Parte I
O tempo é, talvez, um dos maiores artistas da vida. Porque ele lapida, quilate por quilate, a vida de cada pessoa. Ao nascer, cada ser tem em si um potencial de ser muitas coisas – que fogem um pouco do quesito “bom” ou “ruim” porque isso é muito subjetivo, às vezes. Somos sementes fadadas a sermos muitas coisas (inclusive o que queremos ser). E com Júlia não era diferente.
Filha do meio de uma família dita comum, ela teve a liberdade de escolher o que ser – e por algumas épocas vagou no terreno do “não ser”; não queria “ser” nada. Apenas ela. Então só vivia e a vida lhe trazia as situações (não é assim com todo mundo?). Andava na corda-bamba dos dias.
Mas em dado momento assumiu as rédeas da própria vida. Percebeu que assim era mais fácil se responsabilizar pelos acontecimentos – muito melhor do que simplesmente se culpar, depois. E aí passou a decidir até o que não queria decidir. Acontecia, também.
Ela, no fundo, sabia que mesmo tendo lá as suas metas estipuladas, a vida se encarregava de ter as suas próprias missões. Às vezes a gente se programa, mas existem outras programações, reservadas para cada uma de nós, e a gente nem fica sabendo (só depois).
Quando mais nova, queria ser atleta. Era hiperativa, fazia sentido. Imaginava sempre que estava a galope, montada num cavalo imaginário. Ele trotava; ela também. Sua mãe dizia que ela não parecia saber andar; só corria. Lhe dizia também que não chegaria aos 15 com todos os dedos dos pés inteiros (vivia se machucando, estava sempre com pressa, era difícil calcular todos os seus movimentos).
Fez atletismo, praticou futebol de salão, vôlei e basquete (mesmo com baixa estatura). Se locomovia sempre de bicicleta e patins. Só parou de subir em árvores aos 11, e só porque uma vizinha a traumatizou, fazendo-a amadurecer cedo demais (na ocasião questionou se ela não estava “muito grandinha” para ficar pendurada nos galhos). Ela só não despencou da árvore naquele dia porque era extremamente ágil. E também porque conhecia aquela árvore desde mudinha.
Há pessoas que têm o dom de alterar alguns cursos de vida e nem se tocam que são pedras.
Outras nos transformam e sabem do impacto causado. Nós mesmas exercemos esse papel na vida de alguém, eventualmente, alguma vez.
No passado os pais de Júlia eram pessoas sociáveis, então era comum acontecerem churrascos, eventos, festinhas – na sua casa ou na de seus amigos. Ela participava porque nesta fase ainda não tinha muito poder de decisão. Mas não reclamava. Era divertido. Por causa disso, de certa forma, aprendeu a cozinhar salsicha, ainda nova – a primeira receita que dominou na cozinha, depois de café. Refoga cebola, pimentão e tomate e voilà. Junta o molho e é um cachorro-quente de primeira.
Talvez por isso, anos mais tarde, esse refogado era a base de muitas das suas comidas.
Dentre as pessoas que circularam com frequência na sua juventude havia uma família mais próxima: pai, mãe e quatro filhas – Alexia, Esther, Isolda e Úrsula. Sim, um acrônimo de quase todas as vogais. As idades das meninas era mais ou menos a mesma, não era lá muito difícil socializarem. Mas a afinidade maior era com Isolda. Sei lá, “o santo batia”.
Brincavam de casinha, esconde-esconde, jogos de tabuleiro, mímica, Lego, Playmobil. Brincaram até de médico uma vez, aos dez, mas a mãe de Júlia quase as flagrou, e aí ficaram com medo de repetirem. Só porque pareceu errado (porque tinha sido uma brincadeira bem gostosinha!).
A vida parecia normal com Isolda. Não sei, diferente. Se compreendiam de um jeito especial.
E aí, toda aquela energia de Júlia, tão típica, tão dela, foi se assentando a cada brincadeira, a cada festinha, a cada nova receita aprendida, e a vida se encarregou de trazer novas amizades (para ela, para os pais, para Isolda e sua família quase alfabética). E então as pinceladas do Senhor Tempo lhe apresentaram duas ferramentas antagônicas, que lhe forjaram, lhe deram nova forma: maconha e meditação. Tornou-se tão pacata e tranquila que não corria para mais nada (nem mesmo para se exercitar, apesar de ter planos para isso, um dia).
Meditava ao fumar. Quando fumava, meditava. Só às vezes esquecia.
Era notável (ainda é) como a cada minuto a gente se transforma um pouco. Reforçam-se alguns traços de personalidade, contornam-se outros. E, como em qualquer caminhada, nem sempre se notam os passos, um por um, apesar de sabermos que eles é que constituem o tudo; que sem eles não se chegaria a lugar algum.
Júlia não via seus passos; não sentia o chão sob a sola de seu pé, quase sempre descalço. Tampouco percebia o que ia ficando pelo caminho – tudo o que vamos deixando para trás, para que a caminhada seja mais leve. Quanto que se abre mão para se ter mais e nem se nota! Vão-se os dias, as pessoas, as rotinas. Mudam-se os cenários, os diálogos, os anseios.
De repente a gente vira aquelas pessoas que nem reconheceria se visse na rua. Mudamos muito além da aparência.
Na vida adulta quase ela já não tinha aqueles traços pueris. Mas era, ainda assim, o resultado daquela semente inicial. Lá dentro ela ainda era ela. Júlia só se esquecia disso, eventualmente. Ou não pensava a respeito. Apesar de sua mente invariavelmente voltar para aquelas tardes de verão no clube de campo, quando acampava e se divertia. Muitas vezes na convivência com Isolda.
É curioso como a gente não percebe a mudança de tudo conforme os dias avançam. Há muitos casos em que não percebemos nem mesmo a própria mudança dos dias. Eles só se apresentam, e se vão, como ocorre com as ondas do mar num dia de praia. Nos acostumamos com tudo, até com o que não deveríamos nos acostumar, por exemplo, com o passar da vida (que está longe de ficar num vai-e-vem, apesar de às vezes ficarmos com essa impressão). Os pés vão se afundando e ninguém mal nota. Se nota, reclama (porque há uma tendência de a vida ir perdendo a magia, conforme avançamos na linha do tempo de nossos dias).
Deveríamos aplaudir cada pôr do sol, cada respirar, cada primeira estrela que surge no céu que escurece.
Não era sempre, mas às vezes Júlia se pegava olhando para o céu e pensava nisso: em como somos bobos de nos permitirmos nos poluir depois de crescidos. Isso anos mais tarde, quando essa história aconteceu.
Fim do capítulo
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Manuella Gomes
Em: 25/08/2020
Gostei desse capítulo de introdução.
Forte as suas palavras.
Resposta do autor:
Que bom que gostou!
Eu tava bastante inspirada!rs
Aja Rocha
Em: 13/08/2020
Olha só temos novidades.
Primeiro gostei da capa, toda bonitona e tal.
Mas só vou ler um capítulo por dia, depois fico arrependida porque li tudo como fiz com Sol e lua (eita esqueci o nome 😅).
Sempre imagino você falando essas sinopses, de forma espontânea e com gracejo.
Gosto dessas suas personagens tão cotidianas e possíveis de existir, cheias de pensamentos divertidos. hahaha.
MAS CADÊ O CAPÍTULO DO OUTRO ROMANCE EIN EIN CARIBU
Resposta do autor:
hahahaha
Tô testando um negócio aí rsrs
("Sorte e Sol", o outro livro rs)
E esse conto aqui só vai ter 3 partes. Tô escrevendo a terceira (também é algo que estou testando rs).
Minhas personagens existem, de certa forma, em alguma dimensão <3 E são nossas, não sou apegada rsrs
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