Capitulo 1 - A corrida
Naomi
Seis horas da manhã. Lá estávamos nós preparados para a largada de uma prova de 10 km. Naquele dia eu tentaria meu recorde pessoal naquela distância e, quem sabe, um pódio na categoria, ou até mesmo na classificação geral. Sim, era ambiciosa, sempre fui, em absolutamente tudo o que faço.
Desde que voltei a correr nunca me senti tão bem preparada para me desenvolver, superar barreiras, ultrapassar limites, descobrir o meu corpo e minha potência. Sempre gostei de viver intensamente, me jogar no desconhecido, me desafiar. Minha competição nunca foi com as outras pessoas, mas sim comigo mesma. Um senso tão grande de urgência em desenvolver todas as habilidades possíveis no menor tempo possível. Essa sou eu, intensa até a raiz do cabelo.
Tenho 30 anos, moro em São Paulo há cinco. Após terminar a faculdade de engenharia, mudei para tentar a sorte na capital. Meu sonho sempre foi desenvolver uma carreira de sucesso, ter um patrimônio consolidado aos trinta e uma família formada. Não estou exatamente no patamar onde imaginava, mas quem está, não é mesmo? A cada dia as pressões sociais são maiores e parecem sugar até a última gota da nossa coragem, energia, fé na vida, fé em nós mesmos.
Apesar disso, não posso reclamar, já alcei voos muitos maiores que a maioria das pessoas da minha idade. Sou servidora pública federal em um tribunal, sou gestora de uma unidade com mais de 20 pessoas e sinto que meu caminho na gestão pública está só começando. Ainda não conquistei o grande patrimônio que imaginava, mas já tenho meu carro dos sonhos, faço as viagens que desejo e moro em um local agradável, numa região nobre da cidade. Escolhi viver de aluguel, por enquanto, para poder me dar ao luxo de viver na zona que eu mais gostava da cidade.
Quanto a relacionamentos, não moro sozinha, sou mãe de dois cachorros junto com a minha noiva. Dividimos a vida, casa, sonhos, planos há 5 anos e tenho plena certeza de que tudo que almejava em um relacionamento aos trinta eu já conquistei. Já tenho a minha família e a construí ao lado de uma pessoa que admiro e amo.
Sempre soubre que era lésbica, sei disso desde que nasci. Ao longo da minha infância tive sinais disso, como uma paixão pela irmã do namorado de uma prima, 15 anos mais velha que eu. Aqueles amores platônicos que te fazem pensar o que há de errado com você, sabe? Mais tarde, as implicâncias com uma certa menina na escola me mostraram que não era por pura diversão, era para chamar a sua atenção. Chamar a sua atenção porque? Porque eu gostava dela de uma forma diferente.
Ao longo da adolescência e início da vida adulta, ainda fiquei em cima do muro. Horas namorava homens, em outras mulheres. Tudo dependia do momento e das pessoas que cruzavam o meu caminho. Efetivamente me assumi lésbica somente no último ano de faculdade, onde deixei de fazer questão de esconder quem eu de fato era. Nunca mais fiquei com homens e passei a aproveitar todas as oportunidades que apareciam de conhecer garotas novas.
Em meio a festas e momentos intensos de descontração na reta final da faculdade, conheci minha noiva, Fernanda. Ela é alguns anos mais velha que eu, cinco para ser mais precisa, o que foi, de cara, o que mais me atraiu nela. Sempre tive um “fetiche” por mulheres mais velhas. Tudo bem que ela não é tão mais velha assim, mas naquela época a vi com mais tesão justamente por ser diferente das meninas da minha idade com quem eu costumava me envolver. Não demorou muito e já estávamos namorando. Dois anos depois ficamos noivas e passamos a morar juntas. A minha morena de olhos azuis é tudo pra mim.
Agora são 06:15, finalmente será dada a largada. Estou alinhada com algumas colegas da assessoria a qual faço parte. Passei muito tempo treinando sozinha, então não as conhecia muito bem. No geral eram mais velhas, héteros, falavam sobre filhos, procedimentos estéticos, fofocas das pessoas do grupo de corrida, enfim, nada que me agradasse ou fizesse parte do meu mundo. É claro que elas não eram só isso, mas estes eram os assuntos que ouvia sempre que me aproximava e por não achar nada interessante, na maioria das vezes ficava na minha.
Quanto ao interesse pela corrida, todas tinham grandes e audaciosas metas. Correr uma maratona era quase unânime, a maioria na verdade até já tinha corrido, eu ainda estava atrás desse sonho. Por incrível que pareça, essa é a primeira vez que correrei 10 km, sempre corro meias maratonas e não me interesso muito por provas menores. Notoriamente é a ambição falando mais alto, tornando provas menores desinteressantes. Enfim, depois de um tempo afastada por conta de uma lesão, tornei-me mais humilde. Parte desta tentativa era correr provas menores como esta.
A prova iniciou. Comecei de forma cadenciada, acompanhando o ritmo das colegas de equipe. Aquela linha de mulheres vestidas igual tinha alguma imponência. A assessoria era a mais famosa do estado e tinha uma boa reputação nacional por ter muitos atletas amadores de alto nível e que conquistaram excelentes marcas nas maiores provas do Brasil e do mundo. O clima estava fresco, o corpo sentia o vento gelado batendo nas primeiras passadas daquela manhã do final de fevereiro. Nessa época, apesar do dia começar cedo, já é comum as manhãs serem mais fresquinhas, anunciando que o outono se aproxima.
O ritmo começou a aumentar a partir do segundo quilômetro. O corpo já estava quente e a boca começava a secar. Nos ouvidos o som predominante era a música agitada que vibrava meus tímpanos. Não sabia correr sem música, apesar de amar ouvir o barulho das minhas passadas, evitava ao máximo ficar sem som em provas porque o som das pessoas arfando ao meu redor me deixavam ansiosa. Sim, tem muita gente que corre gem*ndo o tempo inteiro. Parece que estão morrendo.
No quilômetro cinco eu já acelerava. Meu pace já estava abaixo dos 5:15 minutos por quilômetro, meu corpo já estava quente o suficiente, toda a musculatura estava solta e meus pés já eram impulsionados de forma mais ágil toda vez que tocava o solo. Corri de peito aberto, curtindo a sensação do suor escorrendo pelos meus cabelos, passando ao lado dos olhos, encharcando as minhas costas. Muita gente acha nojento suor, eu acho libertador. Quando suo, é como se tirasse do meu corpo, da minha alma, tudo que é ruim e não merece lugar em mim. Tudo que precisa ir embora, sentimentos, sensações, tensões, se esvaem com o meu suor.
Completando a primeira volta, de duas no mesmo percurso, senti que agora minha turma já havia ficado para trás. Acelero mais a passada, orgulhosa do meu desempenho, sabia que conseguiria bater o meu recorde naquela distância. Continuava firme e determinada, passando por várias pessoas ao longo do caminho, deixando homens e mulheres para trás, e a cada pessoa que ficava pelo caminho aumentava a sensação de força de potência.
Faltavam dois quilômetros para acabar a prova. Algumas pessoas já caminhavam sem aguentar o ritmo ou o calor que agora começava a emanar do asfalto. O sol já brilhava e o calor veio com tudo. Adorava o sol batendo na minha pele, então para mim era mais um impulso aquela sensação. Sou morena, meu corpo atrai o calor, meu bronze é dourado e só o bafo é o suficiente para deixar o brilho da minha pele em dia.
No último quilômetro, a euforia toma conta do corpo quando começo a passar por pessoas conhecidas, a maioria da assessoria. Os gritos de incentivo aumentam meu foco e determinação. Ouço agora pessoas urrando com o esforço da reta final. Não vou mentir, não estou plena, acabei apertando mais o ritmo do que de costume, saí da minha zona de conforto, então estava sendo difícil pra mim também. Ouço passadas rápidas se aproximando, parece que alguém passará como um raio por mim a qualquer momento. O som das passadas aumentam e, repentinamente, o ritmo estabiliza e sincroniza com o meu. Sinto que o corpo emparelha com o meu e estou sendo observada. Olho para o lado e o que vejo é um sorriso lindo de uma menina de olhos grandes, verdes, loira com uma boca carnuda, linda. Ela veste a roupa da minha assessoria, mas nunca a vi antes, ela sorri pra mim e fala palavras de incentivo, diz que continuará ao meu lado. Não me importo, retribuo o sorriso, também a incentivo com palavras e seguimos os metros finais juntas, em silêncio, na mesma passada, na mesma vibração.
Faltando cerca de 400 metros para a linha de chegada ela me pergunta com uma cara de desafio qual era a minha categoria. Respondi que era 30-34 anos, ela sorri mais.
- Que bom. Não precisarei morrer pra tentar chegar antes de você. Sou 25-29.
Sorri de volta. Ela estava competindo comigo.
Nos 200 metros finais ela me puxou pra um sprint final, agora era tudo ou nada, não havia mais competição somente a sede por uma chegada estonteante, uma chegada vigorosa de orgulhar a nós mesmas e admirar aos demais. Seguimos aumentando o ritmo, mais forte e mais forte, juro que quase fizemos um treino de tiro curto naqueles últimos metros. Chegamos juntas, mas senti que ela freou no final. Poderia ter chegado na minha frente fácil. Não entendi porque não o fez, mas achei legal da parte dela. Ela estava encharcada de suor, passou a linha de chegada, pausou o relógio e imediatamente se abaixou, apoiando as mãos sobre o joelho, totalmente ofegante. Segundos depois, endireitou o corpo, arrumou os cabelos em um coque, limpou o suor que escorria pelo seu rosto com a própria camiseta e veio em minha direção com um sorriso vitorioso. Sorri de volta e senti o seu calor quando chegou próximo a mim, estendeu as mãos para um cumprimento e um rápido abraço.
- Parabéns! Conseguimos. Meu recorde hoje. - falou animada me encarando.
- O meu também! Valeu pelo impulso final, já não manteria o ritmo por mais muito tempo. - Ela sorriu mais ainda.
- Não precisa agradecer. Na verdade, você foi um incentivo pra mim. No início da prova estava mais atrás do grupo de meninas da assessoria. Quando vi que você disparou, virou meu ponto de referência. O seu ritmo puxou o meu. Meu objetivo virou chegar em você. - entregou rindo de forma divertida.
- Você estava competindo comigo. Por isso, perguntou da categoria. Que feio! - Brinquei.
- Ahh. Não estamos na mesma e como a faixa etária 30-34 geralmente tem as melhores atletas, possivelmente me sairei muito bem na minha.
- Agora nos resta esperar. - Respondi com um sorriso. Coloquei minhas mãos na cintura e segui em direção a tenda da assessoria.
Chegando lá recebemos os cumprimentos dos colegas e professores que estavam por ali. Aparentemente chegamos poucos minutos atrás das primeiras colocadas no geral, então realmente fomos bem. Da assessoria havíamos sido as melhores, junto com uma atleta que sempre luta pelo primeiro lugar em todas as provas.
Tirei minha blusa, ficando só de top. Peguei uma toalha e fui para uma maca receber uma massagem. Aqueles dez minutos de massagem pareceram dez segundos porque tudo que é bom passa rápido. Apesar de durar pouco tempo, foi extremamente relaxante. Com certeza ajudaria na minha recuperação muscular. Durante todo o tempo fiquei com os olhos fechados, poderia jurar que dormiria facilmente se não fosse o desconforto em alguns pontos que eram apertados. Algumas vezes abri meus olhos e, em todas, peguei-a me encarando. Ela estava sentada próximo a algumas pessoas da assessoria. Bebia um isotônico e não tirava os olhos de mim, mas desviava toda vez que a “flagrava”.
A massagem terminou, peguei minhas coisas e fui procurar pela minha noiva. Ela sempre me acompanhou nas provas e era a minha fotógrafa particular. Estava ansiosa para encontrá-la quando sinto me puxarem pela camiseta.
- Ei, saiu a lista. Vamos ver? -Era a menina que até agora eu não sabia o nome. O rosto ainda estava vermelho como um tomate. Os olhos verdes brilhavam contra o sol. Simplesmente linda.
Fernanda poderia esperar mais dois minutos. Dei meia volta e segui com ela para o local onde estaria a lista com a classificação geral. Chegando lá, primeiro achamos o seu nome, Isabela, ela foi tão bem que pegou pódio. Primeiro lugar na categoria. Bati palmas pra ela e seguimos a procura do meu nome.
- Que vergonha, não tinha me apresentado ainda. Nem sei seu nome. - Me olhou sorrindo sem graça.
- Naomi.
Ela sorriu e seguiu a procura do meu nome. Era mais alta que eu, então, em meio a tanta gente buscando pelos seus nomes, era mais fácil ela procurar. Segundos depois voltou para perto de mim balançando o celular. Ela tirou uma foto da folha e veio com a tela estendida para que pudesse ver. Consegui meu RP e também fiquei em primeiro na categoria. Dei um gritinho contido em comemoração e ela começou a pular e meu abraçou, dessa vez mais apertado e demoradamente.
- Amor, Nai.
Ouvi aquela voz conhecida chamar por mim. Era a minha noiva. Soltei a loira e virei apressadamente para Fernanda, ansiosa para contar o resultado. Caminhei rápido em sua direção, vi que estava enciumada por ter me visto abraçada com uma estranha, mas não me importei, depois explicaria. Assim que a alcancei beijei a sua boca e falei sobre o meu resultado na prova. Ela me abraçou feliz sem se importar com o meu suor.
Quando nos soltamos virei para chamar Isabela. Estava parada com um sorriso no rosto nos olhando. Pareceu não se importar por termos nos beijado, fiquei aliviada, ela não era homofóbica. Chamei para apresentá-la a Fernanda.
- Amor, a Isabela é colega de assessoria. A Fernanda é a minha noiva - falei olhando para a loira.
- Prazer, Isabela - respondeu Fernanda já com o semblante normal e simpática, como sempre.
- Prazer, Fernanda e parabéns Naomi, nos vemos no pódio. Vou voltar pra tenda, tá quente aqui no sol. - respondeu abrindo um sorriso e saindo rapidamente em direção a tenda da assessoria.
- Desde quando vocês se conhecem? Nunca tinha falado nela. - perguntou Fernanda.
- Desde hoje. Terminamos a prova juntas. Nunca a tinha visto. Você sabe que eu não interajo muito com o pessoal.
Fernanda não falou mais nada. Sabia que ela tinha ficado mexida com a estranha. Não tinha mesmo o hábito de interagir muito ou ficar nos grupos. Minhas conversas, em geral, são curtas e aleatórias. Não tinha nenhum amigo no grupo, somente conhecidos. Também nunca fiz questão de participar com frequência dos treinos em grupo, então entendo o fato de Fernanda ter achado estranha a minha interação com aquela menina. Até eu achei. Além do mais, a menina era loira e muito bonita. Ela sempre soube da minha queda por loiras. De todo modo, isso não quer dizer que ela representaria qualquer risco à nossa relação. Esperava que Fernanda tivesse plena noção disso.
Fim do capítulo
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Anny Grazielly
Em: 15/04/2021
Rapazzzzz... só observando tudo isso...
Resposta do autor:
Oi Anny,
Não apenas observe, comente também pra eu saber o que você está achando haha.
Abraço!
patty-321
Em: 05/03/2021
Esse mundo das corridas conheço e amo. Correr é viciante, comecei em 2013, já corri meias maratonas e são Silvestre, várias vezes. Naomi, naomi.
Resposta do autor:
Oi!
Que bacana! Correr é sensacional.
Não vejo a hora de podermos voltar a participar de provas oficiais.
Que legal ter corredoras acompanhando. =)
Abraço!
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Cma24
Em: 04/03/2021
Ahhhh!
Desculpe-me ter sido injusta com a minha impressão em relação à Naomi.
Não quis dizer que ela é uma destruidora de corações (Ainda!) rs
Mas entendi que ela está ocupada demais com a carreira e planos dela. Com isso, deixou a relação com a Fernanda um pouco de lado e acha a Isa inofensiva e boba. Aliás, será que acha ou tá querendo se convencer sobre isso?
Acho que em breve saberei!
No fundo, essas personalidades fortes só aguçaram mais a curiosidade pelo desenrolar da história.
Resposta do autor:
E acabou de dar spoiler no primeiro capítulo da história.
Aguçando a curiosidade de quem pode chegar aí também haha. ; )
Abraços!
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Cma24
Em: 18/02/2021
Olá! Adorei o começo da história, principalmente porque me lembrou de quando me mudei para SP e corria.
Aguardando ansiosamente os próximos capítulos.
Resposta do autor:
Oi! Que legal! Correr é vida. Se não corre mais, nunca é tarde pra voltar hein.
Espero que continue acompanhando.
Abraço.
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