Completa.
Marina concordou em me dar uma semana de férias adiantadas e estender a suspensão dos ensaios em mais alguns dias para que eu pudesse ajudar Juliana na preparação da viagem. Porém, mesmo estando 24 horas por dia com ela, o nosso tempo juntas passou feito um foguete.
Quando Juliana entrou naquele avião, fui tomada por uma tristeza que eu nunca havia sentido. Pela primeira vez não era quem estava partindo. E só para constar: odiei a sensação de ficar.
Ao contrário dos dias com ela, os meses agora se arrastavam. A minha sorte era poder contar com os ensaios cada vez mais intensos que exigiam total foco e dedicação, e me deixavam com pouco tempo para pensar na saudade que eu sentia a todo instante.
Aparentemente eu havia desenvolvido uma incrível carência noturna, então Rebeca, meus irmãos e até meus avós colocaram-se a disposição para dormir comigo. Graças a esse revezamento de forças consegui chegar à noite de estreia sem passar nenhuma noite sozinha.
Subir naquele palco foi, sem sombra de dúvidas, a melhor experiência da minha vida. O espetáculo era perfeito e parecia ter sido desenhado especialmente para mim. Cada movimento no tecido exigia além da habilidade, toda minha paixão. Era como se eu houvesse me preparado a vida inteira para aquele momento. Depois de tudo que vivi no Esperanza com o Magno, eu encarava aquelas noites como um renascimento.
Foi incrível contar com o apoio minha família, das crianças da Lá Fée e inesperadamente até mesmo da equipe do hospital que cuidou de mim quando estive internada.
Ao final de cada apresentação, eu recebia abraços de artistas, enfermeiros, crianças imigrantes, avós e centenas de pessoas que de alguma maneira se identificavam com a emoção da minha arte. Noite após noite eu sentia a realização crescendo em mim, eu não tinha dúvidas de que estava vivendo o meu destino. O sonho da minha vida.
A parte triste era chegar em casa e não encontrar Juliana. A parte feliz? A cada dia sua volta estava mais próxima. Ela assistia todos os vídeos das minhas apresentações e aproveitávamos nosso tempo livre em ligações que duravam horas. Eu a atualizava de cada detalhe da vida no Colombo e ela me contava animada sobre sua jornada de fotógrafa naquele lugar maravilhoso.
Apesar da saudade, tudo parecia estar correndo bem para nós. Até que...
Ao entrarmos no último mês de apresentações, fomos surpreendidos com a notícia de que uma doença causada por um vírus se alastrava pelo mundo. Ainda sabíamos pouco a respeito e com o passar dos dias a apreensão também foi se difundindo. Coronavírus. O nome responsável por muitos dos nossos próximos pesadelos.
Marina e eu imploramos para Juliana voltar ao Brasil, ela milagrosamente aceitou nosso pedido sem fazer nenhuma teimosia. Foi difícil para ela abrir mão do final do curso, mas naquele momento suas prioridades eram voltar para casa e sobreviver. A maioria dos países estavam com as fronteiras bloqueadas, voos cancelados, aeroportos fechados e de repente tínhamos um grande problema pela frente.
Sua jornada para casa envolvia muitas escalas, quarentenas em hotéis, noites em hospitais esperando o resultado do teste para poder embarcar, enormes filas nos aeroportos, caixas de máscaras e litros de álcool em gel.
Em poucos dias a situação ficou bem pior do que imaginávamos e a previsão era de que o número de casos explodisse no Brasil. Para sobreviver aos próximos meses precisávamos de um plano. Preocupada com as crianças da Lá Fée e com os artistas itinerantes, Marina se propôs a transformar a arena de treinamento em um centro para receber doações e assim criamos uma plataforma de cadastro para distribuir mantimentos nos pequenos circos que com o avanço da pandemia não teriam outra alternativa a não ser fechar as portas.
Enquanto isso, faríamos uma última apresentação antes de termos nossas atividades suspensas para entrarmos em isolamento social.
— Pessoal, hoje é o encerramento do nosso lindo espetáculo e eu não poderia deixar de dizer o quanto estou orgulhosa de cada um de vocês — Marina fazia seu habitual discurso motivacional antes de entrarmos no palco. Diante das circunstâncias, esse havia sido tomado por um clima diferente. — Especialmente de você, Gabriela. Nos últimos meses fomos inspirados por sua coragem, força e talento. Receba os agradecimentos, em nome da nossa equipe.
Respondi com um aceno de cabeça, visivelmente emocionada. Conquistar o respeito de Marina era a realização de um dos meus maiores sonhos. Trabalhar ao lado dela havia sido uma experiência extraordinária.
— Você está bem para subir hoje? — Renata aproximou-se enquanto eu me alongava. — Parece meio dispersa.
— É a última noite da temporada e eu quero muito fazer isso, mas estou preocupada com a Jú, não sei se consigo subir lá e esquecer tudo. Não com essa situação.
— Gabs, a Juliana está bem, está voltando para casa. Provavelmente ficou sem sinal, por isso as mensagens não estão chegando.
O último contato feito com Juliana havia sido no dia na manhã do dia anterior, enquanto ela aguardava o resultado de mais um teste para embarcar em um ônibus no Paraguai, um dos únicos países que ainda mantinha a fronteira aberta com o Brasil.
— Se algo ruim tivesse acontecido já saberíamos — minha irmã sabia bem como me animar. — Quando ela conseguir se comunicar, vai entrar em contato.
— Você está certa! O melhor que posso fazer hoje é continuar focada. E agora está em cima da hora, não vamos encontrar alguém para me substituir, então eu vou subir.
— Tem certeza? A Mari pode entrar no seu lugar se não estiver confiante.
— É muito estranho ouvir você chamando minha chefe, que por acaso é minha sogra, por um apelido, sabia?
— Ela é minha namorada, então é normal — Renata fez questão de me lembrar enquanto eu fazia uma careta. — Acostume-se com isso!
— Ok! Vou me preparar para entrar. Se tiverem qualquer notícia, não importa onde eu esteja, me avise, ok?
— Não, Gabriela — Marina apareceu de supetão, me dando um susto. — Se você entrar naquele palco só vamos te tirar de lá quando o espetáculo acabar. Já conversamos mil vezes sobre isso: não colocamos sua segurança em jogo. Se sua cabeça estiver em outro lugar que não seja aquele tecido, subir não é uma opção. Eu sei que te treinei bem, então essa é uma escolha sua, confio em você para me dizer a verdade.
— Eu vou — respondi após alguns minutos reflexivos. — Esse encerramento é muito importante para mim.
— Se tivermos notícias te atualizaremos no instante em que você descer, eu prometo — Renata me deu um abraço enquanto eu me dirigia para a lateral do palco. — Gabs, a Juliana sabe se cuidar, fica tranquila, logo ela estará aqui e tudo isso vai passar.
— Certo — respondi confiante. Eu precisava acreditar.
Centenas de horas de ensaio repetindo as mesmas cenas podem fazer parecer que meus movimentos sejam automáticos, mas a verdade era que a cada noite, a vibração da plateia, os olhares lançados em minha direção, as expressões nos rostos do público, cada simples detalhe, faziam com que todas apresentações fossem únicas.
Para subir no palco, Marina não pedia que eu me desfizesse das minhas emoções, pelo contrário, ela havia me ensinado o difícil processo de transformá-las em arte e foco, transmitindo paixão e ao mesmo tempo segurança. E o encerramento não poderia ter sido diferente.
Eu havia saído de um pequeno circo tradicional familiar e agora encerrava minha primeira turnê em um dos circos mais famosos da América Latina. Quando retornei ao solo para finalizar o ato, toda minha trajetória para chegar até ali passou pela minha mente, fazendo meus olhos se encherem d’agua. E nesse momento, tomada pela emoção, avistei Juliana me aplaudindo de pé na primeira fileira. Agora tudo estava perfeito.
O espetáculo ainda não havia acabado, então olhei para Marina ao lado do palco e com um aceno de cabeça ela me autorizou a correr até Juliana.
— Você foi maravilhosa, Gabi. Ainda bem que cheguei a tempo de te ver de perto. Sua apresentação me deixou arrepiada! — ela disse assim que me joguei em seus braços.
— Você está bem? Por que não me avisou que estaria aqui? Como chegou? — disparei a perguntar, sem deixar que ela falasse. Ao sentir seu cheiro e sua pele tocar a minha, eu me dividia entre um choro aliviado e um riso nervoso. — Você não pode sumir desse jeito!
— Perdi meu celular na rodoviária do Paraguai e como havia acabado de fazer o teste, não quis arriscar sair para comprar outro. Cheguei hoje à tarde em São Paulo, repeti outro teste, e assim que peguei o resultado corri pra cá. Eu torci tanto para dar tempo de conseguir te ver, nem acredito que foi possível.
— Ai, Ju! Você está mesmo aqui!
— Sim, queria ter chegado antes de você subir para desejar boa sorte, pelo menos consegui pegar a abertura. Fiquei lá atrás para não correr o risco de te desconcentrar, mas quis ver esse final de perto e me aproximei para não perder nenhum detalhe — Juliana limpava minhas lágrimas enquanto falava e eu só conseguia pensar no quanto precisava daquela garota e no medo que tive de perdê-la.
— Onde estão suas fotos? Quero ver todas! Você está bem mesmo? Vamos para casa! Tenho que dormir e acordar ao seu lado para ter certeza de que é mesmo real. Não acredito que você está aqui!
— Ei, o que está acontecendo com você? Geralmente sou eu quem falo sem parar enquanto você me manda respirar.
— Esses dias sem notícias me deixaram muito aflita. Tive tanto medo de você não conseguir voltar para casa.
— Eu também, mas estou aqui agora. Respira — era estranho ouvi-la usar aquele tom de voz tão calmo, enquanto em me descabelava sem querer soltá-la. — Vamos passar por isso juntas e vai ficar tudo bem, ok?
— Promete?
— Prometo.
Ambas sabíamos que ela não tinha o poder de me prometer nada enquanto uma pandemia desenfreada se alastrava pelo mundo, no entanto, sorri satisfeita, porque tê-la ali comigo, disposta a enfrentar o que viria era tudo que eu precisava naquele momento.
Finalmente eu estava completa.
Fim do capítulo
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kasvattaja Forty-Nine
Em: 23/04/2021
Olá! Tudo bem?
Nossa! Que bom que as nossas meninas terminaram juntas ''para o que der e vier''. O momento é assustador e torna-se mais ainda com malucos pilotando a nossa ''nave mãe''. Fazer o que, cada um tem o piloto e comissários de bordo que merecem.
É isso!
Post Scriptum:
''Três coisas devem ser feitas por um juiz: ouvir atentamente, considerar sobriamente e decidir imparcialmente. ''
Sócrates,
Filósofo ateniense do período clássico da Grécia Antiga.
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