala e o relógio que tocava a cada hora cheia deixou que o lugar ficasse preenchido com o som de “O lago dos cisnes”, a melodia tocou inteira enquanto as duas escutavam extasiadas o som que saia do relógio das flores.

.

- Nicolle, essa é a minha última semana em Ilha Verde, Anna e Kayra voltam na sexta e tenho que ir para casa.

- Ah, não acredito, não vou mais te ver?. – Falou esticando a boca como fazia quando criança.

- Vai me ver muito mais do que imagina, estou mudando para cá, comprei uma casa no Tirol, mas, ainda é segredo.

- É um bairro maravilhoso, do lado do nosso...fico feliz, e como estão as noivas?.

- Muito bem, pode acreditar...Hahahahah.

.

Ilhas Seychelles, 08 de julho de 2020

.

- Então meu amor, hoje estamos por sua conta. Senhora Montenegro pode escolher onde iremos.

.

         Ela sorriu, fez algumas ligações e após o delicioso café da manhã saímos de Mahé para ilha de Praslin, pegamos um barco e a viagem durou aproximadamente 1 hora entre uma ilha e outra, a grande embarcação chamava “Isla Negra”, era bem confortável e a dona era uma chilena simpática chamada Carmen, talvez por isso a viagem foi ainda mais agradável, o barco não balançava, fora que alguns drinques e lanches foram servidos enquanto observávamos o mar.

         Já em Praslin alugamos duas bicicletas, uma maneira deliciosa de explorar a ilha, e depois de muito passear paramos no Bonbon Plume, restaurante localizado na famosa praia Anse Lazio, almoçamos de frente ao mar, pertinho das tartarugas que não tinham pressa para nada. Para começar pedimos o Vanilla Coconut Milkshake, uma das coisas mais maravilhosas que bebi na vida, em seguida veio o almoço, o prato chamava La créol, um peixe com frutos do mar, com muitos molho, bisques e curries feitos com ingredientes locais, de sobremesa optamos por Clafoutis, cerejas francesas cozidas no forno, com a massa de creme de farinha, ovos, leite e açúcar, também pedimos o famoso Crème Brûlée, sobremesa clássica francesa super sofisticada, tradicionalmente preparada com ovos, creme de leite e baunilha, que conta ainda com uma suculenta cobertura de açúcar queimado.

.

- Sabe amor, está tudo delicioso, mas, estou com saudade é de uma boa picanha, um pudim, uma Coca-Cola, fora que sinto falta das nossas filhas, dos nossos bichinhos, eu amei esses dias, mas, estou feliz em voltar para casa.

- Quer saber?, eu também, mas, esses dias foram maravilhosos para nós e excelente para as meninas se aproximarem de Júlia. Ah, nem te conto, segundo Amélia ela está enrabichada pela vizinha nova.

- Não duvido, Júlia tem um fogo que meus deuses.

- Como é Anna?.

- Ai amor, é passado, nossa, você ficou com ciúmes?.

- Não!!. – Respondi e estendi a mão chamando o garçom. – quer mais alguma coisa Anna?.

- Não, obrigada, estou satisfeita.

- Lamento! – Em seguida olhei para o garçom e pedi um Dacquoise, sobremesa de origem francesa feita com um merengue de nozes e intercalada com um delicioso creme de baunilha batido, para acompanhar pedi o licor francês Chambord.

- Vai se entupir de doce e álcool para esquecer seu ciúmes.

- Não estou com ciúme.

- É tão mais fácil confessar, esse teu ciúme não tem sentido, não tenho nada com a Júlia a mais de oito anos, faz ideia disso?.

.

         Não satisfeita pedi um drink a base de tequila Pasion Azteca, feita a partir de seiva pura da planta agave azul, fermentada, destilada e envelhecida por seis anos.

.

- Kayra, você não está acostumada a beber, não está vendo que isso não vai dar certo.

- Estou só aproveitando nossa lua de mel meu bem, quer mais alguma coisa?.

- Não, e você também não deveria querer.

- Então vou comemorar por nós duas. – Nem precisa dizer que Anna voltou segurando meus cabelos enquanto vomitava no mar.

.

- Quer beber mais alguma coisa meu amor?. – Ela falou com um risinho entre os dentes.

- Nem pensar Anna, nunca mais quero beber nada na vida.

- Hahahahah, por falta de aviso não foi.

- Me perdoa princesinha.

- Claro amor, não se preocupe, você vai sobreviver.

- A culpa não é minha, o barco está girando. – Falei para vomitar novamente.

.

         Quando chegamos ao hotel tomamos banho juntas, estava com muita vontade de fazer amor, mas, o efeito do álcool ainda estava muito presente no meu corpo.

.

- Cuidado comigo que te pego minha morena gostosa.

- Estou percebendo que vai pegar mesmo...no sono.

- Vem aqui amor, te quero muito minha delicinha.

.

         Ela sorriu, me aconchegando no seu corpo macio cheirando a creme corporal e adormeci em seus braços dizendo “cuidado comigo, que sou muito sagaz”, a última coisa que me lembro de ouvir foi o som de sua risadinha tão gostosa de ouvir.

.

Pedra Rosada, 20 de outubro de 1849

.

         O dia estava lindo quando Afonso estacionou o carruagem em frente ao gracioso sobrado, o coração batia acelerado dentro do peito, não estava aguentando de saudades de Jair, precisava pedir perdão, retomar a relação que o fazia se sentir tão inteiro e feliz.

.

- Bom dia Sr. Afonso, o senhor está bem?.

- O que deu em você homem?, eu hein?, dá licença que quero encontrar Jair.

- Então, se eu fosse o senhor não entrava agora, o Senhorzinho está fechando um negócio, a fazenda está cada dia mais próspera e vieram de longe para comprar o leite das vacas importadas.

- Ora se eu recebo conselho de empregado, faça o favor de carregar essa mala para dentro que eu e o Jair temos negócios inadiáveis para resolver.

- Entendo muito, mas, acontece que esse comprador é um cliente especial e o senhorzinho pediu para não ser incomodado.

- Tire esse risinho da sua cara, um sujeito mal desenhado desse, tem coragem de mamar em onça, agilize se não quer que te quebre todos os dentes, agora vamos, faça o que estou mandando e carregue a mala, só não entrei direto com a carruagem porque vi que trocaram a porteira e minha chave não entrou no cadeado.

- Pois é, mas, quem sou eu?, nada além de um sujeito mal desenhado, ora quem sou para discutir com um senhor tão distinto?, vamos entrando que com certeza o Jairzinho vai gostar de sua visita, eu conheço esse menino desde pequeno, sempre teve um coração tão generoso.

- Guarde seus gracejos para si, e faça o favor de contribuir com o seu silêncio.

- Na hora senhor. - O empregado deixou a mala na entrada da casa grande, abraçando a mulher pela cintura para sorrir e dizer depois.

- É agora que as penas voam pela janela.

- Para com isso homem, porque não segurou o seu Afonso?.

- Tentei, pela santinha que carrego no meu bolso.

- Olha que Deus te vê.

.

         Afonso entrou na sala rústica, e viu algumas roupas largadas na sala, inclusive a camisola rosa, imaginou Jair chorando abraçado a ela e com passos largos correu para o quarto do jovem rapaz.

.

- Jair, o que é isso?, quem é esse homem?, mal sai de sua vida e já está esquentando a cama com outro?.

- Fonsinho, foi um momento de fraqueza, pensei que tinha me abandonado. – Falou saindo de imediato de cima do novo amante, que levantou rindo ao reconhecer a voz de Afonso.

.

- Eu poderia morrer agora, Afonso, o machão de Miraflor brigando por causa de um rapaz, ai que delícia de informação, com certeza vai querer comprar o meu silêncio. No momento eu preciso confessar, obrigado por deixar espaço na cama de Jair, o jovenzinho é uma delícia, a dias que me farto com ele.

- Ora seu nojento, saiba que de mim não vai extorquir nada.

- Você quem sabe Afonso.

- Vá embora daqui agora, era só o que me faltava ser ameaçado por um borra botas como você, o dono de uma quitanda qualquer, casado com uma beata, aliás, acho que ela não ia gostar de saber que seu marido anda se deitando com um jovenzinho.

- Imagine a senhora Cora.

- O nome da minha mulher não vai ficar rolando em sua boca nojenta, Cora é uma santa.

- Santa??, faz me rir, Cora dormiu com a metade dos jovens de Miraflor, todo mundo sabe senhor, como dizem, chifre trocado, aliás, olhando Jair acho que ela ia apreciar essa beleza jovem, pensando bem talvez não, ela  prefere os rapazes até vinte anos, Jair tem muito mais que isso.

- Eu nunca ouvi tanto despautério, minha Cora é uma mulher direita, temente a Deus.

- E você também...além de pederasta ainda é corno, muuuuuuu, aliás, quem faz muuuuu é vaca, melhor ainda.

- Cala a boca.

.

         Jair ao ver a situação se avolumando deu um grito alto desmaiando de nervoso, Afonso e o novo amante se aproximaram assustados.

.

- Ai Fonfon, será que o menino morreu?.

- Cala a boca seu quitandeiro, meu menino vai já levantar, e você vai esquecer essa estrada e da existência dele, Jair é todo meu.

- Isso, cospe no prato que tantas vezes comeu, sou quitandeiro sim, mas, lembre-se que se fartou muitas vezes comigo.

- Isso é passado, te odeio Marcondes.

- Te odeio muito mais, te encontro depois da missa de domingo.

- Tudo bem, agora cala a boca, ele está voltando.

.

         Jair abriu os olhos assustado, espreguiçou perguntando o que tinha acontecido, depois tirou o cabelos escorridos dos olhos para falar.

.

- Me desculpe Marcondes, mas, não posso ficar contigo, Jair...ele é o meu amor.

- Tudo bem, entendo, e pode deixar Afonso seu segredo está guardado comigo, falei porque estava com raiva, a gente se vê na missa.

- Até mais.

- Até, saiba que sei esperar. Adeus Jair...

Fim do capítulo