Mais um capítulo!!!
Foto Polaroid
P.O.V. Natália Montanari
Acordei seguindo o ritual de olhar a hora no celular. 9h45. Diante das inúmeras mudanças nos últimos dias, conseguir distinguir horários e os dias da semana se mostrava uma tarefa complexa. Senti Lara ainda abraçada a mim, como prova tangível do que realmente vivemos ontem à noite. A TV ainda estava ligada e nós ainda estávamos despidas. Imediatamente, me senti envergonhada. Vergonha do meu corpo, da minha nudez. Esse sentimento se tornou muito recorrente na minha vida em relação à mulher que sempre acessou essa imagem – e tantas outras coisas – repetidas vezes. Agora ela estava ali, dormindo com o semblante tranquilo. Às vezes ainda podia sentir percorrer o famoso frio na barriga só em vê-la assim, naturalmente bonita. Então, me pergunto: onde nos perdemos? Ainda era muito difícil para mim admitir que muito de nós havia ficado para trás. Eu só queria voltar no exato momento em que tudo começou a desandar e refazer todo o caminho, corrigindo os nossos erros, ou pelo menos os meus. Eu já não era capaz de verbalizar que algo estava errado, eu só pensava que não tocar nos assuntos tristes era a única forma de fazê-los desaparecer.
Levantei da cama com um constrangimento sem plateia, uma ressaca moral como quem se dá conta que dormiu com uma desconhecida. Já no banheiro, fiz meu rito de higiene matinal e, ao olhar meu reflexo no espelho, vi a imagem de alguém que segue enfileirando dias entediantes, compromissos profissionais, leituras inacabadas e, principalmente, palavras não ditas. Quando me dei conta, nada que tivesse a ver com a Lara ou com o nosso relacionamento me empolgavam. Nem datas, nem contatos nossos, nem mesmo as conversas que ela mantinha com pessoas que me deixavam insegura. Nada era capaz de mobilizar em mim sentimentos intensos, como paixão, fúria, ciúmes.
Ao preparar o café, recebo uma ligação da minha mãe, Márcia, que nunca teve total simpatia com meu relacionamento com a Lara. Ela me atualizou de algumas coisas, perguntou outras tantas, disse estar “morrendo de saudade e preocupação”. Entretida com a ligação, nem vi quando Lara sentou-se à mesa, com o celular na mão, enquanto a outra segurava uma maçã. Depois que desliguei o telefone, ela estava lá. Olhei para ela, dando um breve sorriso e dizendo:
– Bom dia!
– Natália, me diz, por que a gente ainda trans*?
– Oi?
– O que te leva a fazer sex* comigo? Carência?
Ela estava demonstrando, mais uma vez, interesse em entrar no assunto que venho fugindo há dias, meses.
– Ah, Lara, pelo amor dos deuses! Não me vem com esse tipo de questionamento a essa hora.
– Eu não sabia que precisava marcar horário – disse com ironia, virando o rosto.
– O que você quer de mim?
– Eu quero saber a verdade, Natália. Apenas a verdade – ficou de pé e veio ao meu encontro, me olhou profundamente nos olhos.
– Que verdade?
– Por que a gente ainda mantém este relacionamento? Qual o motivo para continuar?
– Qual o motivo para terminar? Estamos be...
– Por que você insiste em dizer que está tudo bem, quando demonstra exatamente o contrário? E não ter motivos para continuar já não é um motivo para terminar?
– Quem disse que não há motivos para continuar? Eu ainda te amo como antes, como sempre, como nunca.
– Esse amor não... Eu sinto que esse amor é medo.
– Medo do quê, exatamente?
– Medo de se ver sozinha de novo, de ligar para a sua mãe dizendo que ela tem razão e que foi a maior insanidade da sua vida ter largado tudo para vir morar em Fortaleza ao lado de uma “garotinha” – ela repetiu o termo que minha mãe usou para me convencer de que fazer essa mudança não era uma boa ideia –, de ter perdido todo esse tempo, de se arrepender – disse, indo às lágrimas.
Coloquei minha mão direita em seu queixo, erguendo o seu olhar até que encontrasse o meu e disse:
– Nunca mais, em hipótese alguma, repita isso. Nunca passou sequer pela minha cabeça a possibilidade de isso tudo ter sido um erro, de me arrepender. Em relação à minha mãe, as palavras dela são dela e não minhas. Se dependesse da vontade dela, a essa altura da minha vida eu teria um marido fã de sertanejo universitário, um filho chamado Miguel, uma filha chamada Sophia e um Instagram repleto de fotos com legendas “#MeuMundoAzul” ou “#MeuMundoRosa”, não acha?
Ela deu um sorriso entre lágrimas e confirmou com a cabeça. Segui:
– Então?
– Não acho que você teria coragem de voltar para a casa da sua mãe e dar a ela o prêmio de estar certa – dentro de mim, algo me dava a certeza de que ela tinha total razão, eu sou orgulhosa demais para isso.
– Quem disse que eu quero ir para a casa da minha mãe? Quem disse que eu quero estar em outro lugar que não seja aqui ao seu lado?
– Mas não foi você quem postou esses dias que não aguentava mais a quarentena?
– Eu disse em relação a não poder sair para lugar nenhum, mas estar com você é ótimo – disse, tentando desconversar, mas a grande verdade é que eu queria dar um ponto final àquela conversa.
– Você está se contradizendo. Por que eu não consigo sentir verdade nas suas palavras, no seu olhar? Eu tenho a impressão de que você preferia estar em qualquer outro lugar que não fosse aqui comigo – disse se afastando um pouco, abaixando a cabeça, o que fez algumas lágrimas escorrerem pelo seu rosto. Àquela altura, ela já não era a única a chorar. Me aproximei e disse olhando em seus olhos.
– Meu amor, por favor, acredita em mim. Eu amo você mais que tudo... E eu quero você mais do que tudo.
Nesse momento, aproximei calmamente a minha boca da dela e iniciei um beijo que foi prontamente correspondido. Minhas mãos em seus cabelos traziam Lara para mais perto de mim. Ela estava parcialmente sentada na mesa, me abraçava como se temesse que a qualquer momento eu fosse embora. Das diversas sensações possíveis de serem descritas durante um beijo, definitivamente, posso chamar de medo o que eu senti nesse momento. Medo de que fosse a última vez, medo de admitir que chegamos a um nível irrecuperável, medo do que viria depois, medo de ficar solteira depois dos trinta e poucos e, acima de tudo, medo da confirmação de que a Lara já não era o amor da minha vida. Eu evitava olhar em seus olhos durante os nossos momentos íntimos ultimamente por temer que ela percebesse essas minhas incertezas. De fato, a excitação nos deixa vulneráveis e eu temia que essa vulnerabilidade expusesse todas as minhas dúvidas em relação a nós.
Naquele momento, com esse turbilhão de incógnitas pairando o meu pensamento, era quase impossível prestar tanta atenção nela e no que estávamos fazendo, transformando minhas ações em repetidos processos mecânicos. Nem sempre era assim, já que em alguns momentos aquele tipo de desejo carnal e irracional me conduzia. Mas dessa vez era diferente e qualquer um que nos visse identificaria a minha falta de entrega. Nem sei quanto tempo demorou até Lara me afastar bruscamente e me dizer, com nítida frustração:
– Até para encerrar uma discussão com sex* é preciso desejo.
Ao dizer isso, ela saiu da cozinha imediatamente e entrou no quarto, fechando a porta atrás de si em seguida. No auge da minha covardia, sequer tentei conversar com ela. Peguei uma xícara de café e fui até a sala. Sentada, observei um porta-retrato com três fotos nossas em formato polaroid dentro. Olhando para as nossas expressões de felicidade, lembrei de uma antiga canção de Isabella Taviani. Busquei o aplicativo de música e em alguns segundos pude ouvir o que naquele momento parecia um recado da Lara para mim.
Sabe o que me cansa?
São essas tuas palavras
Que eu tenho que arrancar do meio da tua garganta, criança!
Que eu tenho que trazer de dentro do teu peito, perfeito!
Mas eu aqui largada, num canto desse apartamento.
Eu choro mais, eu choro menos. Tanto faz!
Você não vem mesmo.
Mas eu aqui morrendo, desaparecendo
Como uma foto de polaroid
Eu morro mais, eu morro menos. Tanto fez!
Você não veio mesmo...
Ao ouvir aqueles versos, não contive as lágrimas de culpa por imaginar todas as vezes que a fiz se sentir sozinha, mesmo que estivéssemos no mesmo apartamento. Das noites que chegava tarde depois de uma saída com o pessoal do trabalho e a encontrava já dormindo. Eu fui tão negligente!
Sabe, eu odeio, odeio
Adorar teu jeito simples de viver.
Ver você sorrindo assim loucamente
Quando estou aqui presente.
Sentir as tuas pernas trêmulas
Depois do prazer satisfeito.
E é por isso que eu não aceito,
Eu não aceito, não
Ver você retrocedendo!
Abrindo mão dos sonhos fantasias
Por essa covardia, covardia!
Muito menos pagando o preço dos nossos pecados,
Nem se fosse dez centavos.
Quando a canção já se desenhava para o fim, recebi a notificação de que havia uma mensagem dela. Logo dela. Logo agora.
Fim do capítulo
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