Capitulo 1 - A Felicidade é Relativa
Minha pele esquentava e se arrepiava por baixo do moletom, em uma sensação ao mesmo tempo de frio e calor, algo que definitivamente jamais havia sentido, ainda mais durante um beijo. O ar frio daquela noite chuvosa se tornou abafado e meus olhos fortemente fechados demonstravam minha fraqueza e entrega, então torci para que os dela estivessem tão fechados quanto os meus, assim não me veria tão vulnerável. Ainda de olhos cerrados dei um passo para trás enquanto puxava o ar o máximo que conseguia, na esperança de pausar aquele momento e conseguir discernir o que se passava. Podia jurar que a chuva nesse instante também dera uma pausa, a umidade suspensa, aguardando o desfecho. Senti-me tonta e confusa e antes que pudesse abrir os olhos, sua mão decidida em minha nuca me trouxe de volta sem pedir permissão e outra vez aquele turbilhão de sensações inéditas invadiu todo meu corpo, com uma gentileza e ao mesmo tempo vontade tão grandes que me fez franzir as sobrancelhas na tentativa falha de segurar o gemido que nasceu em minha garganta. Lábios macios novamente devoravam os meus, me fazendo pensar por um segundo que talvez ela também estivesse apreciando... ou talvez apenas me punindo?!
Um rompante de razão gritou em mim e enfim permiti que meus olhos se abrissem e tivessem a primeira visão de seu rosto tão próximo. Parei o beijo e automaticamente minha língua traidora buscou resquícios do seu sabor em meus lábios. Senti vergonha. Ela se afastou vagarosamente, como se tomando tempo, e furtivamente acariciou a lateral do meu pescoço enquanto afastava-se de mim e me arrepiava todos os pêlos do corpo. Estivemos abraçadas, enlaçadas e eu com toda certeza não saberia dizer quem tomou a iniciativa. Minhas mãos suavam, as pernas tremiam e meu ventre se contraía em uma inocente queixa pela interrupção. Olhei dentro de seus olhos e o que vi... me fez tomar o próximo passo.
***
22 de Setembro de 2000, Ribeirão Preto – SP
— Manhêêêê!
O grito de Isabella despertou a mulher de seus tortuosos pensamentos e num suspiro cansado levantou-se para “socorrer” a filha no banheiro. A garota completava 10 anos naquele dia e Silvia passara a manhã toda correndo atrás dos preparativos para a pequena festa da menina. Não eram ricos, porém o pouco que o marido ganhava lhes proporcionavam uma vida razoável, tranquila e que de vez em quando lhes permitiam “esbanjar” em pequenos lazeres, como por exemplo a festa da filha. Moravam em um simples sobrado na zona norte de Ribeirão há pouco mais de 4 anos, após ela e o marido juntarem as poucas economias e darem entrada no primeiro lar do casal, pela primeira vez estavam pagando algo que eram deles e não apenas alugado. Eram felizes. Ela não podia reclamar. Bom, era o que pensara até aquele dia.
— Manh...
— Bella! Não precisa gritar! O quê foi de tão grave para dar todo esse escândalo? — Silvia cortou mais um chamado enquanto abria a porta e dava de cara com a filha sentada no vaso.
— Mãe!!! Olha! — A garota esticou a calcinha para frente, expondo a mancha vermelha que cobria boa parte do tecido colorido e cheio de pequenos ursinhos. Seu rosto era um misto de tristeza e vergonha.
— Filha! — Silvia ajoelhou-se diante dela com um sorriso terno nos lábios. Abraçou-a com carinho enquanto limpava uma lágrima tímida e cochichou em cumplicidade. — Pode parecer grande coisa, por que é a primeira vez, mas lembra que a mamãe explicou sobre isso? Pois é, filha... A natureza escolheu essa forma de eliminar do nosso corpo, então é como fazer xixi, só que uma vez ao mês e colorido.
— Mamãe... Mas, bem hoje? A natureza podia ter esperado pelo menos até amanhã. — O biquinho manhoso brilhou no semblante verdadeiramente magoado da menina enquanto Silvia sorria e se levantava para buscar o primeiro absorvente de sua bebê que estava crescendo.
As pessoas não leem mentes! É o que Silvia repetia mentalmente enquanto tentava aliviar a expressão carregada que trazia no rosto ao servir alguns amigos e familiares na festinha da filha, tentava em vão disfarçar o desconforto e torcia para que realmente ninguém pudesse ler o que lhe vinha à mente. O marido acabara de sair para buscar o bolo que atrasaram por conta de um pequeno erro do estabelecimento e a ela ficou incumbida de recepcionar os poucos convidados e entreter os coleguinhas da filha que já se amontoavam no tapete da sala, espalhando alguns brinquedos. Isabella era tão diferente das outras crianças, dos primos... Já havia comentado com a mãe sobre isso, mas Dona Adelaide apenas fizera pouco caso do pensamento. Não saberia apontar exatamente o quê, mas sabia que a filha não era como os demais. Sim, talvez fosse somente um pensamento bobo de mãe de filha única, talvez ela só precisasse de um irmão ou irmã para lhe fazer companhia. O pensamento repentino logo lhe trouxe uma sombra no olhar. Não pôde evitar de olhar a filha que retribuiu o olhar imediatamente, como se houvesse escutado o pensamento da mãe. Silvia desviou o rosto rapidamente e pediu licença aos convidados.
Na cozinha lavou as mãos diversas vezes como se pudesse livrar-se do sentimento ruim que lhe afligia. Flashes do telefonema que recebera antes do almoço lhe angustiavam mais uma vez. Era o terceiro dia de ligações. Sempre no mesmo horário. A voz feminina, lasciva e insolente... Chamando o nome que ela sabia de cor. O nome que repetiu perante à um juiz, quando se casaram.
— Silvia, telefone para você... — A voz da tia soou na cozinha e um piscar foi o suficiente para a mulher limpar uma pequena lágrima e moldar o rosto em uma máscara de neutralidade, virou-se para tia enquanto buscava o telefone próximo à bancada.
— Pronto! — O interlocutor foi direto. Sucinto. Com uma mira certeira e objetiva que não deixou dúvidas para a mulher. Seu marido estava morto. E o soluço infantil do outro lado destoou, confirmando o pensamento de Silvia, que a tia não havia desligado a extensão da sala. Isabella em sua curiosidade infantil havia ouvido, provavelmente, a parte que dizia sobre a morte do pai.
O pai de Isabella falecera em um acidente de carro, segundo os socorristas não houveram testemunhas, a não ser o muro em que o carro se arremessou, em uma velocidade um pouco acima do normal para a via que se encontrava. Seu maior erro foi a ausência do uso de cinto de segurança, não teve chances, uma morte limpa e rápida, com o impacto certeiro de seu tórax ao volante. O pescoço chicoteou e o homem apagou, tendo uma PCR seguida de uma hemorragia no lobo frontal. O bolo de aniversário tivera destino semelhante e jazia espalhado pelo banco do passageiro e carpete do veículo. Infelizmente a pequena Bella não chegaria a assoprar suas velinhas naquele fatídico dia.
***
Uma semana após o velório e Silvia ainda não tivera coragem de falar com a filha, não da forma como sempre gostara. Elas tinham uma relação incrivelmente sincera uma com a outra, não havia um só segredo entre elas. A não ser as misteriosas ligações...
Mais um flash e Silvia pode ouvir nitidamente a voz ácida:
— Ele é meu! Sempre foi, aceite querida!
Ela não entendia quem em sã consciência, perdia tempo fazendo trotes como aquele. Ok, ela não se iludiria assim tão fácil. Sabia que o marido havia se afastado muito nos últimos tempos, mas ela fielmente acreditava que era o trabalho que estava o consumindo. Agora via que o que minava as energias do marido era outra coisa, ou melhor, pessoa. Primeiro traição e depois viúva? Como iria lidar com isso? Ela não merecia! A filha não merecia!
Será que a mulher, possível amante de seu marido, saberia que o mesmo estava morto?! Enterrado e velado, com todos chorando pela perda, enquanto somente Silvia chorava por estar perdendo o marido, mas também por saber que talvez para ele, ela já o havia perdido bem antes da morte?! Isso era algo que ninguém, além dela e da amante saberiam... Deixara seu marido ir em paz, com a imagem imaculada, de bom marido, bom pai e bom filho. E esse era um assunto que ela também levaria para o túmulo.
Antes que pudesse concluir seu pensamento Isabella entrou no quarto de supetão. Os pequenos passos alcançaram a cama e o colo da mãe em um segundo e antes que Silvia pudesse perguntar algo os soluços da menina se fizeram ouvir.
— Meu amor, eu te amo tanto... Eu estou aqui! — A mulher apertava a filha nos braços enquanto inspirava o perfume infantil dos cabelos claros e ondulados. A garotinha chorava inconsolável em mais um episódio de dor. — A gente vai se recuperar minha pequena Bella, prometo!
***
22 de Setembro de 2006, Ribeirão Preto – SP
— Filha, já está pronta? Anda logo que estamos quase atrasadas. — Silvia gritava do portão olhando o relógio de pulso, presente de Fábio. Sorriu ao lembrar-se do momento em que ele colocara o relógio em seu pulso ao mesmo tempo em que sussurrava para que somente ela escutasse no restaurante mais romântico da cidade.
— Para toda vez que precisar conferir a hora... Se lembrar da nossa tarde de hoje.
Silvia se arrepiou novamente, assim como havia acontecido naquela noite. Recordar a tarde esplêndida que tivera com Fábio a fez distrair-se ao ponto de não perceber Isabella a chamando em sua frente.
— ... atrasar de verdade!
— Oi? — Recompondo-se pigarreou disfarçadamente puxando a mão da filha para fora e fechando o portão com chave.
— Estou bonita?
— Mãe, você é a mulher mais linda dessa cidade!
Silvia sorriu para sua própria imagem de quando era adolescente. Isabella era sua cópia perfeita, completava seus dezesseis anos e comemorariam na casa de Fábio, em um jantar mais íntimo. Seu coração deu um pulo. Eles namoravam há cerca de dois anos e pela primeira vez falavam sobre morarem juntos. A expectativa de unir as famílias era no mínimo apavorante... Entre ela e Fábio não haviam quaisquer objeções, porém unir Isabella e a filha de Fábio de dezessete anos, que antes morava com a mãe em São Paulo, mas mudara-se há apenas três dias para Ribeirão, na esperança que o pai controlasse a fase rebelde da garota e focasse nos estudos, era muitíssimo preocupante.
Apesar de Isabella não ser uma adolescente como as outras, ela ainda assim tinha suas ressalvas sobre o namoro da mãe. A menina apoiava e incentivava, porém acreditava com toda sua sabedoria juvenil que era absolutamente desnecessário que elas saíssem da casa onde moravam há anos e fossem morar com padrasto. Contudo a mãe da garota sentia que havia algo a mais naquela recusa, sentia que a filha ainda estava conectada às lembranças do pai, e nas memórias de infância onde os três eram felizes. Esperava poder um dia ver sua filha se libertar daquela dor e experimentar a felicidade plena novamente, a felicidade de como quando se é criança e inocente para entender as intempéries da vida.
— Chegamos! Bella, eu não comentei antes, mas... A filha de Fábio estará no jantar, tudo bem?
— Ué, tudo bem... por quê? — Mexia distraída em algo dentro da bolsa e não percebeu o olhar apreensivo da mãe.
Silvia tamborilou os dedos no volante ponderando se contava de uma vez ou se deixava para depois.
— Na verdade ela vai ficar mais do que um jantar, ela...
— Ei, pensei que não viriam mais!
A voz de Fábio cortou a frase da mulher e ambas saíram do carro para cumprimentar o homem que vestia um avental dobrado da cintura para baixo.
— Humm, tio Fábio cozinhando??? Esse aniversário até que começou bem!
A garota sorria largamente enquanto abraçava o futuro padrasto que tanto gostava. Sentia um carinho enorme pelo homem que libertara sua mãe de um luto que parecia eterno. Ver Silvia sorrir novamente, como uma adolescente apaixonada, deixava Isabella tão feliz quanto se ela mesma houvesse encontrado o verdadeiro amor. Claro que isso não queria dizer que ela sairia de casa para morar ali, isso já estava um pouquinho além do compreensível para ela.
— Feliz Aniversário, Bella!
— Obrigada, tio.
— Boa noite meu amor... — O homem soltava a garota e se virava para Silvia com um sorriso que iluminaria a lua.
E uma sequência de beijos e carícias aconteceu fazendo os olhos da garota revirarem enquanto sorria para a cena dos pombinhos.
— Bubu e eu cozinhamos um banquete para vocês, entrem logo que eu quero dar seu presente também, Bella.
O homem foi entrando puxando as mulheres pelas mãos e antes mesmo que chegassem à porta da sala uma voz profunda, porém muitíssimo debochada soltou:
— Não minta para elas papai, você bem sabe que eu jamais me sujeitaria a cozinhar para suas namoradas...
O silêncio sepulcral que se seguiu foi quebrado pela própria garota que riu com desdém da expressão dos três. Voltou a colocar os fones de ouvido e se entreter com a música alta que tocava em seu mp3.
— Filha, não vai cumprimentar as visitas? — O pai bem que tentou, mas precisou quase gritar com sua paciência próximo ao limite — Micaela!!!
A voz pareceu surtir efeito por que a garota por fim bufou e soltou um dos lados do fone acenando de qualquer jeito.
— E aí?!
— Boa noite, Micaela! — Silvia sorriu terna e ciente de que aquele comportamento de Micaela era mais uma forma de chamar atenção do pai do que qualquer outra coisa.
— Oi...
Um oi tímido e um tanto contrariado saiu da boca de Isabella que de cara antipatizou com a filha do namorado da mãe. Que garota mais insolente! Prepotente! Arrogante! Quem ela pensa que é? E que roupa é essa, afinal? Garota estranha! Isabella já tinha conhecido garotas “fora do padrão”, porém Micaela ia na contra mão de todo e qualquer padrão comumente visto ou aceito na sociedade. Era não só estranha, mas chegava a ser incômodo olhar diretamente para ela por mais de cinco segundos. Não, não era só aparência, a garota possuía sim um estilo mais audacioso, típico paulistano, tanto nas roupas, quanto no cabelo curto e extremamente negro, assim como no jeito de se portar, porém algo além da aparência irradiava da garota, o que não só confundiu a filha de Silvia, quanto a incomodou sobremaneira.
Micaela soltou uma risada de puro menosprezo, e correu os olhos de cima em baixo naquela garota “patricinha”, de vestidinho florido acima do joelho, com sandálias que deixavam pequenos dedos à mostra, as unhas pintadas que fizeram a garota revirar os olhos, e como cereja do bolo o cabelo puxado de lado, que caíam em ondas e que provavelmente deveriam exalar cheiro de alguma fruta adocicada. Uma Caipira!
— Filha ajuda a arrumar a mesa de jantar, por favor?
Micaela pôde ler a súplica nos olhos do pai e mais do que contrariada levantou-se do sofá. Odiava o fato de que o pai simplesmente seguira a vida depois do divórcio com a mãe, mas o amor que sentia por aquele boboca não permitia planos malignos mais audaciosos contra àquela união.
— Eu te ajudo! — Silvia não esperou a resposta da adolescente e se pôs em direção à cozinha junto com a garota, atrás de pratos e talheres.
Enquanto Micaela seguia sua mãe, Isabella virou-se para o padrasto perguntando o que ela tinha de errado, num misto de curiosidade e cautela.
— Quem, a Bubu?! Nadaaaa, ela é só... como posso dizer? Você vai conhecê-la melhor quando vier para cá, ela parece assustadora, mas é uma boa menina. Eu já conversei com ela sobre dividir o quarto com você e consegui convenc...
— O QUÊ?
O choque de Isabella perante a frase de Fábio só não foi mais trágico do que o esbarrão (talvez proposital) que Micaela deu em seu ombro ao passar com os pratos em mãos. Silvia fechou os olhos prevendo o início de uma discussão, mas Fábio foi ligeiro como um gato ao retirar os pratos da mão da filha e tagarelar qualquer coisa em voz alta, enquanto dispunha os pratos na mesa. As garotas se encaravam com os olhos faiscantes.
— Micaela, leve os copos, por favor?
A garota pegou os quatro copos da mão de Silvia sem desviar o olhar de Isabella e em seguida estendeu-os para ela, que olhou desconfiada.
— Leva para mim, por favor? Eu preciso ir ao banheiro! — Levantou a sobrancelha desafiando Isabella a negar o pedido.
Isabella torceu os lábios e quando esticou a mão, a garota soltou todos os copos antecipadamente fazendo com que caíssem ao chão fazendo um som estridente de estilhaços que assustou à todos.
— Desculpa, tio!!!
Isabella se desculpou imediatamente se ajoelhando e recolhendo os cacos do chão. Silvia ajudava a filha, tentando amenizar a situação e Fábio que havia corrido até elas quando o som aconteceu, cochichou segurando levemente no braço da filha.
— Você prometeu...
Micaela apenas deu de ombros e quando tentou sair foi segurada por Fábio que foi sucinto na ordem.
— Ajude!
— Tio, desculpa... eu não... me desculpa! — Isabella tentava à todo custo recolher todos os cacos, enquanto a mãe buscava uma caixa de papelão na cozinha, ou algo que pudesse descartar seguramente os cacos de vidro.
— Bella, não se preocupe! Não foi nada e a Bubu vai te ajudar! — Quase forçou a filha para baixo, que o olhou com cara feia articulando com os lábios um “você me paga” e se dispôs a ajudar a caipira recolher a sujeira, mas apenas por que não esperava que a garota fosse tão lerda, queria dar um susto apenas, talvez houvesse ido longe demais... Fábio sorriu vitorioso indo atrás de Silvia em sua busca pela caixa ou papelão.
Assim que chegou na altura da filha de Silvia percebeu que o que supusera sobre o cabelo da garota, estava correto. O cheiro adocicado impregnou as narinas de Micaela que franziu o rosto inconscientemente. E pensar que vou dividir o quarto com essa garota fresca, inacreditável o que os pais nos submetem! Olhou de relance o rosto parcialmente coberto pelos cabelos castanho claro amarrados de lado e achou que viu uma lágrima em seu rosto. Incrédula e antes que pudesse perguntar algo zombando de seu vitimismo, sentiu uma dor aguda na palma da mão que a fez soltar sem pensar:
— Merda!
Gotas de sangue espalharam-se pelo chão ao mesmo tempo que Micaela fechava sua mão e a levava próximo ao peito.
— Cuidado!
Pela primeira vez Isabella levantou o rosto e com semblante preocupado aproximou-se da filha de Fábio.
— Não fecha! Pode ser que ainda tenha algum pedaço aí... — Puxou a mão da outra com determinação, não deixando espaços para recusa. Com a mão esquerda abriu a palma da mão da outra para cima, e após uma rápida análise, retirou a fita que amarrava os cabelos em um gesto rápido e preciso, como se já tivesse feito aquilo um milhão de vezes. Circundou o tecido branco de pequenas flores azuis ao redor da mão de Micaela que assistia a tudo como se não fizesse parte da cena e que se questionava um tanto confusa, o por quê aceitava sem objeções a ajuda daquela caipira.
— Vamos precisar lavar isso e depois fechar com curativo, talvez tenha que dar pontos, mas pelo que vi não foi tão fundo... Talvez você tenha algum band-aid ou esparadrapo?!
— O que aconteceu???
Os pais de ambas disseram quase ao mesmo tempo quando voltaram com alguns papéis toalha, de improviso. Chocados eles olhavam a cena das duas muito próximas e gotas de sangue espalhadas pelo piso claro.
— Não foi nada!
Algo pareceu acordar Micaela que levantou-se rápido puxando a mão e indo em direção ao corredor dos quartos. Ambos se olharam preocupados, mas Isabella não se deu por vencida indo atrás da garota. Fábio pensou em intervir, mas Silvia foi mais rápida.
— Deixa. Isabella tem jeito para essas coisas... Micaela não vai assustar ela, acredite!
Fábio ainda olhou de relance quando as duas sumiram pelo corredor, depois virou-se suspirando... Talvez a ideia de morarem todos juntos fosse um pouco precipitada, contudo ao olhar dentro dos olhos de Silvia sentiu uma quentura abraçá-lo por inteiro. Enfrentaria o mundo por aquela mulher. Não seria a rebeldia da filha que o impediria.
***
— Me deixa garota!
Micaela esquivou-se de Isabella que a seguia até o quarto, voltou pelo corredor entrando no banheiro e antes que pudesse fechar a porta Isabella entrou quase invadindo e já abrindo a torneira.
— Já te aviso que não sou suas amigas paulistanas que achariam graça nesse seu jeito marrento e irritante. Só tô tentando te ajudar, se sinta grata e apenas me dá sua mão que o quanto antes eu terminar, mais cedo se verá livre de mim e eu de você.
Micaela havia conhecido um sem número de pessoas na cidade mais populosa do país, desde o mais comum até aqueles que desafiavam o próprio limite do “ser/estar”, contudo se sentia demasiadamente intrigada com aquela caipira de vestido com flores azuis que combinavam com seus olhos de princesinha da Disney. O que de fato não fazia nenhum sentido, pois Micaela sempre fora uma pessoa que sabia ler as pessoas de cara, inclusive isso era o que mais a impedia de se aproximar de qualquer um e até mesmo fazer amizades aleatórias. Isabella era um enigma até o momento e Micaela se esforçava para não encará-la mais tempo que o necessário, pois sempre odiara esse tipo de garota e admitia ter um certo preconceito com as patricinhas do interior.
Viu sua mão ser levada até a pia e não disse nada, apenas aguardou enquanto aquela caipira desbocada lavava sua ferida com um cuidado que chegava a ser desconfortante.
— Aiii! — Micaela reclamou em voz alta olhando-a de cara feia.
— Bebêzona! Precisa lavar bem senão infecciona... Pronto! Agora me mostra onde ficam os curativos e terminamos por aqui.
A morena apontou um pequeno armário embaixo da pia e ainda sem dizer nada sentou-se no vaso aguardando, aparentemente paciente.
— O corte foi meio grande, então vou colocar dois band-aids assim, tudo bem? — Nem esperou pela resposta da outra já emendando — Você precisa trocá-lo pelo menos uma vez ao dia e evitar molhar ou mexer muito essa mão... — Avaliava a palma de Micaela deslizando os dedos pelas linhas que terminavam onde começavam os dedos, a pele era lisa e macia — Pode passar essa pomada aqui que encontrei, mas só durante os três primeiros dias e...
— Você é bem mandona, né?
Isabella interrompeu sua fala como se de repente despertasse. O banheiro de tamanho razoável se tornou minúsculo e ela se afastou um tanto constrangida com a proximidade que ambas estavam, largou a mão da morena e virou-se para pia lavando as próprias mãos como se pudesse se livrar de Micaela.
A morena levantou-se visivelmente tranquila com a situação e posicionou-se nas costas de Isabella que a olhou pelo espelho contendo a respiração quando sentiu a proximidade da outra.
— Eu ainda vou decifrar você Caipirinha... Por enquanto te deixo esse aviso: Cuidado com o quê fala e como fala...
— Falo como quiser! — Sua voz saiu um tanto fraca, mas havia coragem em sua fala. Micaela percebeu.
— Então fale! Mas depois não diga que não avisei, quando pagar com a própria boca.
A morena retirou uma mexa castanha que caía sobre os olhos da caipira, sem deixar de olhá-la. Isabella se esquivou do toque com raiva ao mesmo tempo que se virava de frente para morena.
— Não tenho medo de você!
— Mas não quero que tenha, gosto quando as pessoas se iludem, assim fica mais fácil capturar a presa.
— Garota... — Isabella soltou uma risada um tanto nervosa. — Eu acabei de te conhecer, nossos pais infelizmente se amam e provavelmente dividirão a casa e nós seremos as coadjuvantes dessa união. Custa pelo menos nos aturarmos?
— Custa e muito! Minha vida era perfeita quando meu pai estava em São Paulo... Jamais vou aceitar morar nessa cidade atrasada e cheia de gente caipira que se acha! E ainda por cima dividir o quarto com uma delas...! — Cruzou os braços levantando o queixo e Isabella pôde reparar que possuía uma delicada pintinha.
— Eu não tenho culpa do seu pai ter se divorciado da sua mãe e nem tenho nada a ver com o relacionamento dele com a minha mãe... Acredite, eu acho tão “nada a ver” quanto você essa ideia maluca de vir morar todos aqui! Sim, não é só você que está incomodada com isso, aliás soube pouco depois que cheguei aqui, desse plano “adorável” de dividirmos o mesmo teto! Então, te digo o seguinte: Eu, Isabella, sou suficientemente realista para entender que vida de adulto o jovem não se mete! Enquanto ainda dependermos de nossos pais o mínimo que podemos fazer é aceitar o que eles nos oferecem e agradecer por ter um teto e comida na mesa! Eu não tenho como dizer que me agrada sua presença, mas respeito a decisão deles e estarei a partir de hoje contando os minutos que me restam dessa dependência, para me ver livre de você!
Avançou em direção à porta desviando do corpo da morena e antes que cruzasse o batente soltou irreverente:
— De nada pelo curativo!
— Feliz aniversário, caipirinha da boca atrevida! — Retrucou Micaela com divertimento.
A garota bufou atravessando o corredor à passos largos com o cérebro a mil. Odiava aniversários! O destino sempre lhe trouxera infelicidades nesse dia e obviamente que hoje, não havia sido diferente. Desde o falecimento do pai recusava-se a festejar, aceitara aquele jantar por pura consideração à mãe que sempre tentava animá-la nesse dia. Contudo arrependia-se amargamente de ter saído de casa e amaldiçoava o estabelecimento que atrasara a entrega do seu bolo, há seis anos, no dia em que o pai morrera. Se ele não tivesse ido buscar, nada daquilo teria acontecido. Não teria tido uma morte estúpida e ela e Silvia estariam felizes em casa, não conheceria Fábio e ela não precisaria nunca saber da existência daquela garota insolente e arrogante. Odeio aniversários... E odeio você, Micaela!
***
Fim do capítulo
É isso gente rs Primeiro capítulo, primeiras impressões e algumas considerações...
Comentem e desabafem se precisarem, semana que vem (tvz antes) tem mais!
Bjitos
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Gleicy Clara Dourado
Em: 16/07/2021
Mal posso esperar pelos embates entre elas. Kkkk
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patty-321
Em: 13/05/2021
Eita. Começaram os jogos. Já gostei. Não sei de li essa estória no abcles.talvez eu lembre.
Resposta do autor:
AHHHH eu lembro de tu kkkkkkkkkkk Paty123, você foi uma das primeiras a comebtar no conto antigo tb hahaha
No Meu Passado Com Você antigo a Mica ia pra SP, descobria que a mãe tb era gay, enfim... altos rolês XD
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antoniacampos
Em: 06/05/2021
Bom dia! Adorei o capítulo. Vc fez alguma alteração na história? Lembro de forma diferente mas também posso está confundindo rsrs
Resposta do autor:
Oiiis! Hahaha Sim, alterei tudo ><! Eu adoro as personagens, mas foi inevitável, queria explorar uma outra dimensão sabe rs
nhaaa obrigada por comentar ??
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