Capitulo 75 - A última escolha
Vinte anos se passaram. Vinte anos de uma eterna lua de mel. Vinte anos morando no Canadá, construindo e cultivando laços familiares. Helena se tornou chefe de seu departamento, enquanto Thaísa abriu sua própria clínica de Pediatria, ambas em Toronto. Guilherme, Flávio e Horácio se tornaram inseparáveis, e, para completar, o casal de médicas teve outra criança pelo mesmo processo de fertilização, dessa vez uma menina chamada Valerie.
A família da mãe de Helena aparecia pelo menos duas vezes por ano no Canadá para celebrar algum feriado ou curtir o período natalino. Nicole, do mesmo modo, tentava ir junto para passar um tempo com os sobrinhos.
De tempos em tempos, Helena fazia reuniões por videochamada para saber o andamento da Fundação que criara com Dante, que também se tornara professor de uma prestigiada Universidade particular da capital, enquanto sua esposa Lívia se consagrara na área de Infectologia em Saúde Pública, além de fazer sua parte em ser vice-coordenadora da fundação, acompanhando ao lado de seu marido cada web-encontro e decisão. Mas a reunião da vez seria um pouco diferente. Helena utilizou o jato que seu pai acabara de comprar para visitar o Brasil, que há muito tempo não via.
Ao chegar, foi recepcionada por Nicole, que lhe deu um abraço forte e apertado.
“Eu ainda não consigo acreditar. ” Nicole luta para não chorar.
“Eu também não, Ni.” Helena suspira.
“É essa a urna dela? ” Ela aponta para um objeto em cima das malas.
“É sim. Uma vez, quando conversamos sobre isso, ela queria que parte das cinzas ficasse com seus pais, e parte fosse jogada no mar. Pensei na Baixada Santista, pois ela me contou que era uma das praias favoritas de vocês. ”
“Era sim, adorávamos ir para lá quando ela era criança...” Nicole limpa uma lágrima teimosa que escorre. “Você quer que eu entregue para meus pais? Posso fazer isso, assim você não precisa se preocupar. ”
“Não, eu mesma quero fazê-lo. ”
________//________
Helena dirigiu-se a casa de seus sogros levando em uma urna menor, parte das cinzas de sua esposa. Transferiu as músicas de seu celular para o painel do carro elétrico alugado para poder se distrair enquanto sua mente passava mil e uma memórias. Na playlist, músicas que ouvira no início do relacionamento, que marcaram, que a faziam sentir falta de escalar árvores e pular janelas. Entre as músicas, uma gravação de karaokê que se salvou no meio da pasta, escutava-se Thaísa cantando sucessos da trilha sonora de Titanic, que fizeram Helena desabar em prantos e memórias do saudoso dia que viajaram com seu filho Guilherme em um cruzeiro para famílias LGBT, onde puderam partilhar histórias, cantar e viver por alguns dias em um microcosmo de pessoas que lhes entendiam.
“Thaísa, só você para cantar músicas do Titanic no meio de um cruzeiro. ” Helena fala em voz alta, por um momento imaginando Thaísa ao seu lado. “Por que você não está mais aqui? ” Ela se pergunta. “Você me prometeu que envelheceríamos juntas. Isso não é justo. Você me prometeu! Você me prometeu! ” Helena bate com força no volante, deixando sua mão vermelha.
Nicole sugeriu acompanhá-la, mas a médica insistiu em fazer isso por conta própria. Tocou a campainha e foi recepcionada pela empregada da casa, que a levou até a sala, e logo chamou os donos da casa.
“Dra. Helena? ” Nicolau aparece com a esposa.
“Sr. Bragança, sra. Bragança...” Quando Helena os vê, seus olhos se enchem de lágrima.
“Esta é...” Nicolau aponta para a pequena urna.
“Sim, ela pediu para que o senhor e sua esposa ficassem com ela. ”
“Dra. Helena, Nicole havia nos contado, mas queremos saber da boca de quem estava ao lado dela como ocorreu. ” A sogra pede.
“Bem, foi tudo muito rápido... a clínica de Pediatria que ela administrava foi vítima de um incêndio criminoso. O culpado era pai de uma criança que perdeu a guarda do filho e foi preso devido a um depoimento dela na Justiça. Os policiais disseram que quando ele fugiu da cadeia, já tinha tudo planejado. Como foi no meio do dia, ela fez de tudo para salvar os pais e as crianças que ali aguardavam para serem atendidos, mas ela não sobreviveu. Eu fui a primeira a atender as vítimas, e quando vi minha esposa, fiz de tudo para me aproximar, mas meus subordinados não deixaram tocar nela. Chamaram outros atendentes da Emergência e tentaram reanimá-la, mas sem sucesso. Ela morreu intoxicada pela enorme quantidade de monóxido de carbono que aspirou.” No meio de sua fala, Helena começa a chorar.
“Obrigado por estar ao lado dela por todos esses anos.” Apesar de todo seu conservadorismo, Nicolau cede, segurando a mão da nora.
“Ela amava muito vocês dois.” Helena também confessa.
“Vocês... vocês têm filhos, não têm?...” A mãe de Thaísa comenta.
“Sim, nós temos dois.” Helena abre a carteira e tira uma foto da família que ficava guardada. “Guilherme e Valerie.”
“Será que você poderia trazê-los um dia para que pudéssemos conhecê-los?” Nicolau pede.
“Sim, com certeza. Inclusive vou voltar de vez ao Brasil então vou trazê-los comigo. ”
“Dra. Helena, peço perdão por termos feito vocês se afastarem de nós. ” A sogra, com a voz trêmula, desabafa. “Acabamos perdendo nossa filha e também a chance de acompanharmos o crescimento de nossos netos.”
“Bem... isto não é o fim. Na verdade, é o começo, vocês terão o resto da vida dos meus filhos para acompanhar. E eles ficarão muito contentes de conhecerem os avós. ”
“A mais nova é a minha cara. ” Nicolau continua a olhar a foto.
“Ela foi gerada a partir do óvulo da Thaísa, então tem mesmo várias características genéticas herdadas de vocês. Ela realmente falava que a Valerie é parecida com o senhor o tempo todo. ”
“Você vai ficar por aqui por muitos dias antes de buscá-los no Canadá? ”
“Antes de buscá-los e acertar minha vida no Canadá para voltar a morar aqui, eu só preciso fazer uma última viagem, mas não se preocupe, eu os trarei logo. ”
________//________
Para levar o resto das cinzas para a praia em Santos, Helena teve uma ideia de última hora e chamou seus velhos amigos, Dante e Lívia, além de sua cunhada. Ficaram na casa que Fran e Laura geralmente alugavam quando queriam fugir de São Paulo.
No pôr do sol, Helena colocou sua roupa de praia e foi com seus amigos para realizar o ritual. Dante levou seu violão e tocaram algumas músicas que Thaísa gostava enquanto aos poucos, Helena espalhava as cinzas de sua esposa. Nicole se emociou e acabou passando mal, até porque não havia se alimentado o dia todo, sendo levada ao hospital rapidamente para para receber eletrólitos em solução endovenosa.
Enquanto Dante e Lívia ajudavam a monitorar Nicole no quarto, Helena foi para a cafeteria do hospital. Pediu um copo de Latte, e para sua surpresa, viu um rosto conhecido jantando em uma das mesas.
“Dra. Isabel? ” Helena sorri, sentando-se de frente a outra.
“Dra. Helena? O que faz aqui?!” Isabel, surpresa, quase engasga com sua salada.
“Longa história...”
“Ah, eu... eu vi que sua esposa faleceu, vi nas redes sociais. Meus pêsames...”
“Obrigada. Vim espalhar as cinzas na praia favorita da juventude dela.”
“Que gesto bonito... e você, como está lidando com isso? ”
“Tenho meus dias bons, tenho meus dias ruins. Meu filho mais velho está bem abalado, passou a sentir ódio do Canadá. Largou a faculdade, inclusive. É por isso que estou pensando em me mudar de volta para o Brasil. ”
“Sério? Talvez realmente ele esteja precisando de uma mudança de ares.”
“Pois é. E o Rafa, como vai?”
“Está bem. Ficou bem abalado também quando meu pai faleceu há três anos, precisou fazer terapia para superar o luto. Hoje está melhor, formou-se em Engenharia Civil, acabou de se casar, mas não planeja ter filhos, segundo ele.”
“Meu filho também diz que não quer. Já Valerie diz que quer me dar pelo menos cinco netos, mas ela é adolescente ainda, e você sabe como jovens só falam bobagens.”
“Sei bem.” Isabel responde, apesar de parecer distraída. “Eu fico boba de ver que você não envelheceu um dia sequer desde a última vez que nos vimos.
“Ah, não exagera, Bel...” Helena ri, tímida. “Mas você não pode falar nada que também parece aquela mesma garota de vinte e poucos anos que eu conheci um dia.”
“Nos seus sonhos...” Isabel revira os olhos. “Enfim. Fico contente em saber que vai voltar para o Brasil. Vai ficar em São Paulo?”
“Não sei. Thaísa e eu comentávamos em nos mudarmos para o litoral depois que nos aposentássemos. Ainda falta alguns anos para mim, mas estou pensando em me tornar acionista em algum hospital. São tantas escolhas em minha cabeça que nem parei para pensar direito. ”
“A ala particular desse hospital está procurando compradores, ouvi boatos. ”
“Sério? Não sabia. Parece ser um bom hospital. ”
“É sim. Senti-me em casa desde o primeiro dia de trabalho, vinte anos atrás. ”
“Nem parece que o tempo passou tão rápido...” Helena devaneia, após um gole de seu latte.
“Pois é. Lembra-se da Jade, nossa colega? Ela trabalhou aqui por alguns anos também. Depois casou com um rapaz de Minas Gerais e se mudou para lá. ”
“Sério? Faz tanto tempo que não falo com a Jade. Acho que não a adicionei nas novas redes sociais. Hoje é tanta coisa social que já me perdi completamente. ”
“Também não consigo acompanhar. Meu filho que me ensinou a mexer nessa nova rede, senão eu nem saberia. ”
“Quem me ensinou foi um dos meus irmãos mais novos, o Flávio. Eu aproveitava que ele trabalha no escritório do meu pai e ia lá encher o saco dele para arrumar meus aparelhos eletrônicos. ”
“O que seria de nós se não fosse essa geração de mais novos, hein? ” Isabel ri.
“Não tenho nem cinquenta anos direito e já me considero completamente idosa. ” Helena ri também. “Obrigada por me fazer chorar de rir, fazia muito tempo que isso não acontecia. ”
“Lembro que uma das minhas habilidades na nossa época era lhe fazer rir, então velhos hábitos não mudam. ”
“Você me fazia rir? Suas piadas eram completamente sem graça, Bel!” Helena gargalha.
“Hey! Não me ofenda! ” Isabel revira os olhos, ainda dentro da brincadeira.
“Desculpa...” Helena continua a rir. “Mas me diga, conseguiu encontrar alguém que entendesse seu senso de humor exótico? ”
“Até encontrei, logo quando comecei a trabalhar aqui, mas nem só de senso de humor vive um casal e então desisti. ”
“Você nunca se casou? ”
“Não, achei melhor aproveitar o quanto pude, dedicar-me a meu filho, e assim o tempo foi apenas passando. ”
“Uau.” Helena não esconde a expressão de surpresa.
“Foi melhor assim. Sinto que fiz a escolha correta. E você, pensa em se envolver novamente? ”
“Bem, por enquanto não. Foi tudo muito recente, ainda estou processando a morte de Thaísa, faz apenas dois meses. Quero respeitar meu luto e o de meus filhos. Mas o futuro em si, quem sabe? ”
“Essa é uma ótima pergunta. ” Isabel aponta.
“Como assim? ”
“O futuro, quem sabe? É uma ótima pergunta. ”
“Ainda não entendi seu raciocínio. É alguma piada? ”
“Não, sua boba. Perguntar quem sabe o futuro é uma pergunta retórica muito boa. Ela tem uma resposta que pode não parecer clara, mas é. Quem sabe o futuro é quem o faz. E quem faz seu futuro além de você mesma? ”
“Acho que entendi. Mas o futuro não depende só de nós. Depende de uma série de outros fatores, de uma série de escolhas, somos apenas uma vírgula dentro da equação. ”
“Estava com saudades desse tipo de conversa profunda com você. ” Isabel mostra um amplo sorriso, revelando um canto da boca sujo de molho.
“Tem um... tem um pouco de...” Helena, em um impulso, estica sua mão e limpa o canto da boca de Isabel. “Era molho. ”
Com o coração acelerado, Isabel tentou controlar a respiração. Um simples gesto, que promoveu um breve contato físico de Helena, foi o suficiente para se tornar gatilho de centenas de memórias que passaram em uma fração de segundo. As noites que passaram juntas acordadas, as brigas, o sex* de reconciliação, os planos que nunca se concretizaram, as ações imaturas de ambas as partes que agora pareciam um grão de areia perdido no tempo...
“Helena, você volta para o Canadá quando? ”
“Amanhã, por quê? ”
“Quando estiver de volta no Brasil, quer sair para jantar? ” Isabel pergunta, sem perder tempo.
“Jantar? ”
“Sim, tem um restaurante aqui em Santos que é maravilhoso, e eles oferecem cheesecake como opção de sobremesa. ”
“Cheesecake...” Helena balança a cabeça negativamente enquanto ri da saudosa lembrança.
“Então...? Você tem uma escolha, tudo bem se não quiser. ”
“Eu quero sim. ” Helena sorri.
E naquele momento, naquela cafeteria, enquanto o céu noturno e estrelado se estabelecia, uma escolha importante havia sido feita.
Halt dich an mir fest, wenn dein Leben dich zerreisst.
Halt dich an mir fest, wenn du nicht mehr weiter weisst.
Ich kann dich verstehn.
Halt dich an mir fest, weil das alles ist was bleibt.
Revolverheld
Fim do capítulo
É isto. Último capítulo... com lágrima nos olhos digito, e espero que tenham gostado, queridos e queridas. Foi uma aventura e tanto!
Beijos!!!!
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tagigomide
Em: 12/08/2024
Oi autora! Sua história já tem muito tempo, mas cheguei a pouco nela. Devorei em 4 dias! Sua escrita é incrível e essa estória daria um filme, um seriado! Amei as Escolhas de Helena e as suas ao descrever tão brilhantemente cada personagem, cada capítulo, cada cena. Aprendi muito com você e espero ler novas estórias suas! Grande abraço!
Sem cadastro
Em: 12/08/2024
Oi autora! Sua história já tem muito tempo, mas cheguei a pouco nela. Devorei em 4 dias! Sua escrita é incrível e essa estória daria um filme, um seriado! Amei as Escolhas de Helena e as suas ao descrever tão brilhantemente cada personagem, cada capítulo, cada cena. Aprendi muito com você e espero ler novas estórias suas! Grande abraço!
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rhina
Em: 14/11/2020
Oi
Reli
Sua história vai ficar guardada em um lugar muito especial em minha memória.
Gostaria de te lá fisicamente.
Seria como um guia para os momentos confuso....complicados da minha vida.
Beijos Autora
Rhina
Resposta do autor:
Nem sei o que dizer... meus olhos até lacrimejaram aqui!!
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Nenete
Em: 12/11/2020
Parabens pela historia, final surpreendente, sempre torci pela Isabel. a Thaisa nao tinha muita quimica com a Helena, mas valeu!!!! Amei o Dante e a Livia... Bjusss....
Resposta do autor:
Obg querida! Fico feliz que o conto lhe proporcionou momentos de entretenimento!
Isabel foi uma personagem que estava destinada a causar sentimentos dúbios em quem lesse, e fico feliz por ter torcido por ela!
Beijão!
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HelOliveira
Em: 15/06/2020
Parabéns a história toda foi maravilhosa, e não escondi em nenhum momento a minha preferência pela Isabel, e no penúltimo já estava me preparando para aceitar o final com a Thaísa, e você conseguiu me surpreender com esse final.
Espero que volte em breve
Resposta do autor:
ahh fico feliz emt er surpreendido!!
Estou bolando alguma ideia para um próximo conto, mas espero tb voltar. Beijão e obrigada!
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Kelle Souza
Em: 15/06/2020
Se eu aprendi alguma coisa? Nossa.. foram tantas! A cada Capítulo que finalizava me pegava pesquisando as palavras técnicas ditas pelos medicos/ personagens rs.. refleti em cada cada parágrafo construído.
Oq posso dizer?.. obrigada! Continue... escreva... deixe fluir tudo oq se possa refletir.
Resposta do autor:
Eu que agradeço! Estou ainda pensando em alguma ideia para outro conto, mas vamos ver ainda hhahaahahuaha beijão!
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nany cristina
Em: 14/06/2020
Primeiramente meus sinceros Parabéns a autora por escrever essa bela historia adorei a estória toda, os personagens estão bem desenvolvidos, parabéns.
Te achei muito sensata no desenrolar dos acontecimentos
É normal não gosta da Isabel eu Prefiro Thaísa com a Helena
😘💋🌹
Resposta do autor:
Obrigadaaaaaaa anjo, uma das minhas mais fieis leitoras <3 muito fofa vc.
Pois é, mas pensa por esse lado, Thaísa e Helena viveram uma linda vida juntas e construíram uma família maravilhosa!
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Marta Andrade dos Santos
Em: 14/06/2020
Parabéns uma história cheia de escolhas e consequecias.
Resposta do autor:
Obrigada, querida! <3
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