CapÃtulo único
A porta bateu com tudo atrás de Mirian e seu coração se comprimiu naquele minuto. Mas tudo o que sentia passava longe de ser angústia, tristeza ou medo, ao contrário, Mirian sentia-se livre. Pela primeira vez em tantos anos sentiu felicidade e alívio. "Acabou, finalmente" pensou. Ainda que soubesse que a jornada percorrida, a partir dali, não seria fácil, ao menos seria... Sincera. Fechou as mãos com força em torno da alça da mala, respirou fundo, segurou na mão de sua única filha, e parceira, e foi embora.
A paisagem passava como um borrão para Mirian que tinha a cabeça encostada no vidro do trem. Seu olhar pairava sob algum ponto que não enxergava, estava imersa em pensamentos que vislumbravam a possibilidade de ser quem era sem medos ou receios. Apenas ser. Luisa olhou a mãe de soslaio quando notou algo que há muito não via: um sorriso. Notou que a mãe tinha a face resplandecente, em seus lábios um sorriso confiante que não revelava dentes denunciava toda a expectativa positiva a respeito dos rumos daquela nova jornada em suas vidas. Desde que a mãe a havia contado a verdade sobre si, Luisa, acumulava perguntas e inquietações que não sabia como trazer à tona. Imaginar a mãe vivendo dezessete anos numa mentira, infeliz, se sujeitando aos caprichos do pai e da avó por medo da verdade era sufocante. Sabia que em seu lugar não aguentaria mais de um ano. Não aguentou esperar dois dias para terminar o namoro com Jonas quando se viu apaixonada por Nicolas, aguentar dezessete anos dentro de um casamento fracassado emocionalmente, ainda que bem sucedido financeiramente, era algo fora de questão.
Luisa esticou o braço sobre o colo da mãe para tocar sua mão. “Estou muito orgulhosa de você, mãe.” Mirian desencostou a cabeça do vidro para encará-la e se emocionou. Mirian conhecia a filha que tinha e sabia que revelar seu segredo mais íntimo não iria afastá-la, no entanto, imaginar que contar sobre seu casamento forçado e sobre todo o resto de sua vida afetiva iria aproxima-las era como um sonho utópico, se soubesse que teria dado tão certo, sem sombras de dúvida, a verdade teria vindo à tona antes.
“Eu também, Lisa… Eu também…” respondeu após beijar a testa da filha e voltou a encarar a paisagem.
A casa nova era bastante espaçosa. Não tão luxuosa como a anterior que tinha quatro quartos, mas para a nova realidade delas, dois seriam o suficiente. Um ficava no primeiro andar, enquanto o outro era uma suíte no segundo andar. As cortinas rendadas da sala permitiam que o sol invadisse o espaço como uma meia luz, dando um ar muito aconchegante ao espaço. A cozinha era decorada por ladrilhos brancos repletos de girassóis desordenados. Eles provavelmente deveriam estar todos apontando para uma mesma direção, mas o responsável da obra pareceu não julgar necessário que eles estivessem alinhados, ou talvez, eles tivessem sido pensados para parecerem propositalmente desordenados. Mirian olhava para um ladrilho específico, com uma rosa vermelha no centro, que destoava dos girassóis amarelos e pensava em todos os anos que sentiu-se destoante de suas amigas e familiares, desencaixada, quebrada… Mas naquele momento conseguia ver beleza em si, como aquela rosa vermelha que se destacava na parede, via-se tão bela quanto os girassóis.
“O quarto de cima é meu!” gritou Luisa empolgada enquanto terminava de descer a escada correndo até parar do lado da mãe, não demorou para que notasse também o ladrilho. “Ele tá meio destoante. Mas tudo bem porque eu amei a casa!”.
Mirian estava contente que a filha estivesse se adaptando facilmente a nova realidade de ambas e assentiu com a cabeça concordando que Luisa ficasse no quarto de cima. Na realidade, ficar no primeiro andar seria melhor pelo fato de ser a primeira a sair de casa, assim não correria o risco de lidar com uma filha mau humorada por ter sido acordada tão cedo.
As bolsas que estavam na sala, Mirian, levou para a cozinha. Sua barriga estava começando a roncar de fome, decidiu que era hora de preparar algo para comer, enquanto isso, Luisa escolhia pelo celular um modelo de microondas barato que encaixasse perfeitamente a sua nova, e confortável, casa. Estenderam um lençol no chão da sala e distribuíram, ali, alguns petiscos, biscoitos doces e salgados, pães e pastas. Luisa estava adorando a situação, era tudo muito novo e excitante para a garota, sentia-se próxima da mãe, como amigas confidentes que estivessem se rebelando contra o mundo e fazendo algo muito revolucionário. Pensar nas possibilidades e nos limites de uma nova vida não a angustiava, muito pelo contrário a estimulava.
“Então… Quando vou conhecer sua namorada?” Luisa soltou após alguns minutos de silêncio entre as duas. Mirian, que dava um gole na sua cerveja engasgou com a pergunta. O descer do líquido por um lugar inadequado fez seus olhos encherem d’água e tudo por dentro queimar. Luisa batia nas costas da mãe e achava graça de Mirian tentando se recuperar do acesso de tosse e se recompor.
“Talvez quando eu tiver uma, Lisa.” Mirian descansou a garrafa e limpou os olhos que lacrimejavam.
“Ah, qual é. Vai me dizer que você enfrentou minha avó daquele jeito e não tem ninguém na parada? Eu posso ter só dezessete anos, mas entendo as coisas da vida, mãe. Entendo, por exemplo, que paixões movem pessoas.”
“Lisa, paixões são superestimadas. Eu enfrentei sua avó “daquele jeito” porque estava cansada de fazer o que ela achava certo, somente, para agradá-la. Eu não estava feliz e demorei muito tempo para assumir isso para mim mesma. Acreditei que me separar do seu pai seria o suficiente, mas sua avó sabe ser tão cruel quanto ele e percebi que só ficaria bem quando fosse dona das minhas próprias decisões.”
“Mas, dois anos?” questionou incrédula. “Demorou dois anos para perceber que só a separação não seria o suficiente pra te fazer feliz?”
Mirian deu um gole na cerveja com calma ponderando sua resposta. Já estavam ali falando sobre sua vida, Luisa tinha dúvidas e não era mais uma criança, tampouco era boba, sentia que podia ser sincera com a filha. Pensou em como teria sido melhor se sua mãe tivesse feito algo semelhante, se tivesse aberto um canal de comunicação possível, talvez a relação das duas não fosse tão turbulenta. Pensando nisso, Mirian teve certeza de uma coisa, precisava trazer sua filha para perto, pois no final das contas, eram elas por si.
“Eu demorei muito tempo para entender quão absurdo era seu pai ameaçar tirar você de mim para manter um casamento falido desde o dia em que foi planejado. O fato dele ser um advogado renomado, ter o apoio da minha mãe e sempre conseguir o que deseja me fazia acreditar que numa briga judicial contra ele, eu perderia. Eu desconhecia o fato de não ser simples uma mãe perder a guarda da filha, infelizmente. E por viver anos com medo entendia que me separar seria o suficiente. Mas seu pai é só o reflexo do mundo, preconceituoso, e a separação foi só a primeira etapa dessa batalha pela minha liberdade.”
“Foi a pior fase das nossas vidas.” Pontuou Luisa pesarosa “Nunca vi meu pai tão transtornado. Eu cheguei a pensar que ele faria alguma coisa com você”
Mirian deu mais um gole na sua cerveja. “Seu pai preza muito pela imagem desassociada de escândalos. Isso foi bom para nós, do contrário, o desenrolar dessa história talvez fosse diferente.”
“O pai sempre soube do seu amor por mulheres?” Luisa prestava muita atenção em cada movimento e palavra da mãe.
“Sempre. Nosso casamento foi uma forma dos meus pais darem um fim no meu namoro com uma mulher, Naydu. Assim que percebi que meus pais não iriam voltar atrás na decisão do casamento resolvi contar para seu pai toda a verdade, que eu amava uma mulher e o casamento era tanto uma punição quanto uma forma de me “consertar”. Foi uma tentativa desesperada de pedir ajuda, mas foi um enorme erro, desde aquele dia se casar comigo virou uma questão honra para seu pai.”
Luisa tocou nas mãos da mãe “Sinto muito por tudo isso, mãe”.
“Não tem do que se desculpar, meu bem. Ter você foi a melhor coisa que me aconteceu. Sentir você crescendo dentro de mim, suas mãozinhas no meu rosto enquanto mamava, seus primeiros passinhos... Às vezes, sinto falta até mesmo das noites em claro. Você me motivou a continuar vivendo, Luisa. Foi por você que desejei terminar a graduação e ter alguma autonomia mesmo com seu pai dizendo que eu não teria capacidade de cuidar de uma casa e de você, dente outros absurdos que ele vomitava.”
Naquele momento Luisa não fazia ideia do que dizer a sua mãe e ficar sem saber o que dizer não era algo corriqueiro para a garota. Sentia em seu interior algo se revirar. Sentia raiva e repulsa do pai e questionava-se como ele pode ser tão baixo, tão cruel e preconceituoso. Estava incrédula, o Júlio que a criou, o homem amável e compreensivo que acompanhou seu crescimento não era o Júlio que sua mãe narrava. Eram pessoas completamente distintas. Aquele que sua mãe narrava era um monstro e seu pai era... apenas seu pai.
Mirian pode perceber que algo incomodava a filha, era possível ver em sua feição. Conseguia imaginar o quão difícil era para a pequena ouvir todas aquelas coisas sobre o pai e por alguns segundos Mirian se questionou acerca da escolha por contar toda a verdade à Luisa. Por mais doloroso que fosse ouvir aquelas coisas, era a verdade, a filha deveria saber, e ela deveria dar um fim as mentiras.
“É estranho ouvir tudo isso porque não parece que estamos falando da mesma pessoa. Sabe, esse homem que você fala não se parece com meu pai. E eu sinto ódio desse homem que você fala, mas amo meu pai.”
Mirian aproximou-se de Luisa e a envolveu num abraço apertado. A garota pousou a cabeça no colo da mãe e sentiu o choro preso na garganta. Não sabia explicar quais daquelas sensações fazia o peito comprimir.
“Não devemos ser maniqueístas ao olhar o mundo, meu amor. Ninguém é só bom ou mal. Seu pai não foi o melhor dos maridos para mim, mas foi o melhor pai que pode para você e por isso você o ama. Ele nunca vai deixar de ser seu pai, te amar e cuidar de você. As coisas que contei, o fiz, não para deixa-la confusa, mas porque decidi acabar com as mentiras, todas elas. Por mais doloroso que seja para você ouvir essas coisas, e eu compreendo, elas precisavam ser ditas.”
Luisa acenou com a cabeça concordando, aos poucos a culpa por ainda amar o pai se dissipava. Mas ainda se questionava o que significaria saber de todas aquelas coisas a partir de então. Obviamente, a raiva do homem capaz de machucar tanto sua mãe não duraria para sempre, no entanto, como seria quando o visse?
Ao fechar os olhos, lembrou-se do dia em que a mãe pediu o divórcio e foi para a casa da avó. Luisa, por outro lado, escolheu voltar para casa aquela noite. Ao abrir a porta deparou-se com a casa abaixo. Parecia ter passado um tornado na sua casa, muitas coisas estavam quebradas no chão e ao olhar com cuidado percebeu que os pertences no chão eram de sua mãe, assim como as fotos estilhaçadas eram somente as que continham Mirian sorridente. Ao chegar na sala encontrou seu pai dormindo no sofá, provavelmente, derrotado pela embriaguez. Desde aquele dia, ao encontrar todos os pertences da mãe destruídos por um pai tomado pela ira, Luisa pode compreender que Júlio nunca havia respeitado sua mãe. Tudo se tratava de ego no fim das contas e, nesse caso, o melhor a ser feito era separar.
Mirian acarinhava a cabeça de Luisa convencida de que havia tomado a decisão correta. Sabia que depois da primeira mentira ou da primeira omissão era difícil parar, quando Luisa se afastou de seu colo num impulso.
“Mãe, Naydu é a mulher da foto que está na sua carteira. Era ela quem você namorava antes de casar com meu pai?” questionou empolgada com o insight que acabara de ter. Mirian lançou em sua direção um olhar indagativo e surpreso.
“Andou mexendo na minha carteira, Luisa?” Seus braços cruzaram na frente do corpo e sua postura ficou rígida.
“Ah… não! Só outro dia. Eu estava procurando a carteirinha do médico…. E alguns trocados. Mas eu não peguei nada, juro.”
Mirian já estava se preparando para brigar com a garota que havia mexido em suas coisas. Em sua cabeça, não poderia permitir que algo do tipo acontecesse, ou então se tornaria um hábito para Luisa pegar suas coisas sem avisar e sem pedir. Foi quando o celular tocou e o nome Naydu apareceu na tela. Luisa olhou para a mãe que prendeu por alguns instantes a respiração, as mãos de Mirian gelaram, ela mal conseguia se mover.
“É ela?” Luisa perguntou, mas Mirian não moveu um centímetro sequer. Sentia-se como uma adolescente apaixonada pela primeira vez e sua filha estava acompanhando tudo. “É ela? MÃE ATENDE, VAI DESLIGAR!” Luisa gritou e pegou o celular, Mirian piscou forte e quando se deu conta a menor estava com o aparelho na orelha, piscou outra vez, sua filha estava com o braço estendido na sua frente sorrindo. Mirian pegou o telefone, seu estômago dava saltos e ao mesmo tempo gelava. Sentia todos os seus pelos se eriçarem.
“Midi?” A voz do outro lado havia mudado. Não era mais tão fina e infantil, tornara-se grave e firme, mas o carinho em chama-la pelo apelido era inconfundível.
“Estou ouvindo, Nay.” Um riso veio do outro lado do aparelho fazendo seu coração e o corpo amolecerem juntos, apoiou-se no batente da porta.
“Nossa, é muito bom ouvir sua voz depois de todo esse tempo.” Um suspiro. Finalmente, era ela.
Fim do capítulo
Olá meninas,
Estou estreando meus contos no lettera, então comentários sempre são bem vindos. amo conversar com minhas leitoras
bjos
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Nay Rosario
Em: 08/02/2021
Estreia com gosto de quero mais.
A pior prisão é o medo. A inautenticidade traz infelicidade, adoece o corpo e a alma. É perceptível na fala de Miriam que, por mais demorada que seja, essa sensação de liberdade foi muito aguardada e, embora hajam mudanças drásticas em alguns setores da vida dela e da filha, cada conquista terá um sabor único.
Seria interessante esse reencontro? Seria. Mas quem sabe elas não voltem através de tão belas palavras, em um dia qualquer.
Bem vinda!
Agradeço tão singular texto.
NR.
Lily Porto
Em: 08/02/2021
Parabéns!
Muito boa a forma que vc mostrou a mudança e o recomeço. Para mim é muito importante ler histórias que se assemelham a realidade. Muitas vezes nos anulamos em muitas situações e vivemos infelizes apenas para sermos aceitas dentro da sociedade.
Uma continuação seria muito bom, mas acredito que vc tenha conseguido passar para nós leitoras, tudo o que queria no momento.
Seja bem vinda!
Bjs.
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Rain
Em: 25/01/2021
Oiii!
Seja bem-vinda e parabéns! Que estréia maravilhosa eu gostei desse, pode ter mais? Fiquei com gostinho de quero mais também.
Vou aguardar os próximos contos. Até mais!
Abraços.
Resposta do autor:
Olá, Rain
Obrigada pelo retorno! olha, toda vez q alguém pergunta se tem continuação eu fico me sentindo um pouco má! vocês vão acabar me fazendo escrever mais kkk mas n to prometendo nada.
Vou postar hoje um segundo conto! Aguardo você
Beijão!
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Rosa Maria
Em: 10/01/2021
Ellen...
Parabéns pela estreia, começou muito bem, a história ficou com um gosto de quero mais, tem mesmo certeza que será de um capítulo só?
Continua vai!!! Kkkk
Beijos
Rosa
Resposta do autor:
Rosa, que delícia de comentário. Fico feliz de saber que estreei bem kkkk
Descobri esse site recente e estou animada para postar. Acho que o gostinho de quero mais viro uma marca hahaha , mas não aperreie que vem mais contos. Fica de olho. Abraços !
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