Laura acenou para Jade e Samantha que se aproximaram já sorrindo para a bebê.

- Oi Jade e Samantha, essa é Nicolle, minha filha com Melissa, ela tem oito meses, desculpe por não lembrarmos de avisar, esses dias foram corridos demais, ela está conosco há apenas uma semana, mas, parece que está a vida inteira. Ah, Samantha, essa é Melina, ela curte muito o som do "Bronislaws", vai em todos os shows só para te ouvir cantar, e quase chorou para vir quando cometei que iam tocar para os pais das crianças.

- Não exagera Laura - Falou Melina sentindo o rosto inteiro corar.

       Samantha tinha voltado ainda mais retraída do coma, sabendo que alguém estava na festa para vê-la, praticamente se escondeu atrás de Jade, que bem mais alta do que ela cobria todo o seu ângulo de visão, portanto, não viu Melina de cara. Jade sentindo sua presença tímida nas costas, sorriu, achando que Samantha parecia mais um bichinho acuado, e foi preciso sair de sua frente para que ela pudesse cumprimentar Melina, Laura e Melissa.

        Foi inevitável o rubor de Samantha assim que olhou Melina pela primeira vez, coçou os olhos novamente para ter certeza do que estava vendo e percebeu que diante de si estava uma mulher muito bonita, os olhos bem claros, de cor de âmbar, eram quase amarelados, os cabelos cacheados tinham um leve tom dourado e uma charmosa pinta enfeitava o canto da boca, olhou novamente os detalhes e assustou ainda mais, Melina era uma cópia de Nadine, apenas tinha na pele um leve tom dourado, como se tivesse acabado de tomar sol, e estranhamento a cor era a única coisa que diferenciava as duas. Diante da cena, Melina precisou dizer algo para quebrar o silêncio de todas, quer dizer, de quase todas pois alheia a tudo, a bebê Nicolle, continuava dizendo "papá" enquanto batia palminha.

- Prazer Samantha, eu sei que já deve ter ouvido isso milhões de vezes, mas, você tem uma linda voz, parabéns pelo repertório escolhido, o que Laura falou é verdade, sempre que posso vou a todos os seus shows, inclusive comemorei meu aniversário em um barzinho só para te ouvir cantar. - Falou enrubescendo novamente.

- E quando foi?.

- No dia 22 de julho...

Meu Deus, apenas seis dias antes do aniversário da Nadine, além da aparência física elas nasceram praticamente no mesmo dia, que estranho...

- Fico feliz que curta o som da nossa banda, agora tenho que ir, tenho apenas meia hora para me arrumar e fazer os últimos arranjos, até mais tarde.

       Samantha saiu em direção aos amigos da banda, que estavam reunidos perto do palco montado. No entanto, a conversa continuou nos bastidores, Melina mais relaxada resolveu perguntar de Samantha, guardando para si todas as informações que Jade soltava.

- Jade, posso perguntar uma curiosidade?, Samantha está solteira?.

- Sim, está e pensando bem, algo me diz que faz exatamente o tipo dela.

- Sério? - Respondeu uma sorridente Melina.

- Agora vamos lá, o show vai já começar.

       O palco estava montado, as luzes ajustadas e o equipamento de som estava ok, a banda começou a tocar os primeiros acordes quando Samantha chegou da parte inferior do palco com o microfone na mão. Em uma entrevista a um jornal a cantora explicou que sentia uma energia muito diferente quando cantava, como se fosse tomada de uma forte energia que a dominava, ali era uma outra pessoa, no palco incorporava uma personagem, a moça brincalhona que fazia uso de suas piadas para disfarçar a timidez dava lugar a uma mulher firme, segura e consciente que seduzia a plateia, ainda mais a feminina.

       Percebendo que que as pessoas aglomeravam em frente ao palco, gritando seu nome e aplaudindo, Samantha se sentia senhora de si, muitas vezes fechou os olhos antes de cantar e pensou no rosto de Nadine, tentando enviar todo seu amor para as músicas, imprimindo emoção a cada canção. Com o microfone firme soltou a voz.

- O seu amor é uma mentira, que a minha vaidade quer...

       A música de Cazuza encheu o ambiente e como o palco era baixo, em um instante de menos luz, percebeu que era admirada por Nadine, que a aplaudia e dançava sensualmente ao som de suas estrofes, cantava cada pedacinho das músicas, sorrindo e mandando beijos para a vocalista, que sorria e piscava para uma embevecida Melina, que não percebeu quando o sorriso de Samantha morreu, após constatar que não era a sua Nadine que estava ali e sim a sósia que havia sido apresentada mais cedo, alguém que parecia que viera ao mundo com uma grande missão, não deixar seu coração esquecer quem era o seu grande amor. O show foi considerado por Jade e Isadora um dos melhores que assistiram, a amiga e os músicos tinha caprichado, tanto no repertório quanto na performance, estava tudo primoroso, e quando o tocou o último bis, as luzes foram apagadas, e quando acendidas, Samantha estava sentada em um banco alto de madeira.

- Acredita em anjo, pois é, sou o seu. Soube que anda triste, que sente falta de alguém, que não quer amar ninguém...

       Cada frase era cantada tristemente, todos aplaudiam encantados com a perfeita interpretação. Samantha agradeceu, deu as mãos para os integrantes da banda e cumprimentou as pessoas que os assistiram, sem mais nada a dizer,  em seguida pegou uma garrafinha de água que estava em cima de uma mesinha ao lado e desceu. A baterista Thaisa lhe puxou o braço de forma firme, mas, carinhosa.

- Está tudo bem amiga?.

- Tudo ótimo, parece mesmo que nunca estive tão melhor.

        Samantha pisca para a amiga parecendo não se importar com seu olhar assustado e entristecido.

Como assim está tudo ótimo?, tem algo muito errado...

        Após deixar a amiga pensativa, Samantha saiu em direção ao banheiro, como sempre fazia após os shows, tomava um banho e trocava de roupa antes de encontrar os fãs da banda. Thaisa só voltou a ver a amiga cerca de uma hora depois, Samantha estava no salão conversando com Melina, rindo à toa com um copo na mão, ao mesmo tempo que acariciava o pescoço da outra por baixo dos cabelos cacheados, sem se preocupar com os olhares dos outros. Thaisa seguiu até as duas, mesmo correndo risco de levar um fora, mas, ao contrário do que pensou, foi muito bem recebida.

- Amigaaaaa, chega aqui, está é Melina, amiga de Isadora e Jade, Melina, esta é Thaisa, minha amiga de muitos anos, e psiuuu, melhor baterista do mundo.

- Samantha, já fui apresentada a Melina, você pode vir aqui só um minuto?.

- Não seja chata assim, Tatá, como vê estou ocupadíssima...

- Por favor Sam... - Falou Thaisa baixando os olhos em uma quase súplica.

- Ok, só um minuto, dá licença Melina....

      Thaisa afastou Samantha até um ponto onde não podiam ser ouvidas.

- Posso saber que merd* é essa que está fazendo?.

- Como assim, vai dizer que prefere me ver sofrendo pela Nadine?.

- Claro que não, estou reclamando porque bebeu e pelo visto muito mais do que está acostumada.

- Thaisa, estou ótima, se quiser eu faço um quatro para provar meu equilíbrio e sagacidade - Falou tentando disfarçar a voz que embolava.

- Percebe-se Samantha, e o que me diz sobre estar usando a Melina para esquecer Nadine?.

- Digo para você que a fila anda, Nadine foi embora?, o que eu posso fazer?, vou deixar meu barco correr.

- Amiga, eu daria total apoio se não visse essa tristeza estampada  nos seus olhos. Escuta, você não vai superar Nadine assim, a Melina é uma outra pessoa, não é uma Nadine parte II, o retorno, acorda Samantha!.

- Foda-se que não é, o que os meus olhos enxergam é que são muito parecidas, com a sutil diferença que Melina me quer, e Nadine foi embora, entendeu?. - Falou Samantha com os olhos rasos de lágrimas.

- Sam, você está sofrendo por Nadine, e que tatuagem é essa que não vi esse seu pulso?.

- Um anjo, em homenagem a minha avó...

- Que avó o que Samantha?, está na cara que é uma homenagem a Nadine, não me enrola...

- E o que sugere, ó, poderosa Thaisa de tranças?.

- Sugiro que primeiro pare de beber, e chore tudo o que carrega ai no peito.

- Terminou amiga?, vou lá, é feio deixar uma mulher linda como Melina esperando.

       Samantha só muitos meses depois comentou com Thaisa que a cada passo que dava em direção a Melina, parecia que seu coração partia mais um pouco.

       Na sala da espaçosa casa de praia, Isadora e Jade com os gêmeos no colo assistiam um divertido teatro de marionetes, onde os fantoches contavam de uma forma bastante sutil sobre o amor e sua diversidade. Isadora após entregar Daniel a babá, sorri e chama Jade pedindo que também entregasse Dora. As duas subiram a escada de mãos dadas, rindo durante o pequeno trajeto que levava ao quarto no segundo andar da mansão.

       Antes de entrar no quarto, Isadora parou com Jade no último degrau, olhando de relance o andar debaixo, sorrindo ao lembrar que a casa de praia era toda decorada em estilo marítimo, em formato de barco, tendo como inspiração "La Sebastiana", residência do poeta chileno Pablo Neruda em Valparaíso.

       Entraram no quarto sorrindo, Isadora puxou Jade pela cintura e com a aproximação, subiu as mãos até seu rosto, encostando suavemente os lábios nos de Jade, que a abraça, deixando Isadora encostar no seu colo, lugar onde repousa há tantos anos, sentia um amor completo, maduro e entregue.

- Eu amo tanto você, Jade...

- Mesmo depois de tantos anos?.

- Para sempre amor...

       Dessa vez é Jade que puxa Isadora pela cintura e diz baixinho no seu ouvido.

- Precisamos descer amor, mais tarde e para sempre vamos ter todo o tempo do mundo...te amo Isa...

Enquanto ouvia a declaração de amor de Jade, Isadora subiu as mãos pelas coxas bem torneadas e fortes.

- Isa, você não é fácil, vamos antes que veja meu vestido cair amassado no chão...

       Isadora sentiu o coração disparar com o sorriso de Jade, que lhe emocionava, mesmo passado tanto tempo, as duas sairam do quarto de mãos dadas, e avistam Laura e Melissa brincando com a filha Nicolle e com seus gêmeos, Isadora sorriu por ver que a ex namorada estava tão feliz quanto ela, e para não atrapalhar o momento, seguiram em direção ao jardim, na tenda os casais se embalavam ao som do DJ Foucault. De longe viram Samantha e Melina se beijando e após se separarem ambas acenaram em sua direção, o sorriso de Isadora murchou ao perceber que a amiga estava forçando uma situação, tentando demonstrar uma felicidade que não estava sentindo.

- Amor, eu conheço a Sam, cada beijo que ela dá em na Melina é como se ela se destruísse um pouquinho, sempre foi assim em todos esses anos, quando Nadine se afasta ela sempre encontra alguém, no entanto, o resultado nunca é agradável, eu rezo tanto por ela, será que Nadine ainda vai dar uma chance a esse sentimento todo?.

- Isa, Nadine tem seu livre arbítrio, e apesar de todo amor que sente, nunca vi Samantha desrespeitá-la, seja em qual for sua decisão, ela se quebra, mas, tenta manter Nadine toda colada, não sei como, mas, sinto que esse amor ainda vai ser concretizado...eu jurava que fosse dessa vez.

       A conversa foi interrompida com a chegada de Marcela e Vivian, que chegavam felizes e de mãos dadas.

- Oi, acabamos de ver os gêmeos - disse Vivian sorrindo, antes de completar. - estão lindos e embelezaram ainda mais o amor de vocês, formaram uma linda e preciosa família. Enfim, o que importa é que no final todas terminaram muito bem...

       Isadora sorriu tristemente e apontou para Samantha.

- Nem todas minha cara, nem todas...

- Nadine viajou hoje, não é? - Indagou Marcela sem muita certeza.

- Foi e como vê Samantha está péssima...

- Samantha ama Nadine, é fato, na época que ficamos não sei como aguentei, os olhos dela brilhavam só de mencionar o nome da delegada, não foi nada fácil para mim, mas, vejo que ela está aparentemente se divertindo muito com Melina, que é uma moça muito culta, inteligente e linda, cá pra nós, até parece e muito Nadine, não acha?, com a sutil diferença que Melina é e sempre foi gay, fora que dá para ver o quanto se esforça para conquistar nossa amiga.

- E nos olhos de Samantha?.

- Não vi reciprocidade...

Após a rápida conversa, Jade pediu licença e segurou a mão de Isadora, saindo em busca de um lugar para sentar,  observou alguns dos seus amigos, admirou de longe os filhos brincando, respirou fundo e disse;

- Que a sombra do tempo venha trazendo boas novas.

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Colônia Espiritual Nossa Casa, 18 de dezembro de 2018.

       Assim como na Terra, os dias na colônia seguiam rapidamente, em dezembro a cidade espiritual também se enfeitava com cores e decorações natalinas. O "Nossa Casa" estava em fase de reorganização com a chegada de muitos irmãos recém desencarnados e com o reencarne de muitos outros, havendo um remanejo de guias espirituais que voltavam a carne com o objetivo de ajudar, enquanto outros queriam aprender e ter novas oportunidades em uma nova vida.

       Do mesmo núcleo muitos voltaram a Terra, Patrícia havia reencarnado como Nicolle, filha da ex namorada Laura com Melissa, antes de retornar, Patrícia  pediu apenas que nascesse com os mesmos olhos, tanto em relação ao formato, quanto em relação a cor, queria que Laura fosse feliz como sua mãe, e que em algum momento percebesse a semelhança. Doralice e Davi reencarnaram como os gêmeos Dora e Daniel, filhos de Isadora e Jade, que seguiam crescendo felizes como uma família que eram. O mentor espiritual de Samantha, Ângelo, também precisou reencarnar, queria ajudar um antigo amor que voltaria a Terra para cumprir sua missão, e em um futuro longínquo receberia Andréa como sua filha, tendo Roberta como filha de uma vizinha. Para não deixar Samantha sem um guia espiritual, Mahar foi convidado a ser seu tutor, teria que aprender a lidar com a inconstância e impulsividade de sua tutelada, bem diferente da tranquila Patrícia, da mesma forma, os bebês do núcleo também tiveram seus mentores escolhidos.

        Mahar seguiu firme na missão de cuidar de Samantha, mesmo que às vezes não a compreendesse totalmente, para começar, pediu autorização ao conselho da colônia, para entender o que se passava entre ela e Nadine, queria descobrir em qual das existências que passaram juntas, em qual Nadine perdeu a confiança, passando a se sentir insegura em relação ao amor de Samantha, porque em muitas vidas, mesmo quando correspondia, acabava sempre por repelir seu amor.

       A luz da sala apagou e uma luz suave iluminou a tela, onde a primeira encarnação de Nadine e Samantha ocorrera.

       A fogueira trepidava, enquanto o acampamento cigano agitava-se em festa, comemoravam um noivado entre dois clãs importantes que se uniam coroando e apaziguando uma difícil relação entre duas famílias que beiravam a inimizade. A tela deu um close em Dalila, os cabelos pretos e lisos balançavam enquanto dançava sensualmente deixando todos impressionados com sua dança quase etérea, na vida atual, Dalila era Nadine, quando cigana era filha de um poderoso chefe, Dimitri, casado com Constance, mulher de personalidade forte, que na verdade era quem liderava a sua família sem que o marido tivesse consciência do seu pulso firme, beirando a tirania. Dalila no dia do noivado dançava sob as palmas do noivo, Igor, que atualmente seria o pai de seus filhos. Longe de toda a alegria do acampamento estava Sarah, escondida atrás de uma árvore,  era a  única que não estava animada com a aliança e a paz entre os clãs, enxugava a todo momento com o dorso da mão as lágrimas que caiam a todo instante, ao mesmo tempo que se lembrava da despedida de Dalila, o último beijo selou o fim do seu namoro, pois a Dalila acatou o pedido da mãe e ia se casar com Igor, seguindo a forte tradição e os costumes do seu povo.

       Após o final da festa, Sarah despediu-se de sua mãe Esmeralda e optou por uma vida nômade. Na mesma madrugada juntou tudo que julgava importante em uma pequena mala e partiu sem rumo, dentre os instrumentos mágicos estava o anel que ganhou de Dalila e o seu baralho cigano, e foi embora, fazendo planos de trabalhar lendo a sorte das pessoas de cidade em cidade, não queria criar um forte vínculo com nada e nem ninguém.

       No outro dia Dalila procurou Sarah por todo o acampamento, ia propor que fugissem escondidas, mesmo com muito medo do que poderia acontecer após a partida das duas, mas, Sarah já tinha ido embora, e não teve opção a não ser aceitar o seu destino. Por anos a fio, Dalila esperou o retorno de Sarah, e quando morreu já velhinha ainda lamentava o abandono, apenas depois do seu desencarne, no mundo espiritual veio a descobriu que Sarah tinha morrido poucos meses após sua partida, de pneumonia em um inverno muito rigoroso.

       A sala iluminou-se, Mahar junto com Amora, mentora espiritual de Nadine levantaram, junto aos avós de Samantha, sentando em uma mesa de reunião encostada no lado da tela. Mahar foi o primeiro a falar.

- Bom, com certeza essa primeira encarnação foi a origem dos receios de Nadine, ela se sentiu abandonada a própria sorte por Samantha enquanto eram Dalila e Sarah, e de alguma maneira seu coração ainda não perdoou....

       Amora parou alguns instantes pensando em tudo o que tinha visto.

- Eu creio que existe uma distância entre a não concretização dessa história de amor e essa ferida que formou em cada uma delas, Samantha, quando encarnada como Sarah foi impulsiva e fugiu por conta do seu ciúme, o que é completamente compreensível, já que Nadine aceitou casar, vindo a se arrepender tarde demais, mesmo assim, minha tutelada se sentiu abandonada e passou a temer o amor de Samantha toda vez que a encontrou, é um fato triste, mas, com isso se tornou a mulher forte, racional e segura que é.

- O fato é que nossos tutelados tem algo que os marca profundamente suas passagens na Terra...o livre arbítrio, o que nos resta fazer é tentar inspirar cada uma delas, e que o tempo leve essa distância que as separa.

       O grupo voltou para as confortáveis poltronas, a luz da sala foi esmaecendo, à medida em que a tela iluminava-se, nela Nadine e Samantha estavam ricamente vestidas no início do século na capital parisiense...

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Nova Iorque, 28 de junho de 2062.

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       No quarto do moderno hospital, os aparelhos futuristas apitavam baixinho, na verdade mais pareciam um suave barulho de vento, como uma brisa que bate devagar em uma antiga janela de vidro. Estes aparelhos mediam dia após dia os sinais vitais dos pacientes, apresentando um detalhado relatório na manhã seguinte. A enfermeira-chefe Mary passava cedinho fazendo as visitas de rotina assim que começava seu plantão, ia de quarto em quarto e achava uma ironia do destino ter apenas separadas por uma parede, uma senhora que lutava pela vida, enquanto outra queria abreviar seus dias na Terra. Independente de qualquer coisa todos eram tratados com o mesmo carinho e dedicação e se esforçava para atender pedidos e agradar dentro do possível cada um dos pacientes.

       Mary se aproximou do terceiro quarto, batendo na porta e observando Isadora que acabara de acordar e espreguiçava lentamente em sua cama, a enfermeira sorriu, deu bom dia para sua paciente preferida e com um controle prata na mão abriu as cortinas devagar, deixando os primeiros raios de sol entrarem, depois resolveu animar um pouco as coisas, e apertou com um único click um pequeno botão vermelho, surgindo as imagens holográficas e os sonos de vários passarinhos que cantavam alegremente enquanto circulavam ao redor do leito, Isadora sorriu, bateu palmas e falou "minha princesa ia amar esse efeito", antes que iniciasse um choro continuo como das outras vezes, Mary tentou espantar a tristeza de Isadora com outro efeito, agora um lindo arco-íris brilhava em cima da paciente que sorria balançando o braços, para logo depois cantar "Somewhere over the rainbow, way up high...". Antes de ler o relatório diário, Mary resolve agradar o olfato de Isadora, e aperta o último botão, deixando no ar um cheiro de lavanda que invadiu o quarto.

- Agora sim, Dona Isadora vamos ver o que esse aparelhinho mágico nos diz?.

Após um rápido bip o relatório vai direto para o "molecular", uma verdadeira evolução dos antigos aparelhos celulares, o de Mary tinha um leve tom furta-cor.

- Vamos ler juntinhas esse relatório, ainda tenho esperança que a senhora desista de fazer sua passagem, nem imagina como meus dias são mais felizes quando conta uma das suas muitas histórias...

      Ao se aproximar, Mary percebeu que Isadora não estava se movendo, ela já tinha feito sua passagem, estava com um sorriso estampado no rosto e os olhos estavam parados em direção a porta, Mary abraçou o corpo inerte, e constatou a morte natural, para confirmar encostou o pequeno aparelho prata no coração de Isadora e o relatório imediato.

- Paciente sem vida, o coração parou de bater aproximadamente há dez minutos.

      Mary chorou bastante, sentia muito carinho pela senhora que ao longo dos muitos anos que morava no hospital, relatava toda sua vida entre um procedimento e outro, e por seu incentivo, passou por muito tempo escrevendo tudo em vários cadernos de couro que iam se acumulando no guarda-roupas.

Não se preocupe Dona Isadora, sua história será lida por muitos que ainda estão na Terra e com muita esperança que a vida retorne plena e povoada como antes.

       Pensou isso, mas, falou outra coisa.

- Ah, Dona Isadora, você foi se encontrar com a sua princesa em algum lugar, nem tive tempo de me despedir, de dizer o tanto amava nossos dias juntas e a sua amizade.

       Antes de sair segurou a mão de Isadora, percebendo que estava fechada, abriu lentamente seus dedos e viu uma bolinha de papel que rolou para o chão, o que seria?. Mary agachou, pegou a bolinha e quando abriu aos pouquinhos para não rasgar o papel antigo olhou várias vezes a fotografia, nele estava uma mulher de sorriso convidativo, e atrás a seguinte frase "para sempre tua".

Fim do capítulo