A primeira coisa que tive ciência quando acordei, foi de como meu corpo doía, me mexi no colchão desconfortável com os músculos doloridos. 

"Por Gaia, quantas vezes ainda vou passar por isso? Acordar depois de algum desastre?"

- Acho que já está na hora da bela adormecida acordar, você anda dormindo demais para o meu gosto. - A voz de Lia penetra minha mente. Um sorriso desponta em meus lábios. - Isso mesmo bonitinha, vamos acordar. 

O vento frio fez meus pelos arrepiarem quando Lia puxou abruptamente as cobertas que protegiam meu corpo. Lia tem o péssimo hábito de fazer isso quando durmo na casa dela, ou quando ela dorme na minha casa, as vezes, parece que ela acorda mais cedo somente para ter o prazer de puxar o cobertor de mim enquanto durmo.

- Bora levantar que sua companheira está toda preocupada com você, a coitada não merece isso não. - Com uma careta me remexo na cama novamente. Quando abro meus olhos, uma Lia de shorts e regata me olha com as mãos na cintura, seu cabelo está preso em um coque despojado. Olho para os lados procurando por Hera, mas não a vejo em nenhum lugar. O quarto não é o de Hera, por isso estranho o ambiente. - Hera está lá em baixo em reunião, e essa é a casa nova de vocês. Adivinha? Na mesma rua que a minha! - Lia da um gritinho batendo palmas. - Está com fome? 

- Acho que sim. - Me sento na cama devagar, além do corpo dolorido e pesado senti minha garganta arder. Olho para baixo vendo meu corpo, ainda vestia a roupa de quando fui dormir: um short de pijama curto, com uma camiseta larga de mangas curtas. Quando morava sozinha, dormir de calcinha e top eram hábitos que não pretendia mudar nunca, no entanto, com a novidade de ter que morar com Hera, e mais um monte de pessoas desconhecidas na casa, meus hábitos tiveram que mudar, pelo menos por enquanto. - Quanto eu dormi dessa vez? 

- Só algumas horas, agora são três da tarde, você dormiu quase o dia inteiro. Miranda já veio aqui duas vezes para ver como você estava, acho que ela quer falar com você. - Lia se aproxima se sentando nos pés da cama.

Escorregando para a beirada da cama testei meus pés no chão antes de ficar em pé completamente, quando fico em pé o mundo gira um pouco e Lia se levanta rapidamente, segurando meus braços para me  apoiar.

- Que merd*. - Resmungo sentindo uma onda de náuseas surgir.

- Ninguém mandou você ficar abusando dos seus poderes assim.

- Estávamos encurralados, não tinha mais o que fazer, além do mais, não fiz por querer, estava com raiva e não sabia que isso ia acontecer.

- De novo...

- É, de novo. - Depois de alguns segundos em pé Lia se afasta, caminho lentamente para o banheiro. - Preciso de um banho. 

- Vou ver se consigo roupas para você e vou avisar sua companheira. 

- Obrigada Lia. 

Dentro do banheiro olho meu reflexo no espelho, mais uma vez olheiras rodeavam meus olhos e bolsas d'água preenchiam o espaço a baixo dos meus olhos. 

- Já estava sentindo saudades... - Digo para o meu reflexo acabado. Sem perder tempo entrei debaixo da ducha apreciando a água quente escorrer pelo meu corpo. A porta se abre abruptamente me assustando e Hera aparece no vão. Ela me olha e entra fechando a porta atrás de si. Meus olhos se fixam em seu pescoço, procurando por alguma marca que o vampiro podia ter deixado, mas a pele de Hera não mostra nenhum hematoma, estava intacta. Tento barrar as lembranças dos últimos acontecimentos, saber que não só Hera, como o Supremo, os irmãos de Hera, e toda a Guarda Real viram o que fiz, me deixa constrangida. 

"Quantas pessoas matei?"

Hera começa a tirar peça por peça de roupa sem tirar os olhos de mim e do meu corpo, desvio o olhar desconcertada. Ouço quando a porta de vidro do box é aberta, segundos depois os braços de Hera me rodeiam, o corpo dela se cola ao meu e solto um suspiro satisfeita. Ergo a cabeça para a ducha de água e Hera põem o rosto em meu pescoço, depositando beijos até minha orelha.

- Você está bem? - Sua voz soou baixa e rouca, me perguntei se sua rouquidão não seria por causa do vampiro que a enforcou. 

Dou de ombros.

- Estou.

- Hum. - É a única coisa que ela diz. Hera deposita uma quantidade de sabonete líquido nas mãos e começa a passar pelas minhas costas. Ela começa uma massagem nos ombros, e aos poucos desce pelas minhas costas parando em minha cintura. Ela pega mais sabonete e espalha pelo meu ventre subindo até os meus seios, mordo meu lábio inferior contendo um suspiro. Hera espalha o sabonete que sai rapidamente devido a água que corria pelos nossos corpos, suas mãos fazendo uma leve pressão em minha pele, apertando minha cintura, e depois apertando meus seios. Com a cabeça inclinada para cima sinto seus lábios em meus ombros dando beijos delicados. Quando pensei que Hera aprofundaria as coisas ela para, e apenas me abraça pela cintura. - Tivemos bastante estragos na alcateia, alguns civis morreram. Lucas e Luís estão trabalhando para tentar acalmar as coisas.

- Está... Todo mundo bem? - Lembrar dos acontecimentos da noite anterior era assustador. Meu coração aperta quando volto a pensar nas mortes que causei. O que mais sou capaz de fazer? A falta de controle sobre meus poderes se tornou uma preocupação, não posso continuar vivendo normalmente, não posso perder o controle dos meus poderes toda vez que me sentir nervosa, com medo ou assustada. O risco de machucar alguém acidentalmente é muito grande, e não quero fazer isso. Não quero ser um risco para ninguém. Perguntar para Hera se todos os Guardas Reais, e toda a Família Real está bem, é a mesma coisa que perguntar se eu machuquei alguém que não fosse um vampiro. Tento controlar a sensação de medo se apoderou do meu coração. Não quero ser um risco para as pessoas que me cercam.

- Sim, todos com exceção dos vampiros estão bem, não que eu me sinta triste por eles. - Hera me vira pela cintura, me colocando de frente para ela, ela segura meu queixo me fazendo olhá-la. - E você também não deve ficar triste pelas mortes deles. 

- Não posso. Não posso não ficar triste Hera, eu matei pessoas, pessoas que muito provavelmente tinham família, pessoas...

- Pessoas que estavam tentando nos matar Lorena.

- Isso me torna igual a eles.

- Você não é igual a eles em nada, eles vieram aqui para nos matar e você simplesmente se defendeu, e defendeu sua família.

- E agora sou uma assassina. - Nunca precisei encarar essa realidade, nunca esperei ficar nessa situação. Matar alguém nunca esteve nos meus planos, o motivo de ter entrado para a equipe de Segurança foi de aprender a me defender de forma que não precisasse matar. Sei que numa situação como aquela se não tivesse feito o que fiz teria morrido, mesmo assim encarar o fato de que não só uma, mas várias pessoas morreram pelas minhas mãos, é aterrorizante, e nada gratificante. 

- Você estava se protegendo.

- É tão fácil para você matar pessoas? - A olho incrédula. Hera somente me encara sem responder. Já sabia qual era a resposta. 

- Tem que ser. - Minha boca se abre em surpresa. Mesmo que já sabendo sua resposta, ainda assim foi surpreendente vê-la falar com tanta naturalidade. 

Permaneço estagnada no lugar a encarando, olhando cada detalhe de seu rosto para ver se encontro alguma coisa em sua expressão que me indicasse não ser totalmente verdade. Sei que Hera não tem escolhas em muitas situações que não seja matar, no entanto, agir por falta de escolhas não significa que a pessoa tenha que gostar, ou não se importar com aquilo que faz.

- Lorena... - Hera passa o polegar pela minha bochecha. O som da ducha fica alto devido ao silêncio em que estávamos. - Sabe quantos anos eu tenho? Tenho quase dois milênios, acredite em mim quando digo que matar, na guerra em que estamos é a única alternativa para viver. Não me envergonho do meu trabalho, pelo contrário, tenho orgulho de defender minha família e minha espécie. E qualquer pessoa que ameasse sua segurança, não terá outro destino se não morrer. Não vou pensar duas vezes antes de matar qualquer um que ofereça risco a você, isso inclui seus pais e qualquer outra espécie. - Hera segura meu rosto com as duas mãos e não desvio meu olhar dos seus olhos amarelos brilhantes. - Ontem fomos surpreendidos por um grupo muito alto de vampiros, e apesar de a casa ser de difícil acesso para qualquer um que tentasse atacar dos muros, não consideramos os abrigos. De onde eu e minha família viemos os lobos estão em maior número e quase nunca somos atacados, lá nosso povo não se preocupa com ataques como o que sofremos ontem, se você não tivesse feito o que fez teríamos sofrido baixas, muitas baixas. Agora sabemos o que esperar nos próximos ataques. Dois milênios é tempo suficiente para perder as esperanças de um mundo melhor, acredite em mim, as coisas só pioram. - Com isso Hera sai do banheiro me deixando melancólica e pensativa. 

Depois de mais alguns minutos refletindo sobre tudo o que Hera disse, chego a conclusão de que independentemente de quanto tempo passe, matar nunca será fácil e natural para mim. Quando saio do banheiro Lia está sentada numa poltrona no canto do quarto mexendo distraidamente no celular, olho a roupa em cima da cama e me surpreendo por ser minha. Era um shorts jeans azul, e uma regata cinza. O Brasil é quente, e em nosso estado dificilmente usamos calças e blusas de frio devido ao clima abafado. Frequentemente no meio da tarde temos chuvas torrenciais, com ventos de até 3km/h. No entanto mesmo com chuvas o calor não cede, as vezes temos algum alivio nas últimas horas do dia, para no começo da noite o calor voltar novamente a nos sufocar.

Saio novamente do banheiro vestida, e Lia me acompanha com o olhar até chegar a cama. Me sento e me encosto na cabeceira, abraçando meus próprios joelhos. 

- Quer conversar? Você e Hera brigaram? Você está com dor? - Sorrio sem nenhum humor. 

- Não, não estou com dor, eu e Hera estamos bem. O problema é que... Matei pessoas ontem, várias... - Um olhar compreensivo e carinhoso toma  a feição Lia, ela se levanta da poltrona em que estava e se aproxima, se sentando perto de mim. 

- Lore... Eles iam te matar, você só se defendeu, não é culpa sua, se eles não tivessem atacado estariam vivos, eles escolheram aquilo para eles mesmos. - Lia diz naturalmente, e fico irritada por suas palavras soarem como as de Hera. 

- Não quero mais fazer isso, nunca mais.

- Engraçado, porque nós treinamos para isso. - Ela me olha curiosa. 

- Não treino para matar pessoas Lia, treino para me defender.

- Foi o que você fez ontem, se defendeu. 

- Não quero matar as pessoas toda vez que me sentir em perigo Lia. 

- O problema Lorezinha é quase 'todas as vezes', não temos opção. - Ficamos em silêncio por alguns segundos antes dela se pronunciar novamente. - Mas também entendo seu ponto de vista, eu no seu lugar também ficaria com peso na consciência, matar é muito... ruim. 

Depois de mais alguns minutos em silencio, Lia se empertiga na cama. 

- Está com fome? Provavelmente você precisa comer.

- Sim, mas não quero ver ninguém agora. 

- Eu busco para você. - Ela pisca charmosamente me fazendo rir.

- Obrigada. - Lia sai do quarto me deixando sozinha com meus pensamentos. Minha marca de nascença pinica pela ansiedade, e sem dó a cutuco para sentir um breve alívio e logo depois voltar a pinicar. Momentos depois Lia retorna com uma bandeja cheia de coisas.

- Não precisava de tudo isso, não estou com tanta fome.

- Eu no seu lugar estaria, ouvi eles conversando lá embaixo que Miranda virá te ver hoje de novo, está ansiosa? - Bufo.

- Não estou muito animada para conhecer ninguém hoje. 

- Compreensível. - Ficamos em silêncio para tomar o café, Lia belisca alguns biscoitos de vez em quando, acredito que só para me fazer companhia. - Sabe, eu quero pedir desculpas por aquele dia da festa ter insistido para você ir, não sabia que era tão grave.

- Tudo bem, eu também não sabia, começou com uma dor de cabeça, e quando fui ver não me aguentava de dor.

- Descobriram o que é? - Enfio uma bolacha na boca para me dar tempo de pensar no que responder. Contar para Lia sobre ser uma híbrida está fora de questão, por mais que queira saber o que ela diria sobre o assunto, só de me imaginar contando que tive que beber o sangue de Elisângela a curiosidade de saber sua opinião some. Quanto menos pessoas souberem melhor, e se Lia algum dia descobrir, só espero que ela entenda o porque de não ter contado. 

-  Não, acho que deve ter sido pelo motivo que você disse, mas não tenho certeza. - Foco meu olhar nos biscoitos em minhas mãos para não olhar os olhos de Lia.

- Deve ter sido outra coisa, você usou bastante seus poderes ontem e está bem até agora. - Sorrio preocupada. Lia é esperta, dificilmente algo passa despercebido por ela, e esse é um dos motivos de não ter estado tão perto dela nos últimos dias, com a minha inexperiência em esconder quando algo me incomoda, logo ela perceberia que alguma coisa estava acontecendo. - Me diz, você e Hera já conversaram sobre a cerimonia de união de vocês? 

Pisco embasbacada e surpresa pela pergunta. A mudança abrupta de assunto me deixou atordoada, e a pergunta em si me surpreendeu. Com tantas coisas acontecendo, me esqueci que uma cerimonia de união é feita quando os companheiros se encontram, e com os problemas que não param de surgir, dificilmente teremos uma cerimonia de união tão cedo. 

"Como pude me esquecer da cerimônia?"

- Na verdade não, por incrível que pareça, eu e Hera ainda não tivemos tempo suficiente para conversar. Acabei de ficar sabendo que ela tem a idade de quase dois milênios, imagina minha... supressa. - A boca de Lia se abre num grande 'o'. 

- Nossa! Que babado! Ninguém sabe a idade certa dos filhos do Supremo, caramba! Dois milênios é muita coisa! 

- Quase... - Tento corrigi-la mas Lia já se perdia em seus próprios pensamentos. - Sim, é. 

- Mas como vocês estão lidando com as coisas, já que ainda não tiveram tempo de conversar? Quer dizer... como...

- Como eu disse, ainda não conseguimos conversar por muito tempo, Hera trabalha o dia todo, quando chega em casa trocamos algumas palavras e dormimos. Para você ter uma ideia, conheci a família dela ontem.

- Nossa. - Lia ainda tinha a boca em 'o'. - Como eles são? Dizem que são muito rígidos e sérios, é verdade?

- Ainda não posso dizer, não fiquei muito tempo com eles.

- Olha pelo lado bom, agora você tem uma família. - Lia sorri, retribuo o sorriso. - Você não parece feliz com isso por quê? - Suspiro e dou de ombros novamente. "Por quê?" é uma boa pergunta.

- É muita informação, estou tentando me acostumar. - Não sei como é ter uma família, e tenho medo de descobrir. Talvez ter uma família não seja tão bom como dizem. 

Lia e eu passamos algumas horas conversando, até ela anunciar que tinha que ir embora, eram oito da noite, ela tinha perdido o jantar com os pais e provavelmente ia escutar quando chegasse em casa, mas Lia não se importa em irritar os pais, diferente de mim, os pais de Lia sequer encostam um dedo nela, e mesmo ela fazendo muitas coisas indevidas, Lia é mimada acima de tudo. Depois que Lia saiu me perguntei sobre Miranda, ela ainda não tinha aparecido, não virá mais? Se for o caso, ficarei aliviada em adiar o encontro, por mais que esteja ansiosa pra encontrá-la e saber se ela tem alguma 'visão' para meu futuro, estou satisfeita de adiar por mais um dia, afinal minha única vontade é ficar sozinha e pensar. 

Me assusto quando a porta do quarto se abre de repente, e Hera entra no quarto com o olhar distante. Ela tira a camiseta que usava a jogando no chão do quarto, ficando somente com a calça e o tope, Hera se dirige a mim. Ela se senta em minha frente e pigarreia. 

- Ia dizer para se arrumar, mas, lembrei que ainda não trouxeram as malas de lá de baixo. - franzo o cenho confusa. Me arrumar? - Vamos passar a noite em outro lugar hoje, só eu e você. - Hera deposita um beijo na minha testa e se levanta. - Já já saímos. - Hera entra no banheiro fechando a porta atrás de si e meu coração dispara a bater.

"Só eu e ela?" 

Suspiro e fecho os olhos. 

" O que será dessa vez?"

Fim do capítulo