avisos de conteúdo: homofobia. Repressão, culpabilização, outras formas de abuso psicológico.
Um anjo cinzento
Região da Baixa Áustria, próximo a Viena
Convento de Santa Maria
17 de junho de 2009
00:25
Uma garota de rosto pálido, sutis sardas nas bochechas, cabelos loiros escorridos e olhos castanhos, pouco mais alta que Liesel, adentra o quarto. Tem uma expressão de aflição, mas também incompreensão. Logo as suas colegas mais novas se amontoam ao redor de Mathilde.
- O que aconteceu?! – pergunta uma, esganiçada.
- Alguém se machucou?!
- É um ladrão? – sugere uma, numa voz baixa e trêmula.
- Ou um tarado tentando invadir?! – adiciona outra, como se animada para alguma aventura.
- Ai, que horror! Vira essa boca pra lá! – outra das garotas retruca.
- Meninas, calma – Mathilde silencia suas companheiras de quarto – não foi nada de mais. É melhor irmos dormir.
Liesel fora a única do segundo dormitório a ter permanecido na cama. Fingira ignorar os gritos distantes, o caos no dormitório ao lado, as vozes irritadas da professora-coordenadora da viagem e as freiras do convento discutindo não muito longe, ali na porta ao lado, sobre algo que ela não fora capaz de identificar, ou com alguém a quem ela nunca chegou a ouvir a voz.
Mas ela está assustada. Normalmente, são todas recatadas, quietas, obedientes – ao menos, quando em ambiente escolar. Ninguém quer ficar com má-reputação junto às rígidas professoras da Academia Dâmaso II. As professoras sempre mantêm essa imagem de intocáveis, narizes empinados e mãos de ferro sobre as estudantes. Nada pode estar abaixo da perfeição. Não à toa, a Academia Dâmaso II é uma das mais caras da região da Bavária.
Aos poucos, o segundo dormitório volta a cair no silêncio, conforme as garotas vão se deitar e seus sussurros e burburinhos morrem madrugada adentro. Não demora muito e Liesel também se rende ao sono...
A manhã seguinte começa como todas as outras dessa última semana de viagem. Uma das freiras do monastério adentra o dormitório, ordenando a todas que se levantem, pontualmente às sete horas da manhã. Ela estranhara o sotaque austríaco a princípio, mas agora já está acostumada.
Liesel arruma a cama rapidamente. Deixa os lençóis cinza-claros tão lisos e impecáveis quanto é possível. Não é algo com o que foi habituada durante a sua vida, mas essa semana em Viena a acostumou a isso bastante rápido... ao menos, temporariamente. Assim que voltar para Munique, os empregados voltarão a fazer quase tudo por ela, de qualquer forma.
Algumas outras garotas têm mais dificuldades, no entanto. Parada ao lado da sua cama impecável, Liesel espera, impaciente, enquanto três ou quatro outras garotas sofrem para atingir esse mesmo nível de perfeição. Os segundos passam lentamente, a professora-coordenadora entra no dormitório: uma mulher de cabelos grisalhos e cara de madrasta má dos desenhos da Disney, alta, esbelta e altiva. Só falta uma garota terminar de arrumar sua cama. Ela se atrapalha com os lençóis mais uma vez e quase os joga no chão, mais por se atrapalhar do que por frustração. Ela sente o peso do olhar da professora em suas costas e os equilibra nos ombros com uma mão enquanto tenta usar a outra para esticar a roupa de cama, concentrando-se na missão de não deixá-los cair de forma alguma. Liesel revira os olhos em desprezo. “Como consegue ser tão lerda?”, pensa.
A professora caminha até a garota e tira os lençóis dos seus ombros.
- Assim – ela diz, num tom duro, e em menos de um minuto a cama da garota está tão lisa quanto quase todas as outras.
- O-obri... – a garota começa a agradecer, mas a professora balança a cabeça em negação.
- Não. Agora, é a sua vez. Desfaça e faça de novo.
Enquanto isso, a freira inspeciona as camas. Outras alunas têm que aperfeiçoar suas próprias organizações, a professora as corrige, blá, blá, blá. Finalmente, a turma é liberada para o banho antes do café da manhã.
Liesel sente inveja das outras garotas do condomínio, que devem estar aproveitando suas férias nesse exato momento enquanto ela é obrigada a perder o resto do seu mês com uma grade horária tão fechada que ela não se surpreenderia se qualquer dia a professora lhes dissessem que agora vai ter horário para respirar.
Na fila para os banheiros, Liesel percebe as garotas do primeiro dormitório num clima tenso, e ela se lembra da noite anterior. O que havia acontecido, afinal? Ninguém do segundo e terceiro dormitório parece ter ideia. Ela supõe que o mesmo acontece com suas colegas, e os burburinhos logo voltam – ao menos, nos momentos em que a professora está distante o suficiente para não ouvi-las.
- Ouvi a Ursel falar algo sobre umas garotas do primeiro dormitório terem sido pegas roubando comida da cozinha! – comenta alguém.
- Não foi o que eu ouvi – Liesel ouve outra garota responder – parece que a Grete e a Rebekka estavam se encontrando com alguns garotos de madrugada...
- Garotos?! Aqui?! – outra comenta animada, e logo ganha olhares de censura de algumas de suas colegas – que foi?! Eu não fiz nada!
- E eu acho que não é da nossa conta – Mathilde, a monitora do segundo dormitório, intervém na discussão – parem com as fofocas, ou eu vou avisar a professora.
Mathilde se afasta, com olhares de raiva das garotas repreendidas em suas costas.
- Ain, não fofoquem, não conversem, não façam nada! Olhem para mim, como eu sou certinha! – uma garota imita a monitora, fazendo careta e voz de falsete.
- Ei, o que é isso?! Sua saia está um milésimo de dedo acima do permitido! Eu vou contar tudo pra professora! – imita outra.
- Coma como uma dama! – adiciona uma terceira garota – onde estão seus modos?! Que falta de etiqueta!
- Eu lá tenho cara de produto pra ter etiqueta? – brinca a primeira garota, fazendo as outras rirem, mas logo elas são silenciadas por um pigarreio às suas costas. A professora encara as fofoqueiras por alguns segundos antes de deixá-las, sem dizer nada.
- Uau, essa foi por pouco – uma delas comenta, baixinho.
- Quanto será que ela ouviu?
- Acho que nada.
- Segundo grupo, entrem! – uma voz anuncia lá do começo da fila.
A água é gelada, mas por ser verão, suportável. Ainda assim, Liesel se banha o mais rápido possível e, ao sair, veste o uniforme da Academia: camisa branca com o escudo em amarelo e marrom do lado esquerdo do tórax, saia cinza lisa na altura dos joelhos, meia-calça, suspensórios cinzas e colete cinza-escuro. Com um sutil suspiro de desgosto, ela guarda o pijama na mochila e volta para o quarto para devolvê-la embaixo da cama, antes de se dirigir ao refeitório com o resto do grupo do segundo dormitório.
São três dormitórios, cada um com oito estudantes, a maioria da classe de Liesel e algumas do ano seguinte. O convento é um destino tradicional de viagem da escola de Liesel, e embora não seja obrigatório, existe uma certa pressão da escola para participar. A princípio, ela não queria ir, mas seus pais a obrigaram. Seu pai dizendo algo sobre ensiná-la melhor sobre “disciplina” e a “admirável vida daquelas que escolhem doar sua vida a Deus”. Já sua mãe, pareceu encarar tudo como uma viagem de turismo, repetindo várias vezes nos últimos dias “é uma vergonha que você nunca tenha conhecido a Áustria! É um lugar tão lindo”, comprando roupas, dando sugestões de lugares para visitar e pedindo para trazer lembranças.
Acontece que não há muito tempo livre. Existe uma grade horária consideravelmente rígida para ser seguida, e mesmo no tempo livre, é preciso agendar com antecedência com as professoras caso queiram sair para ir visitar a cidade, o que obviamente aconteceria com a supervisão de alguém, e de qualquer forma, Liesel não está especialmente interessada em nada.
Um café-da-manhã silencioso e sem-graça, onde come um pão com margarina sem gosto e bebe uma caneca de leite com chocolate fria. "É ainda pior do que comer em casa", ela reflete. O pequeno mutirão de sempre onde as estudantes lavam sua louça e limpam a sujeira do refeitório. Uma hora de estudo bíblico com uma das freiras do local, que apesar do tom arrastado e maçante de sua voz quando lê os salmos-alguma-coisa e versículos-qualquer-coisa, parece muito animada em dar aula, à sua própria maneira de demonstrar animação, claro. Hoje no entanto, ela tenta algo diferente. Chegara dizendo que estudariam Romanos, e em vez de ler por si mesma, anunciara que cada estudante leria um verso.
- Primeiro verso. Srta. Rauschenberg, por favor – pede a freira, e uma garota sardenta, de cabelos negros e olhos azuis se levanta, com um exemplar da bíblia em mãos.
- Ah, certo – ela encolhe os ombros e demonstra um pouco de nervosismo, mas parece satisfeita. Pigarreia e começa, num tom alto e visivelmente esforçado para manter a clareza – “Paulo, servo de Jesus Cristo, chamado para ser apóstolo, separado para o evangelho de Deus”.
- Muito bem. Schwarzenbach – Rauschenberg torna a se sentar, ainda bem contente com seus segundos de fama, enquanto Liesel se levanta, e entediada, começa. “Ainda bem que fiquei com um verso curto”, agradece em pensamento.
- “que ele antes havia prometido pelos seus profetas pelas santas Escrituras”.
- Bom. Steinbach – Liesel se senta e uma terceira garota se levanta, e verso por verso, a sessão de leitura se segue, ininterrupta por vários minutos. É uma experiência bastante maçante.
- Próximo verso. Bähr – imediatamente, burburinhos atravessam a sala entre as garotas do primeiro dormitório. Uma garota alta, de cabelos channel negros e olhos castanhos se levanta lentamente. A garota ao lado dela a segura pela mão. É como se as duas trocassem mensagens pelo olhar – meninas, quietas. Hasselhoff, largue ela.
Grete Hasselhoff, uma baixinha troncuda e encrenqueira com o rosto coberto de sardas, lança um olhar de desprezo para a freira e leva alguns segundos para largar a amiga, a quem Liesel não conhece o nome. É uma garota do ano seguinte que está sempre quieta em seu canto lendo alguma coisa e evitando contato social. De certa forma, isso faz Liesel simpatizar com ela. Grete, por outro lado, desperta sentimentos mistos em Liesel. Ao passo que ela a admira por sempre desafiar os professores e ter coragem de fazer coisas que ela nunca faria, ela também se incomoda pelo quanto a garota consegue ser barulhenta e inconveniente vez ou outra.
- Bähr, comece a ler logo – a garota passa os olhos pelo verso rapidamente e troca olhares com Grete mais uma vez. Liesel identifica uma dor reprimida nela.
- “Pelo que Deus”...
- Ela não quer ler, professora – Grete anuncia subitamente, numa voz alta e rascante, interrompendo a baixa, doce e insegura da outra garota.
- Me desculpe? – a freira estreita os olhos, surpresa por ter sido desafiada por essa garota de 12 anos.
- Você quer ler, Rebekka? – ela pergunta à outra. A garota alta balança nervosamente a cabeça, em negação – viu?
- Bom, eu sou a autoridade máxima nessa sala, e eu estou mandando você ler – ela se dirige a Rebekka – e você, Hasselhoff. Nem mais uma palavra, ouviu?
Liesel se lembra vagamente de ter ouvido os nomes das duas mais cedo. Algo a ver com a comoção de ontem, acha. Mas não tem certeza. Seja o que for, Grete cruza os braços com uma expressão claramente contrariada no rosto, mas obedece. Liesel consegue sentir um clima tenso na sala. Embora o silêncio se mantenha, dá pra ver no rosto das colegas o quanto elas querem fofocar sobre o que está acontecendo.
- Vamos lá, Bähr. Leia.
- “Pelo que Deus os entregou às paixões infames. Porque até as suas mulheres mudaram o uso natural do que é contrário à natureza.”.
- Viu? Não foi tão difícil assim, não é? – Rebekka torna a se sentar, sem responder. A expressão corporal dela é uma que Liesel conhece bem: ombros encolhidos, cabeça baixa, os músculos do rosto contraídos numa tentativa desesperada de evitar as lágrimas. Grete, por outro lado, parece prestes a xingar a freira com todos os nomes que a mente aprendiz de delinquente de uma pré-adolescente poderia imaginar – Hasselhoff. Já que está com tanta vontade de chamar a atenção, você pode ler o próximo verso.
Grete, no entanto, permanece em silêncio, e encara sua professora cheia de ódio e desprezo. De alguma forma, Liesel consegue se identificar ali. Ela sutilmente cobre a boca com uma das mãos e abaixa o rosto para esconder o inevitável sorrisinho que insiste em se formar.
- Hasselhoff! Está me ouvindo?
- Primeiro quer que eu fique quieta, depois quer que eu fale... tá, tá. Já vai, espera – ela resmunga, folheando o exemplar da Bíblia à sua frente, que se encontrava fechado até então.
- Sendo mal-educada com suas professoras. Intrometendo-se nos assuntos de outros estudantes. Sequer acompanha a leitura da sala. E acho que nem precisamos falar do que aconteceu ontem, não é, srta. Hasselhoff? – Grete revira os olhos em desprezo e começa a ler.
- “Semelhantemente, também os vagões...”
- “Varões” – corrige Rebekka, baixinho – de-desculpe...
- “... também os varões” – Grete volta, sem retrucar, apesar do olhar de reprovação da professora tanto a ela quanto à garota ao lado – “deixando o uso natural da mulher, se inflamaram em sua sensualidade uns para com os outros, varão com varão, cometendo a...” – ela para por um segundo – o que caralh*s é “torpeza”?
A freira e mais duas ou três alunas se sobressaltam à menção da palavra de baixo calão da mesma forma que o pai de Liesel naquela vez que perdeu um “excelente contrato” com uma empresa estrangeira. O restante da sala, embora também perceba alguma gravidade na situação, não faz mais que desviar o olhar e comentar algo com a colega ao lado.
- Srta. Hasselhoff, talvez você tenha perdido a noção, ou talvez você nunca tenha sido ensinada corretamente! – reclama a freira, escandalizada. A aluna encrenqueira parece legitimamente surpresa pela reação da mulher mais velha, e claramente não vê nada de errado na forma como perguntou. Entretanto, logo ela volta à sua expressão de desprezo habitual.
Esse é um dos momentos que Liesel a admira pela sua coragem de desafiá-las. Embora ela própria também tenha se assustado com a pergunta repentina, ela logo se pegou, cheia de culpa, admirando a colega-problema. “Eu nunca teria feito isso”, ela pensa. “Teria pedido desculpas logo em seguida”. Grete, por sua vez, solta um impetuoso e indiferente “tá, tá”, mas a freira não desiste de passar os cinco minutos seguintes lhe dando um enorme sermão sobre não ter respeito pela instituição nem por suas colegas, e mais algumas coisas às quais Liesel não ouviu por ter se distraído na metade do caminho. Ela tem certeza que Grete já havia saído do ar muito tempo antes. Isso também é admirável...
- Posso continuar? – ela pergunta, quando a freira finalmente toma um segundo para respirar. As duas trocam olhares mortais por alguns segundos, antes que a mais velha autorize sua aluna – deixa eu ver... “varão com varão, cometendo a torpeza”... que diga-se de passagem, ninguém me explicou ainda o que significa, “e recebendo em si mesmos a devida recompensa do seu erro”.
- Vamos voltar nesses versos mais tarde. Enquanto isso... srta. Ballack, continue, por favor.
Quando o último verso é lido, o clima tenso ainda não se dissipou. Grete encara a freira com tanta intensidade que dá um pouco de medo em Liesel.
- Sim, Hasselhoff? – pergunta a freira. Grete abre e fecha a boca sem dizer nada. Parece furiosa com algo.
- Nada – termina por dizer.
- Foi o que eu pensei. Bom, que tal discutirmos alguns pontos?
- Professora, eu tenho uma dúvida – uma garota no fundo da sala levanta a mão.
- Diga, srta. Brahms.
- Eu não sei se entendi. Minha mãe me disse que esse capítulo é sobre Paulo ensinando o evangelho aos romanos, mas não parece que ele tá só criticando eles?
- Nós só lemos a primeira parte, por enquanto. Tenha calma. Mas sim, sua mãe está certa. Mais alguma pergunta?
- Eu! – uma garota no fundo da sala levanta a mão – o que é “estulto”?
- Insensato, estúpido – explica a freira – alguém mais?
- E “torpeza”? – pergunta Grete, sem levantar a mão – você não me respondeu até agora.
- “Infâmia”. Você deveria prestar mais atenção nessa palavra e principalmente nesse verso, srta. Hasselhoff. O mesmo vale para você, srta. Bähr.
- S-sim, senhora... – Rebekka Bähr responde baixinho, e abaixa os olhos para a sua Bíblia. Grete, por outro lado, cruza os braços e encara a professora com raiva.
- Algum problema, srta. Hasselhoff?
- Nada.
- Foi o que pensei. Alguém tem mais alguma pergunta?
Nos dias seguintes, boatos sobre a homossexualidade de Grete e Rebekka se espalhariam, embora não fossem os únicos. Blasfemando às escondidas? Se encontrando com garotos? Fugindo durante a noite? Ateísmo? Quem sabe? Seja o que for, exceto pelas professoras do colégio e as freiras do convento, ninguém realmente sabia o que havia acontecido para a sutil perseguição às duas durante as aulas e fora delas. Normalmente quieta e solitária, Liesel logo identificou as duas numa situação similar à sua, exceto que elas não a haviam escolhido.
“A ira de Deus recairá sobre eles”, ela se lembra de ter ouvido seu pai comentar algumas vezes quando menor, embora não se lembre das situações com precisão. Embora não tenha sido dita dessa exata mesma forma, Liesel consegue ouvir todas as suas colegas dizendo a mesma coisa com os olhos às duas garotas: tanto à submissa Rebekka, que tenta consertar seus erros e se reintegrar à escola e à igreja, quanto à encrenqueira Grete, que parece não fazer questão nenhuma de melhorar.
Isso também é admirável. Afinal, quem no mundo desafiaria a vontade de um ser que pode tudo e sabe tudo? Liesel treme só de pensar em desobedecê-lo...
Viena, Áustria
Saída de Wien Hauptbahnhof, num trem para Munique
29 de junho de 2009
07:42
Assim como em todo o resto daquelas férias – se é que pode-se chamar o período mais ditatorial da sua vida até então de “férias” – as alunas da Academia Dâmaso II haviam acordado bem cedo naquele dia. Entretanto, sem mais obrigações morais, aulas de catequese, e milhares de regrinhas estúpidas até sobre quais peças de roupas podem usar, mesmo quando fora do convento – isso nas poucas vezes que podiam sair – e nem os olhares rígidos e julgadores daquelas freiras de sotaque austríaco, ou a presença sinistra daquele padre velho que conduzia as missas na capela próxima. Não, nada disso: dessa vez, acordavam cedo para finalmente pegar seu trem de volta para Munique, e realmente dar início ao que “férias” deveriam ser. Nenhuma das viagens idiotas do seu pai pode ser tão ruim quanto isso.
- Até nunca mais, Áustria – ela pensara consigo mesma, quando o trem começara a andar. Sua mãe passara as últimas semanas antes de vir enchendo seus ouvidos sobre o quanto o país era lindo e maravilhoso, mas nunca viu nada disso nesse quase um mês vivendo ali. E espera nunca mais ver.
A maior parte do vagão está ocupado pelas garotas da Academia. Haviam sido separadas em duplas para a viagem de volta, onde uma deve cuidar da outra. A dupla de Liesel é uma garota alta e gordinha, de cabelos loiros e bochechas rosadas, chamada Hilda Schildkraut. Ela conversa animadamente com as duas garotas da dupla nas cadeiras ao lado, o que é uma bênção para Liesel. A garota não parava de tentar puxar conversa com ela antes de entrarem no trem. Sem ninguém a incomodando, ela sutilmente escorrega seus fones para dentro das orelhas e tira um caderno de desenhos de dentro da mochila. Começa a folheá-lo.
Durante as noites entediantes no convento, onde só podiam usar o celular às escondidas e ler a limitada biblioteca local, onde a maioria dos livros eram chatos demais para merecer sua atenção, Liesel tivera um pequeno momento de inspiração a partir do qual começou a desenhar suas colegas. Não de forma realista no entanto, e sim de forma simbólica. As suas colegas que mais lhe chamavam a atenção começavam a ser desenhadas com suas características físicas mais chamativas, para depois serem, aos poucos, transformadas em criaturas mitológicas, ou seres idealizados, ou seja lá qual fosse a ideia que viesse à sua mente.
A primeira da lista fora Mathilde Löw, a monitora do seu dormitório. Primeiro, seus grandes e alongados olhos azuis foram desenhados, logo ganhando a companhia de seus cabelos negros e lisos divididos ao meio. Entretanto, em vez de completar o desenho com o corpo normal de uma garota de 13 anos em seus uniformes escolares, ela lhe dera uma reluzente armadura dourada e um carro de guerra da Grécia Antiga, igual ao que vira em representações de Ares na internet, sendo puxado por dois cavalos, um branco e o outro negro. Não foi algo exatamente racional, Liesel apenas teve a ideia na hora e desenhou tudo de forma instintiva. Entretanto, se a perguntassem, ela responderia algo vago, usando termos como “destaque à disciplina”, “proteção”, mas também “conflito” e “medo”. Ela tem certeza que viu em história algo sobre Ares ter dois filhos e eles representarem o “medo” e o “terror”. As cores dos cavalos dizem respeito à dualidade do que ela representa, mas Liesel acha que viu em algum lugar algum desenho de Ares onde ele possuía um cavalo de cada cor. Depois que pensou nisso com mais calma, Liesel começara a achar que foi uma boa ideia compará-la ao deus grego da guerra, mas ao menos a ideia de representá-la como uma espécie de “paladina” que traz ambos, proteção e caos, é algo que pode ser reciclado.
É o desenho da segunda página que mais chama sua atenção, no entanto. Se trata de uma garota abraçada aos próprios joelhos, com a maior parte do rosto escondida entre os braços. Os cabelos curtos e bagunçados num tom sujo de loiro, os olhos irritadiços e ao mesmo tempo magoados, e as sardas entre eles, denunciam Grete Hasselhoff. Ela não usa os uniformes do colégio, nem as roupas elegantes que ela tem certeza que a garota foi forçada a utilizar nos eventos da escola. Em vez disso, traz uma jaqueta de moletom verde-água e calça jeans, um estilo que, ao menos na cabeça de Liesel, parece condizer muito mais com a imagem da colega. Nas costas dela, o principal: asas. Liesel sempre ouviu falar que anjos possuem asas, e normalmente os vê representados como grandes asas brancas, e normalmente vê o negro ser usado como referência à crueldade e corrupção. Não foram poucas as vezes que viu demônios sendo representados com asas quase iguais às dos anjos, exceto pela cor. Por isso, essa versão mais livre e natural de Grete também possui asas, não brancas ou negras, mas sim, cinzentas. Ao menos, na maior parte. As pontas das asas possuem um sutil efeito de degradê para tons claros de várias cores: azul, verde, amarelo, rosa...
Liesel folheia seu caderno, passando por outros desenhos. Até são decentes, mas nenhum chama tanto a sua atenção quanto “O Anjo Cinzento” – o nome que Liesel dera à sua obra representando Grete.
Munique, Alemanha
Rock Dungeon
21 de fevereiro de 2015
14:30
Naquele fim de semana, Liesel voltara a Munique. Dois ou três dias longe de Braelynn e seu festival cor-de-rosa parece uma bênção aos olhos dela, mas principalmente, ela está interessada na chance de assistir mais algum show do Deaf Rats antes de voltar para a França, embora não ache que isso será possível: não tem nada anunciado em nenhuma das páginas da banda na internet.
Por isso, naquela tarde fria e tediosa, para evitar compartilhar o mesmo teto que seus pais por ao menos algumas horas, Liesel decide sair pela cidade. Desce num ponto de ônibus aleatório num bairro comercial, caminha sem rumo pelas ruas de sua cidade-natal como uma turista perdida, e por fim, por sorte do destino, encontra uma interessante lojinha de letreiro negro e um metal pesado com um canto incompreensível soando do lado de dentro, e entrou para conferir.
O atendente, um homem de mais de 1,80 com barba loira, cabeça raspada e roupas de couro, na casa dos 40 anos, assente para a garota quando ela entra, sinalizando para que fique à vontade. O lugar não é muito iluminado e parece bastante vazio. Prateleiras e mais prateleiras com CDs e DVDs de diversas bandas, das mais famosas às mais obscuras, cobrem o lugar de ponta a ponta – não que a loja seja muito grande. Contendo um sorriso de prazer, Liesel se volta ao atendente.
- Isso é Mayhem? – ela pergunta.
- Sim. “De Mysteriis Dom Sathanas”. Da pesada, né? – o homem responde, numa voz grave, e sorri com orgulho do seu gosto musical.
- É legal – nesse momento, um garoto baixinho, de boné e jaqueta pretas, calça jeans surrada e tênis com cadarço desamarrado, mais ou menos da altura da Liesel, sai de trás de algumas estantes carregando uma pilha de CDs e DVDs. Ele tem um andar meio gingado, o que faz Liesel estremecer com o pensamento de que uma hora ou outra ele ainda vai derrubar tudo, mas ele chega ao balcão com toda a mercadoria em segurança.
- Aí, viado. Quanto dá? – ele pergunta, numa voz desafinada. Nesse momento, Liesel começa a se questionar se não confundiu o seu gênero.
- Caramba... um momento – o atendente tira uma calculadora debaixo do balcão e começa a separar os CDs dos DVDs – um, dois, três, quatro...
- Ei, eu não te conheço de algum lugar? – pergunta o garoto, ou garota, se virando para Liesel. Ela dá de ombros. Tem algo nessa pessoa que não lhe é estranho de fato, mas a ansiedade de Liesel só a faz torcer para que não estejam tentando lhe dar uma cantada clichê.
- Grete, você tem dinheiro pra pagar tudo isso, por acaso? – pergunta o atendente, desconfiado. “Grete?”, se pergunta Liesel. “Onde foi que eu ouvi esse nome, mesmo?”. Ao menos, pode confirmar que seu primeiro julgamento realmente foi errôneo.
- Claro que tenho! – se indigna a garota, e tira duas notas amassadas de cinquenta euros do bolso.
- É, valeu – ele guarda as duas notas na caixa registradora.
- Ei! E o meu troco?
- Você tá me devendo da última vez, lembra? Sem contar aquela camisa que você nunca me pagou.
- Tem camisas aqui também? – interrompe Liesel, interessada.
- Ah, não. Eu ajudei a barraca de um amigo num festival ano passado, já que ele tava doente – explica o atendente, antes de se voltar à sua outra cliente – não é só porque a gente se conhece que você pode ficar pegando tudo de graça, Grete.
- Hunf! Eu tô pagando! – chia a outra – tá, tá! Tanto faz! Pera aí, quem é você, mesmo?
- Li-Liesel – ela gagueja, assustada pela postura agressiva da outra garota. Mesmo sendo pequena quanto Liesel, ela parece bem mais robusta e durona. Faz Liesel pensar que ganharia um belo soco na cara se dissesse algo que a irritasse. Ainda assim, esse “tá, tá” lhe desperta algo.
- Liesel... Liesel... – Grete fecha os olhos e apoia o queixo numa das mãos, pensativa. Subitamente, Liesel se lembra dela. A garota sardenta e encrenqueira que foi pega tendo um caso homossexual com outra aluna, lá na época do ensino fundamental. Ela engole em seco e tenta não demonstrar ter se lembrado. Espera que a outra também não lembre. Entretanto, logo Grete torna a abrir os olhos e sorri abertamente – ah, já sei! Você é a filha daquele ricaço que ficava desenhando lá num canto!
- Sim, sou eu – retruca Liesel, seca. Ela dá as costas aos dois e se embrenha no corredor. Não trouxe dinheiro vivo, mas tem seu cartão. Com o dinheiro da sua mesada, provavelmente poderia comprar tudo dentro da loja, mas não gosta de esbanjar, nem de parecer a burguesinha que realmente é. Para o seu desprazer, Grete vem logo atrás, pendurada em seu cangote. Ela se lembra de ter sentimentos mistos em relação a ela naquela época, e aos poucos se recorda das razões: sua inconveniência era uma delas.
- Caralh*, fazia tempo pra porr* que a gente não se via! Eu nunca imaginei que veria alguém daquele antro de crentes do caralh* numa lojinha dessas! Ah, pera, você ainda é crente?
- Não – retruca Liesel, desejando que a garota a deixe em paz.
- Ah, ainda bem! Eu não iria querer te ofender. Você deve ser a única daquela época que nunca pegou na porr* do meu pé.
- Hm – Liesel tira “Love Me in Black”, álbum de Doro Pesch, de uma prateleira.
- Mas também foi uma pergunta idiota! Até parece que aqueles retardados iriam ouvir música de verdade!
- É... – “isso é verdade”, Liesel concorda em pensamento, mas não se atreve a dar corda pra outra. É difícil ver qualquer uma daquelas garotas ouvindo algo além de pop e a música religiosa dos avós delas.
- Doro Pesch é foda – comenta Grete – mas também só tem coisa foda nessa loja. Pera, era Liesel de quê, mesmo?
- Schwarzenbach.
- Posso te chamar só de Liesel mesmo?
- Como quiser.
- Liesel! Acrassicauda ou Miasthenia?
- Oi? – ela estreita os olhos para a outra. “Ela tá zoando comigo?”, se pergunta.
- São bandas – esclarece Grete, com um quê de decepção – você não conhece? – Liesel sacode a cabeça em negação. Grete rapidamente tira o celular do bolso e já vai enfiando os fones nos ouvidos de Liesel – ah, mas vai ter que conhecer agora!
Antes que Liesel tenha a chance de negar, um instrumental magnífico começa a ser tocado. Ela fica com a boca ligeiramente aberta, a meio-caminho de dizer algo à velha conhecida, enquanto se afoga sedenta nos riffs frenéticos da guitarra, e um vocal que canta palavras incompreensíveis começa. “Alemão? Inglês?”, ela não consegue identificar a língua, mas logo esquece desse objetivo. Parece algo pequeno demais, um mero detalhe quando as ondas sonoras deixam esse fone barato e percorrem suas veias como uma droga, anestesiando toda a dor que o resto do mundo lhe causa.
Tudo acaba tão rápido quanto começara, e Liesel dá com um sorrisinho orgulhoso de Grete.
- Foda, né?
- Que banda é essa?
- Miasthenia. Metal brasileiro – explica ela – vai querer ouvir a outra?
Fim do capítulo
Capa da história > https://www.facebook.com/OsCretinosOficial/posts/3378259229077766/
Capa do capítulo > https://br.pinterest.com/pin/852869248168890463/?nic_v2=1a6dwOTay
Enseada Negra no Kindle: https://www.amazon.com.br/dp/B08NGTCZP9
DE GRAÇA ATÉ DIA 23/11!
Comentar este capítulo:
Raf31a
Em: 15/10/2020
Adorei o primeiro capítulo e espero que continue. Obrigada por compartilhar conosco e parabéns pelo modo como escreve... Já favoritei para não perder os 4 capítulos seguintes.
Abçs!
Resposta do autor:
vou continuar sim, todos os cap já estão prontos e eu pretendo postar 1 por semana até acabar :v
obrigada por ter lido e comentado :3
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