Capitulo 6 - Concomitante
Charlotte estava meia hora atrasada para a cerimônia de adeus ao seu avô Will. Ela já deveria estar ouvindo as palavras do padre Joseph Coyle, o único sacerdote da cidade, e as homenagens preparadas pelos habitantes de Hilton.
A Elementary School deveria estar lotada, as pessoas de Hilton só tinham duas diversões: Baseball e enterros.
Charlie permanecia sentada na cama de solteiro do seu antigo quarto. Nas mãos, segurava a gravata vermelha com bolinhas brancas preferida do Will. Sua avó Anna havia lhe pedido para levar até a cerimônia, lá trocariam a gravata do Will porque o pessoal da funerária tinha se confundido e o velho precisava receber o descanso eterno com a gravata que tanto amava.
O celular vibrou e pela quinta vez, Charlie recusou a chamada da Cassie, mas nem o desespero da irmã conseguia lhe dar forças para levantar de onde estava e seguir para o funeral. Olhou novamente para a gravata de Will e as lembranças invadiram a sua mente.
A primeira recordação que tinha dessa gravata foi na sua alfabetização.
Seu avô estava lá, elegante como sempre e com o sorriso orgulhoso nos lábios. Era o que mais acenava, e a pequena Charlie lhe acenava de volta. Quando todas as formalidades terminaram, a pequena correu em direção aos braços do avô. Como de costume, ele a jogou pra cima, numa brincadeira íntima dos dois, para depois a abraçar.
- Estou tão orgulhoso de você, pequeno pinguim. - O homem mais velho a olhava com os grandes olhos azuis escondidos atrás das lentes dos óculos.
- Eu consegui decorar todo o discurso, vovô. - A pequena Charlie informou orgulhosa.
- Sim, você foi maravilhosa! Eu não conseguiria fazer um discurso tão bonito quanto o seu!
- Então, eu posso tomar sorvete hoje no jantar?
- Claro que pode! - Ele sorriu – E para comemorar, vamos tomar todos juntos! Eu, você, a vovó e a Cassie!
- A vovó disse que você não pode tomar sorvete porque tem muito açúcar. - Respondeu com um semblante triste.
- Então tomaremos escondido da vovó! - Ele disse num sussurro.
A pequena Charlotte fez uma cara de sapeca e sorriu. O avô aproveitou a brecha para lhe fazer cocegas e a menina chorou de tanto rir.
Aquele havia sido um dia inesquecível para Charlie. Ela não podia reclamar da infância que teve, Will fora verdadeiramente um pai para as duas, um exemplo de homem, marido, pai e avô. E poderia ter sido muitas outras coisas, se não fosse pela distância desses dez anos.
Charlie queria que Will estivesse quando ela enfim foi admitida na NYU (Universidade de Nova Iorque). Ou quando se formou em engenharia e ciências aplicadas, mesmo achando que seu discurso não fora tão bom quanto na alfabetização. Nem quando sua empresa de garagem faturou o primeiro milhão e virou referência em tecnologia e pesquisas.
- Você vai fazer falta, vovô. - Disse observando a gravata.
Ela não conseguia chorar. Desde o dia em que recebera a notícia do infarto de Will, não conseguia chorar. Era como se estivesse no piloto automático de suas emoções e nada mais pudesse interferir nisso.
- Chegou a hora de ir… - Disse por fim, se levantando da cama.
A verdade é que ela não queria ir porque não aceitava dizer adeus. Charlie esperava que a qualquer momento, Will buzinasse na porta com o antigo chevette vermelho e lhe convidasse para dar uma volta. Ou quem sabe ouviria seu assobio pela casa, cantarolando alguma música antiga.
Respirou fundo algumas vezes, nos últimos dias sua vida tinha virado de pernas pro ar. Sempre achou que teria tempo de ir visitá-lo algum dia, no fundo, Charlotte tinha a ilusão de que um dia conseguiria suprir toda a saudade. Agora estava enterrando o seu avô.
A garagem permanecia a mesma, podia-se notar algumas ferramentas pelo chão. Charlie ligou a luz e pode ver o chevette que estava coberto por um pano marrom. Ela retirou o pano devagar e o vermelho apareceu, alisou o carro que lhe trazia tantas lembranças e era como se pudesse ouvir a voz de Will lhe chamar para dar uma volta.
Buscou uma caixa branca entre as prateleiras e abriu, lá estava a chave.
Algumas coisas nunca mudam.
Pensou. Ela entrou no carro e colocou a gravata ao seu lado, no banco dianteiro.
- Vamos passear vovô! - Disse animada e dando partida no chevette.
O carro fazia um pouco de barulho, era o modelo mais antigo e já fazia um tempo que pedia manutenção. Charlie abriu as janelas e o vento frio invadiu o carro, fechou rapidamente e tentou assoprar os dedos para aquecê-los.
O aquecedor do carro não estava funcionando.
- Vamos congelar aqui dentro, semhor Will.
O automóvel não passava de 30 km/h, e as ruas de Hilton estavam relativamente vazias. Todos deveriam estar no funeral.
- Eu estou dirigindo o seu chevette vovô! - Disse enquanto virava a esquina. - E você odiava quando alguém tocava nesse carro, pois bem! Estou aqui com ele!
Charlie sorria. O carro era o mimo do Will, e ela sabia disso. Perdera as contas de quantas horas por dia o avô passava na garagem cuidando do carro. Quando a menina entrou na adolescência, Will lhe ensinou a dirigir naquele carro, mas ela nunca pode ficar sozinha nele. De acordo com o avô, o automóvel era uma relíquia, e era preciso todo o cuidado.
Faltavam algumas quadras para o Elementary School quando avistou uma silhueta andando encolhida no frio. Aproximou mais o carro e pode ver que se tratava da garçonete do Joe, Claire Griffin.
Ela andava tentando se proteger do frio, provavelmente seu destino era o funeral porque estava vestida de preto da cabeça aos pés.
- Eu não vou dar uma carona pra ela, Will. - Falou olhando para a gravata.
E continuou seguindo a garota. Claire olhou para trás em uma questão de reflexo e viu Charlotte dentro do carro lhe observando. A menina virou rapidamente e apressou o passo. Charlie não entendeu muito bem aquela reação, mas depois de muita luta interna, resolveu dar uma carona antes que a menina congelasse.
- Claire! - Gritou ao abaixar os vidros e se aproximar.
- Oi! - Respondeu tímida sem parar de andar.
- Você está indo para o funeral do meu avô?
Claire não parava de andar e Charlie mantinha o carro em 10 km/h.
- Sim… - Disse se abraçando e tentando aumentar o passo.
- Posso te dar uma carona… - Falou receosa.
- Não precisa! - Respondeu rapidamente. - Já estou perto.
- Estamos indo para o mesmo lugar, não custa nada! - Parou o carro e a menina automaticamente também parou de andar.
- É gentileza sua, e eu agradeço muito, mas não precisa mesmo!
- Vamos Claire! - Charlie se esticou e abriu a porta dianteira.
A morena olhou para os dois lados, parecia pensativa. Mordeu o lábio inferior e entrou rapidamente no carro.
- Tudo bem… - Claire disse por fim.
Ela sentou e colocou a bolsa preta entre as pernas. Charlie não deixou de reparar no quanto ela era fisicamente bonita. Agora, sem o uniforme do Joe, ela portava um vestido preto simples que iam até um pouco antes do seu joelho.
Claire seguiu Charlie com o olhar e pigarreou quando sentiu o olhar da outra para suas pernas.
- Você já não deveria estar no funeral? - Claire perguntou.
- Eu fui buscar a gravata do vovô, parece que o pessoal da funerária errou nas vestimentas do Will.
- Nossa… - Foi a única coisa que Claire conseguiu dizer. Ela manteve seu olhar na paisagem.
- Você ia congelar lá fora, não era melhor ter chamado um táxi? - Charlotte comentou curiosa.
- Eu estava esperando a idiota da minha melhor amiga ir me buscar, mas ela mudou de planos na última hora e teve que ir atrás do Mi… - Começou a falar, mas se cortou – Um amigo nosso.
Ela iria falar Mike? Charlie pensou.
- Sinto muito.
- Está tudo bem.
- Porque você também não foi socorrer o… - Charlie fez uma pausa e continuou – Amigo de vocês?
- Eu gosto muito do senhor Will. Esse funeral também é muito importante pra mim.
Charlie engoliu em seco. Aquela menina tinha sentimentos sinceros para com o seu avô.
- Eu sinto muita falta dele. - Charlie soltou.
E no mesmo instante se martirizou.
Porque diabos eu estou falando isso pra essa garota?
Rapidamente, colocou a sua cabeça para trabalhar em vários assuntos diferentes para tentar mudar de assunto, e assim que ia comentar algo sobre a neve, ouviu a voz da Claire.
- Eu sinto muito, Charlie. - Ela disse e virou os olhos pela primeira vez para Charlotte.
Pela primeira vez a Sanders sentiu vontade de chorar. E a emoção veio tão forte que ela teve que focar em algum ponto na sua frente. Claire ainda a encarava, e ela pode sentir o olhar da garota sobre si como se pudesse ver além do que ela havia mostrado até agora.
- Na verdade, eu não queria ir para o funeral… - Charlie confessou com cuidado, ela olhava disfarçadamente para Claire. A moça seguia lhe analisando com os grandes olhos cor de mel.
- Eu não queria que essa fosse minha última mé moria dele. - Continuou.
O silêncio se instalou e a única coisa que Charlie ouvia era o ronco do motor do velho chevette. Se perguntou se o velho Will iria lhe recriminar por dar carona a Claire.
- Não precisa ir se não quiser. - A morena afirmou.
Charlie tirou os olhos da via e encarou a mulher. Ela dizia o óbvio, e agora pelos lábios de Claire, tudo parecia mais fácil. Talvez fosse o efeito do seu perfume doce.
- Podemos ir para outro lugar, se você quiser. - Convidou.
- Mas você queria dar adeus ao Will.
- Existem várias formas de dar adeus, Charlie. - Ela disse simplesmente enquanto brincava com algumas pulseiras no seu próprio braço. - Podemos dar adeus ao Will do nosso jeito.
Um sorriso se formou levemente nos lábios de Charlotte. Como se aquelas palavras a tivesse confortado. A mulher estacionou o carro na frente do colégio e se virou para Claire.
- Tem certeza, senhorita Griffin?
- Absoluta, senhorita Sanders. - Ela sorriu pela primeira vez, entrando na brincadeira.
Charlie não deixou de reparar nas covinhas que se formaram nas bochechas de Claire. E no quanto o seu sorriso estava iluminando aquele chevette velho. Piscou algumas vezes, afastando aqueles pensamentos e se animou ao ter uma ideia.
- Então, vamos dar o nosso adeus ao Will!
Charlotte disse animadamente e colocou a gravata vermelha em torno do seu pescoço. Claire riu novamente da mulher à sua frente.
- Vamos! - A Griffin concordou ainda rindo da garota.
E pode-se ouvir o ronco do chevette vermelho cantando pneu.
No automóvel, Charlie ainda se perguntava o que estava fazendo com uma desconhecida dentro do carro do seu avô indo na direção oposta do funeral, mas dizem que, às vezes, conseguimos nos abrir melhor com pessoas desconhecidas e, às vezes, essas são as melhores pessoas para entenderem as nossas dores.
*****
*Concomitante: Simultâneo, sincrônico, coexistente.
Fim do capítulo
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