Clarice
Estávamos no meio do inverno e Clarice chegaria em breve. Morávamos em uma cabana afastada da cidade, bem adentrada na floresta. Quando criança ouvia histórias sobre aquele lugar, sobre uma mulher que morava do outro lado do lago, uma bruxa, eles diziam. Eu morava ali com Clarice há dois anos e nunca tinha visto nada estranho como nas histórias que me aterrorizavam quando menor. Mas eu também nunca tinha ido para o outro lado do lago. Clarice já. Ela dizia que havia uma cabana, parecida com a nossa, mas que ela não “mexia com aquelas coisas”. E ela era muito corajosa. Eu não sei se ela disse aquilo para me assustar ou se existia mesmo aquela cabana.
De qualquer forma, eu gostava da tranquilidade dali. Gostava do silêncio, gostava do barulho do vento, do som das folhas, do som dos pássaros, dos bichos e de como os animais pareciam conversar comigo quando olhava para eles. Eu não trocaria minha vida de agora pela de antes por dinheiro algum no mundo. Agora eu sabia que dinheiro era essencial, mas não tudo na vida.
Costumava trabalhar em um banco, tinha um bom salário, uma boa casa, trocava de carro todo ano. Os anos estavam passando em meu rosto e eu me perguntava o que estava fazendo da minha vida. Fui parar no hospital achando que estava tendo um infarto, o médico disse que eu não tinha nada físico, que era emocional, que eu tinha que dar uma pausa se não quisesse morrer antes dos 50. Logo depois conheci Clarice na fila do supermercado. Eu derrubei suas compras todas no chão ao trombar com ela. Seis meses depois estava vendendo tudo o que tinha e me mudava para lá.
Eu pensava que estava vivendo, mas estava apenas existindo.
Ouvi um latido de cachorro. Estavam chegando. Olhei pela janela com uma colcha em meu colo, estava costurando uma nova para nossa cama. Aquele inverno estava mais rigoroso que o anterior. A porta se abriu como num estrondo. Clarice era tão delicada quanto um cavalo. Tinha um fardo de lenha nos ombros, amarrado com uma corda. Ela entrou com suas botas fazendo barulho no assoalho de madeira e logo atrás dela Feijão, nosso vira-latas. Feijão correu, rodou em círculos e se acomodou em sua cama. Clarice bateu a porta fechando-a.
- O frio tá congelando meus ossos. - Ela disse.
Eu me levantei, indo até ela, que já estava agachada ao lado da lareira acendendo-a.
- Da próxima vez eu vou buscar lenha.
Ela deu um sorriso de canto de boca.
- Você vai ficar quietinha aqui, igual sempre ficou. - Ela se levantou. Ela era alta, mais alta que eu. Quando eu a abraçava eu me encaixava perfeitamente em seu colo. Eu adorava isso nela. Clarice tinha os cabelos compridos, usava-os sempre amarrados num rabo de cavalo frouxo no meio da nuca. Naquele fim de tarde estava com um gorro preto na cabeça. Tinha os olhos verdes. Seu corpo era forte e torneado pelo trabalho pesado.
Eu fiquei na ponta dos pés, envolvendo sua nuca com as mãos, buscando seus lábios. Ela me beijou. Ela tentou tocar meu rosto com suas mãos geladas, mas eu me esquivei, rindo.
- Eu vi um cervo hoje. - Ela disse animada.
- Queria ter visto. Você podia me levar com você da próxima vez. – Choraminguei. Peguei suas mãos e as beijei, envolvendo-as nas minhas, tentando esquentá-las. Ela então beijou meus lábios, depois minha testa, depois meus lábios novamente.
- É perigoso.
- Não tem perigo nenhum.
- Não sei o que seria de mim se algo acontecesse com você. - Ela sussurrou.
- Você é muito preocupada com as coisas.
- Só gosto de cuidar do que é meu.
Peguei-a pelas mãos.
- Vem, você deve estar faminta. - Puxei-a comigo.
Ela então me abraçou por trás, enfiando a cabeça em meu pescoço fazendo meu corpo inteiro se arrepiar. Sussurrou com os lábios em meu ouvido:
- Você não sabe o quanto...
Foi agarrada a mim até a cozinha.
Nós tínhamos um poço do qual bebíamos água. Não tínhamos energia elétrica. Usávamos um fogão a lenha. Quando começava a anoitecer acendíamos um lampião a querosene. Dormíamos cedo, acordávamos cedo. No inverno esquentávamos água para nossos banhos; no verão, nem sempre. Sempre tomávamos banho juntas, então era mais fácil ter esse controle. Eu acabei me acostumando com essa rotina. Clarice já morava lá bem antes de mim. Estávamos há vinte minutos de carro da cidade mais próxima, então comprávamos comida e coisas essenciais.
Ela pegou seu violão depois de comermos e começou a arranhar algumas notas. Estávamos sentadas em frente à lareira. Ela gostava de Johnny Cash. Ficava às vezes cantarolando baixinho por horas. Às vezes ela se perdia dentro de si mesma. Antes de mim outra mulher tinha morado com ela. Seu nome era Lucia. Ela não falava muito de seu passado, eu só sabia que Lucia tinha morrido. Eu me perguntava se Clarice quando estava muito quieta pensava nela. Eu não sabia da resposta, mas a deixava em silêncio mesmo assim. Eu imaginava que era como quando estamos nadando e precisamos subir a superfície para tomar um ar. Eu não sabia se ela ainda chorava por Lucia. Eu nunca tinha visto Clarice chorar.
Eu me levantei do sofá silenciosamente, não querendo incomodá-la.
- Aonde vai? – Ela perguntou, pensei que ela não notaria, mas notou. Me aproximei então e dei um beijo em sua cabeça.
- Eu já vou me deitar. – Disse a ela. Ela pousou o violão no sofá e sem que eu esperasse me puxou bruscamente, fazendo-me sentar de lado em seu colo. Senti ela enfiando seu nariz em meu pescoço, cheirou. Eu ri. Aquilo me arrepiava inteira.
- Espera um pouco. Está gostoso aqui.
Ela fazia carinho em minha coxa, me segurando perto dela. Deitei a cabeça em seu ombro. Feijão estava deitado no tapete em frente a lareira, todo enrolado. Fiquei olhando as chamas, ouvindo o estampido da lenha sendo consumida.
- Você é feliz? – Ela perguntou cortando o silêncio.
Eu me sentei mais aprumada em seu colo, passando um joelho para cada lado, sentando-me de frente para ela. Senti suas mãos me envolverem a cintura.
- Você acha que não?
- Tenho medo... – Ela desviou o olhar.
- Pra mim você não tinha medo de nada.
Tirei seu gorro. Adorava o cheiro de seu cabelo. Mesmo ela usando o mesmo shampoo que eu, tinha algo que era só dela. Coloquei ao lado e soltei seus cabelos castanhos, correndo os dedos por sua cabeça, colocando-os para trás. Ela fechou os olhos com meu toque. Fiquei ali olhando para ela.
- O medo ajuda a manter-nos vivos. – Ela abriu os olhos. – Se você não tiver medo, sai fazendo coisas que pode colocar sua vida em risco. É só você observar os animais na floresta. Não vê um esquilo se metendo com uma cobra.
Passei a mão em sua sobrancelha, por cima da cicatriz de seu olho esquerdo que acabava pouco antes de sua maçã do rosto. Ela já tinha essa cicatriz quando a conheci.
- Do que você tem medo? – Perguntei. Pensando que ela diria algo relacionado a esse dia da cicatriz. Ou algo relacionado ao seu passado. Algo relacionado ao dia que Lucia morreu. Ou algo como “que acabassem os peixes do lago”. Mas ela me surpreendeu.
- Que você canse de viver aqui comigo e me deixe.
Senti um aperto em meu peito nesse momento. Aproximei-me ainda mais dela, beijando seus lábios com certa urgência. Queria que ela soubesse e sentisse que eu não iria deixá-la. De onde ela tinha tirado essa ideia maluca? Suas mãos agora me apertavam de uma forma mais firme junto a ela. Busquei seu pescoço, sua orelha. Sussurrei:
- Você não tem ideia do quanto eu te amo.
Nesse momento senti suas mãos, que graças a Deus estavam quentes, entrarem por dentro do meu casaco marrom, percorrendo minhas costas. Ficamos nos beijando aquecidas pelo calor do fogo, tanto da lareira, quanto de nossos corpos que entravam em combustão.
- Vamos pro quarto... – Ela disse baixo, séria.
- Não queria ficar aqui? – Perguntei ainda a beijando.
- Não mais, vamos... – Disse abrindo meu casaco. Eu me levantei e apaguei o fogo da lareira. Ficamos apenas com a claridade do lampião. Ela segurou minha mão e fomos até o quarto. Nosso quarto não era muito grande. Tínhamos colocado cortinas mais grossas recentemente para que o vento não entrasse pelas frestas da janela. Ela arrancou suas botas pesadas, tirei meus sapatos e mal consegui tirar meu casaco, já sentindo meu corpo sendo arremessado a cama.
Ela apagou a luz do lampião e senti seu corpo pesando sobre o meu. Clarice era completamente minha e eu era completamente dela. Fizemos amor pela noite adentro e parecia que aquela floresta inteira era só nossa. Que o mundo inteiro era só nosso. Como se ninguém mais existisse.
E eu não queria nem saber o que tinha do outro lado do lago.
Fim do capítulo
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Manuella Gomes
Em: 09/07/2020
Acabou foi?
Conto sutil, doce, misterioso...
Como você escreve e descreve bem.
Resposta do autor:
Acabou, esse foi curtinho mesmo, gosto de deixar esse mistério no ar haha agradeço pelo comentário!
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Antonia
Em: 02/05/2020
Excelente!!!
Tem continuação??????
Resposta do autor:
Oi Antonia! Fico feliz que tenha gostado!! ^.^ Inicialmente eu pensei em fazer apenas um capítulo único, pois estou com outra estória em andamento, mas quem sabe futuramente eu resolva desenvolver esse conto. Agradeço imensamente o comentário!
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Marta Andrade dos Santos
Em: 01/05/2020
Legal.
Resposta do autor:
Obrigada pelo comentário! ^.^
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