Capitulo 1.
Onze horas. Chuva na janela. Vidro embaçado. Olhos de ressaca. Café dormindo e eu acordada. Exatamente setenta e duas horas que não sabia dela, nem de ninguém. Ou talvez não, porque, para mim, era como se tivesse acabado de cruzar a porta do quarto daquele hotel. Lembro vagamente da sensação de sair por cima, e de sua expressão ao me ouvir. Entretanto, a sensação que me dilacerou foi exatamente a mesma de quando eu fiquei sozinha naquele restaurante, tendo que observar suas costas enquanto ela ia. Exatamente dois anos antes. Na nossa primeira despedida. E agora que já fazia quase um mês da nossa segunda despedida... nunca que passaria pela minha cabeça que partir poderia doer tanto quanto ficar e ter de lembrar como se respira.
Passei dias e noites, sentada na mesma poltrona que ela escolhia todas as vezes em que vinha por aqui, com o coração partido. Permanecia imóvel lembrando todos os seus passos pela minha casa. Quis cruzar a janela pelo tamanho desespero que me tomou, mas cacos de vidro doeriam bem menos do que a certeza de que estávamos quebradas, que iríamos partir. Aliás... Que já estávamos partidas. Mas mesmo estática, eu conseguia sentir o cheiro de cada cortesã que suguei para matá-la dentro de mim, em vão. Tentei me curar do tanto dela que corria no meu sangue. Em vão.
Eu fiz de tudo que podia para afastá-la de mim. Não só ela, mas sua imagem por completo. Até aquela mensagem. E foi ali que eu cedi. Por curiosidade. Para ver como as coisas estavam. E deixei que ela se aproximasse... só um pouco. "Não vai acontecer nada", lembro de ter pensado. Até começarem as nostalgias. E um convite que eu poderia ter ignorado. Ou negado mesmo. Mas quem eu enganaria? Eu queria. Tudo o que eu mais queria era poder sentir aquele cheiro de novo. Reparar se era o mesmo perfume, mesmo shampoo. Deixei a saudade me inebriar e fui guiada por ela.
Tinha medo de saber o que ainda mais estava por vir. Porque tudo começou com a brincadeira nostálgica, e me lembro do momento em que encontrei a caixa no meu quarto. Ela havia comentado da primeira escova de dentes que compramos juntas, então fiquei pensando: "o que será que ela vai pensar se eu mandar uma foto do primeiro ingresso de filme que vimos juntas no cinema?". Nunca cheguei a mandar essa foto. Porque não havia o que mandar.
Foi essa a sensação de vazio que eu tive ao me deparar com os papéis em branco daquela caixa. Do que um dia foram os ingressos com os nomes de todos os filmes que havíamos visto. E com essa mesma sensação de vazio, que há três semanas eu saí pela porta daquele quarto com a certeza de que iria empurrá-la de mim. Mas ela era tudo o que eu via. Como dizia Adriana Calcanhoto: "pela janela do quarto, do carro, pela tela, pela janela... eu vejo tudo enquadrado". Em todo lugar. E isso estava me enlouquecendo. Era o frio mais caloroso que eu podia sentir em toda minha vida. Porque cada vez que eu começava a desfocar o pensamento, aparecia alguma coisa que me fizesse lembrar.
— Catarina! — ouvi a voz gritar do outro lado da linha antes mesmo de conseguir encostar o celular ao ouvido — Até que enfim. Ninguém sabia de você. Como está? E onde?
— Não precisa se preocupar não, eu estou bem. Só quis dar uma respirada mesmo.
— Está precisando de alguma coisa? Quer que eu vá até aí?
— Na verdade, você sabe de algum lugar que eu possa ir para ficar bêbada e pegar alguém? — ignorei a sonoridade maternal na sua voz — Não estou muito a fim de ficar em casa.
— Os meninos comentaram algo de uma festa mais tarde. Tá a fim?
— Qualquer lugar, Marina. Eu só preciso sair de casa! — respirei fundo — Não aguento mais ver TV, e acho que vou ter um colapso nervoso se abrir a minha lista de recomendados do Spotify de novo.
— É sobre o álbum? Você quer conver... ?
— Não. Eu quero só que você dirija mais tarde, porque pretendo voltar para casa inconsciente. — desliguei o telefone antes que ela pudesse falar mais algo.
O álbum. O maldito álbum. Como se eu precisasse de algo mais para ser estampado na minha cara, desde que tudo isso começou. Como se eu precisasse de mais motivos para evitar assistir TV ou até conferir os meus recomendados do YouTube. Ela havia conseguido realmente limitar os meus passos. E sem fazer o menor esforço para isso. Mas isso já tinha ido longe demais. Dizem que o álcool esteriliza, não é? Eu queria me limpar dela. Como não havia conseguido antes. E como possivelmente não conseguiria de novo, afinal de contas, não haveria como apagar a tatuagem de suas digitais em cada célula do meu corpo, não teria como tirá-la assim de mim. Mas eu era apenas uma peça a ser substituída. Outra vez. É claro que eu sabia que ela encontraria uma nova inspiração. Eu, no entanto, queria apenas encontrar outra dose.
— Como eu detesto engarrafamento. Já tá todo mundo lá, e a gente aqui presa ainda!
Marina batucava nervosamente os dedos no volante, enquanto o carro se movia de centímetro em centímetro atrás da fileira de carros à nossa frente. Eu já havia fechado meus olhos por conta das luzes. Costumava ter dor de cabeça com facilidade em engarrafamentos.
— Relaxa. A festa começou quase agora, o pessoal ainda tá chegando. Nem devemos estar perdendo muita coisa.
— Como é que você consegue estar tão calma? Essa lentidão está me dando nos nervos. — ela resmungava.
— Porque não vai adiantar nada ficar estressada. Vai fazer andar mais rápido? Não vai. Então só relaxa.
Ela ficou quieta por um segundo.
— Catarina?
— Hm?
Mais um segundo.
— Ainda está na terra?
— Não.
Ela respirou fundo.
— Você não quer mesmo conversar sobre o elefante na sala?
— Mas vocês estão muito cismados, não tem o que conversar. — abri os olhos para encarar a lateral de seu rosto enquanto ela encarava a frente — Eu estou bem.
Dessa vez o silêncio dela durou mais um pouco, enquanto o carro finalmente começava a se mover alguns metros.
— E aquela garota com quem você estava conversando?
— Quem? Juliana?
— Ela vai hoje? — pude sentir seu rosto virar na minha direção, mas a essa altura meus olhos já estavam fechados de novo.
— Eu nem chamei na verdade, só postei aquela foto antes da gente sair de casa, ela até mandou mensagem. Eu comentei sobre a festa e tudo mais, só que não foi necessariamente um convite.
— Ela parece legal.
— Eu sei o que você tá pensando, Mari. Não vai rolar. Eu não quero namorar de novo nem tão cedo.
Algumas luzes dos carros continuaram a nos seguir até a entrada da rua asfaltada. Via-se de longe os raios de luz que emanavam de uma casa branca quase no fim da rua. E claro, o famoso bate-estaca da música, que enlouquecia os vizinhos.
— Achei que vocês não iam chegar nunca! — ouvi a voz de Victor ainda da rua enquanto ele gritava da varanda — E a senhora, resolveu dar o ar da graça?
— Deixa ela, Victor. Você não tem moral nenhuma para falar de sumiço. — Marina o cumprimentou com um beijo e eu me perguntei o quanto de informação poderia perder em três dias de resguardo — Tem cerveja ou vocês só compararam destilados?
— Pô Marina, assim você me ofende!
Para mim, sinceramente, não importava. Se tivesse apenas acetona, eu daria um jeito de me embriagar. Na pista de dança, eu sentia o meu corpo mais inerte enquanto ele se deixava embalar, quase que por vida própria, pelo ritmo das músicas nada a ver que tocavam. Normalmente não optava por destilados, eu preferia cerveja. Assim tinha um controle maior sobre o que ingeria, e até sobre minha sanidade mesmo. Mas hoje não existiria controle. Ou melhor, eu não queria que existisse. Perdi a conta de quantas bebidas diferentes eu misturei naquele mesmo copo. E sinceramente não me importava o estrago que elas fariam no meu fígado.
— Sabia que te encontraria aqui! — a voz de repente soou no meu pé de ouvido, e só não me assustei ali por conta do barulho da música que estava alto o suficiente para abafar qualquer ruído de escala menor.
— Ei...! O que que você tá fazendo aqui? — cumprimentei a garota com um sorriso — Espero que eu não tenha te mandado nenhuma mensagem em letras garrafais com conteúdo estranho.
Subtende-se: mensagens de bêbado, onde você sai distribuindo sentimentalismo gratuito para Deus e o mundo, só para atenuar seus excessos.
Ela sorriu.
— Não me mandou nada que não fosse bom. — certo, isso não é bom — Mas eu vim porque a Marina me mandou mensagem. Disse para te fazer uma surpresa.
Eu sorri por motivos de: não sabia o que falar. E a puxei para um beijo pela mesma razão. Não me dei ao trabalho de sair do meio da pista de dança, não até começar a sentir alguns cotovelos alheios me cutucarem as costelas e costas. Ela não pareceu se incomodar, mas a minha mente conseguia estar em vários lugares diferentes, e não era o tipo de coisa que passaria tão despercebido assim. Lentamente eu a conduzi por entre uma passagem estreita entre corpos, até próximo ao corrimão da escada, onde o barulho da música se atenuava. Um pouco.
— Você não me mandou mensagem por esses dias. — me beijou os lábios mais uma vez, enquanto brincava com uma mecha solta do meu cabelo — Aconteceu alguma coisa?
— Tive alguns problemas em casa, mas não foi nada tão sério. Só que tive que deixar um pouco o celular de lado. Aí acabei dando uma sumida de todo mundo mesmo.
Ela ficou calada por alguns segundos, enquanto seu polegar passeava pelo contorno do meu rosto. Em seguida, fechei meus olhos quando senti sua testa colar a minha e por instinto rocei o meu nariz ao dela delicadamente, fazendo com que lhe arrancasse o que me pareceu ser um sorriso.
— Eu senti sua falta... — murmurou, encostando os lábios novamente contra os meus.
— Eu senti sua falta, Alice... — sussurrei contra seus lábios.
— Alice?
Sua voz de repente ficou um pouco mais áspera, à medida que o rosto se afastou do meu, o que me fez abrir os olhos na mesma hora.
— Claro. Você é meu "país das maravilhas". — mordi o lábio, forçando um sorriso torto, fingindo demência por um segundo.
— Você está bem, Catarina?
— Eu já volto!
Fui rápida em virar as costas para garota, pegando o corredor à lateral da escada. Minha cabeça rodava um pouco, finalmente dando indícios de consequência da mistura maligna que eu tinha feito durante a festa inteira. Mas antes fosse só isso. Minha mente circundava muito além de onde eu permitia, e essa era a parte complicada de ter aberto mão do controle. Porque eu não fazia ideia de como parar isso.
De repente algumas pessoas começaram a passar por mim no corredor, um pouco rápido, cada uma saindo de suas entocas. Me perguntei por um momento se alguém estava distribuindo algo do lado de fora, mas não tive estômago para me levantar dali. Até que senti uma mão me tocar o ombro, e levantei os olhos devagar, na tentativa débil de não vomitar.
— Amiga, você está bem?
— Acho que misturei muita coisa.
Até o momento, nem tinha notado que Tati estava na festa. Mas de nós, ela era a mais quieta, quase nunca falava nada no grupo. Creio que eu tinha construído essa imagem de pessoa reservada a respeito dela. E silenciosa até demais, ao ponto que nem a ouvi chegar.
— Quer que pegue uma água para você?
— Não precisa, mas acha que pode me ajudar a chegar até a cozinha? Estou com medo de ser atropelada por uma manada. — encostei mais o corpo à parede, para abrir espaço para mais alguns andarilhos que circundavam por ali em direção à sala — O que está acontecendo?
— Ah! É que o Gabriel chegou com a namorada, e o pessoal está fazendo o maior alvoroço.
— Com a namorada? — uni as sobrancelhas.
— É! A Angélica. Achei que você conhecia. — ela me ajudou a levantar devagar — Ele foi buscar as meninas no aeroporto. Parece que vão passar o resto das férias aqui.
As meninas. Nesse momento, eu já nem me concentrava mais na voz da Tati. Aliás, acho que nem estava mais perto dela. Minhas pernas estavam me guiando pela mesma direção que a multidão tinha ido, embora estivesse na direção contrária da cozinha. E eu sentia urgentemente que precisava ingerir alguma quantidade de açúcar.
Varri meus olhos pelo meio da multidão até localizar a silhueta do Gabriel no pé da escada. A multidão parecia uma colmeia de abelhas zumbindo em volta dele, enquanto passava com as malas. Angélica começava a subir logo atrás, tentando cumprimentar todos que tocavam nela, com um sorriso no rosto. Continuaram subindo as escadas tranquilamente, e por um segundo meu coração respirou. Até que em um momento, ela soltou a mão dele e voltou a descer as escadas.
Foi então que eu a vi.
Angélica havia voltado para ajuda-la a desprender alguma coisa da roupa. Ela também cumprimentava algumas pessoas antes de subir as escadas. Senti meus olhos passearem por cada detalhe, desde o o castanho que caíam em tonalidades claras pelas ondas do cabelo, até o amassado da roupa talvez pelo cinto do carro. E o sorriso. O maldito sorriso.
— Eu te amo, Alice!!! — ouvi a voz de um garoto esganar perto de mim, alto o suficiente para chamar a atenção dela, que sorriu e acenou para ele.
No segundo seguinte, mas não rápido o suficiente, seus olhos foram desviando pelas laterais até que acidentalmente encontraram os meus. Não sei se notei confusão ou surpresa neles. Não lembro na verdade. A última coisa que lembro é de sentir a minha respiração vacilar por um momento. E acho, mas só acho... que lembro dela ter me chamado. Ou tentado. Antes de ficar tudo escuro.
Fim do capítulo
Oi, meninas. Já faz um tempinho que estou aqui pelo site, e nunca havia postado nada. Então... Decidi postar essa história pra estrear aqui com vocês. Espero que gostem!
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