O jantar...

Cecília estava nas nuvens por saber que poderia jantar com Rafaela mais tarde e agora precisava planejar um cardápio leve e que impressionasse sua vizinha. Sendo ela médica deveria gostar de coisas naturais ou não!!

Cecília pensa.. pensa..

Os dedinhos nervosos. E,

Salada verde e meu molho especial que ela vai gostar e depois um filé com alcaparras servido com uma massa e um bom vinho para acompanhar. Isso! Perfeito.

Passei a tarde cantando e pensando qual jogo de jantar usar, qual toalha ou seria melhor um jogo americano?

Enquanto separava as vasilhas e escolhia os pratos percebi que raramente eu tinha companhia para jantar e quase nunca recebia visitas, eu costumava sair por insistência do Carlos que é um excelente amigo, participava de todos os aniversários da empresa, só que eu via como um compromisso social e minhas férias sempre com meus pais no Rio de Janeiro.

Acabei sentando uns minutos no sofá, refletindo sobre meus últimos anos, e lembrei-me do dia da mudança que foi a mais organizada que alguém já viu, é, foi desde essa mudança que me tornei meio mecânica na vida.

Acho que essa quarentena vai servir para eu mudar muita coisa em minha rotina e na minha maneira de viver. Como posso ter um belo apartamento e não usufruir dele, ele não tem uma mancha para marcar um jantar engraçado ou uma criança que derramou refrigerante no tapete... Nossa! Eu pareço um robô programado para viver, ou melhor, para existir por que eu não vivo.

Em 05 anos eu fiz 45 projetos, isso é quase um por mês, é muita loucura. Como eu ia aproveitar os prazeres trabalhando tanto, o Carlos desenvolve 01 a cada 02 ou 03 meses e vive tão feliz, ele e a Amanda são um casal que dá raiva de tão fofos.

Fiquei por mais meia hora sentada e percebi que em um dia eu consegui ter mais emoções que nesses últimos 60 meses.

Na época da Monica eu corria tanto e sem motivo porque sem querer eu acabei fugindo da minha casa, eu não tinha prazer em estar com ela foi mais um medo do abandono que me fez ser aquela mulher submissa e boba. No fundo eu me deixei enganar.

Depois da minha breve reflexão hora de ir para cozinha e deixar tudo encaminhado para meu lindo jantar. Mesmo que eu ganhe uma amiga me sentirei feliz e meus pais costumavam dizer que precisamos conhecer nossos vizinhos, construir uma relação com as pessoas que trabalham em nosso prédio e nos locais aos quais vamos todos os dias como a padaria, o posto de gasolina, minha mãe sempre ressalva que se você não for cordial com as pessoas pode morrer sozinho dentro de casa e ninguém irá sentir sua falta. Claro que a educação que recebi sempre foi de valorizar as pessoas de modo geral e independente da situação delas, eu é que andei esquecendo a maneira certa de agir com meu próximo.

Hora de escolher uma roupa, parte complicada porque gosto de ficar a vontade em casa e a Rafaela estava linda hoje, será que ela está sempre arrumada assim em casa? a noite deve continuar elegante, acho que vou colocar meu macaquinho estampado ele é bonito e nada formal, além de me sentir bonita nele, eu também não posso colocar uma roupa de festa dentro de casa.

(...)

Rafaela organizou seu apartamento, e resolveu fazer um pavê de chocolate para levar no jantar, depois que terminou e colocou para gelar aproveitou o resto da tarde para fazer uma playlist com bandas nacionais e quase perdeu a hora de tomar seu banho, ela se empolga tanto com as músicas que esquece o tempo.

Como no início da tarde ela quis provocar sua vizinha com o vestido, dessa vez resolveu ficar mais a vontade e colocou um vestido de brim branco com detalhes em azul, já que sua vizinha parecia gostar dessa cor.

Rafaela é muito observadora e costumava sair de casa para o hospital 05 minutos depois de sua vizinha que sempre estava na garagem quando ela descia, ela percebeu que Cecília fazia tudo da mesma forma todos os dias e talvez nem percebesse que agia desta maneira, ao observa-la ela acabou se encantando pela moça da roupa azul, era assim que Rafa chamava sua vizinha que descia apressada todas às manhãs e passava 05 minutos organizando a bolsa, a pasta, conferindo os retrovisores até estar pronta para sair da garagem.

Cecília tinha muitos terninhos lindos e sempre o azul parecia ser seu favorito e por isso era a moça da roupa azul.

(...)

Ás 20h00, pontualmente, Rafaela tocou a campainha do apto 204 e foi recebida com um sorriso pela sua vizinha, por causa da pandemia elas evitaram toques.

Cecília pegou o prato de pavê e agradeceu.

-Nossa! Rafaela a cara está ótima e o gosto deve estar melhor ainda.

- Eu espero que esteja, é uma de minhas sobremesas preferidas.

- E quem não gosta, vou colocar na geladeira. Venha pra minha cozinha.

Cecília perguntou se Rafaela se importava em comer a salada na bancada da cozinha porque depois ela iria finalizar os pratos e jantariam à mesa.

Rafaela concordou e disse que adorou a bancada do apartamento que por sinal foi bem planejado.

- Ainda não tive tempo de lhe falar Rafaela, trabalho com designer de interiores e meu apartamento foi todo modificado, sem mexer na parte estrutural claro.

- Cecília você não vai acreditar, quero fazer um projeto para um quarto que está vazio desde que me mudei. Olha acho que o universo conspirou a nosso favor vizinha.

- Você está falando sério?

- Sim, eu ia procurar um desses aplicativos na internet para simular algo para o espaço.

- Achou seu aplicativo humano agora, eu amo meu trabalho e se quiser será um prazer te ajudar.

- Claro Cecília! Assim vou dar palpites e te encher de perguntas.

(risos)

- Fique a vontade, será ótimo poder desenvolver com você palpitando.

- Tem certeza, não vai se arrepender depois que eu falar demais.

- Tem a minha palavra. Vamos tomar um vinho?

- Sim, amo vinho só preciso ir com calma por que não tenho hábito de beber e sou fraca para bebidas.

- Uma taça antes e outra depois do jantar, o que acha?

- Perfeito Cecília.

- E agora sua vez de falar sobre seu trabalho Rafaela.

- Eu como você, amo o que faço. Trabalho no Hospital Daher como pediatra de 08h00 às 18h00, tenho total liberdade com os diretores e isso me permite ter uma agenda bem flexível.

- Então cuida das criancinhas é.

- Sim cuido muito bem delas. Aqui no condomínio conheço todas, sou a médica de plantão.

- Coisa boa, eu esse tempo todo não sabia que era vizinha de uma médica. E não quis ter filhos?

- Eu até tentei antes de me separar, eu sou divorciada há quase 06 anos, antes estava fazendo tratamento só que perdi e acabei desanimando.

- Sinto muito Rafaela.

- Tudo bem, já consegui me recuperar, atualmente penso muito em adotar. Fico pensando na alegria que trará para meus dias uma criança em casa.

- Que legal, eu nunca parei pra pensar, meus pais cobram muito, só que eu não sei se seria boa mãe, eu sou muito agitada e tenho mania de organização. 

- Quando você tem um filho você muda, a sua agitação virá preocupação e ver um filho bagunçando a casa é algo incrível, pode acreditar. - Eu tenho uma sobrinha que quando nasceu fez a alegria da família e vê-la andar, mexer nas coisas, derrubar outras, era tudo muito lindo e muito especial. - Tem coisas que nos faz mudar sem esforço Cecília, sem mesmo perceber a mudança.

- Você se emocional com o assunto, quer mudar.

- Não.

- É lindo ouvir tudo isso e penso que talvez uma criança tivesse me feito olhar o mundo de forma diferente.

-E de que forma queria ter olhado o mundo Cecília?

- Eu queria ter aproveitado mais a vida, ter me divertido, ter viajado. Os anos passam depressa e quando percebemos a idade passou as oportunidades também.

- Fala como se tivesse 80 anos ou 90, ainda é jovem e pode fazer tudo isso, até mesmo adotar uma criança, que com certeza vai mudar o layout desse seu apartamento, e se for menino vai quebrar muitos enfeites, rabiscar suas paredes.

(risos)

- Talvez. Vamos a nossa salada que tem um toque especial viu!

- Já gostei.

Terminamos nossas saladas ainda falando sobre filhos e percebi que Rafaela fica bem mexida com o assunto então resolvi mudar um pouco para que ela não ficasse triste.

- Depois do jantar vou te mostrar meu apartamento, eu tenho um quarto de hospedes que planejei pensando nos meus pais e um escritório que é o meu canto favorito, e não pense que é pelo trabalho não, é que desenhei um espaço que me orgulho onde tem duas poltronas, que servem tanto para leitura como para assistir tv e filmes, embora eu seja viciada em trabalho aos domingos gosto de ver filmes e algumas séries.

- Eu amo ficar morgando no domingo, me jogo no sofá com um pote de pipoca e às vezes durmo lá mesmo. Quando estou em casa eu gosto de relaxar, porque tem sábados que eu encontro uns amigos e ficamos até tarde nos barzinhos, se tiver show então eu adoro.

- Doutora Rafaela cuida das crianças de dia e a noite cai na farra é!?

- Digamos que minha teoria é que a vida é curta e precisamos viver intensamente para fazer cada dia valer a pena.

- Olha somos a água e o vinho.

- Não, Cecília, eu me divirto com responsabilidade e como estou solteira não quero ficar em casa de pijama, claro que isso não tem nada haver com você, eu falo por mim que tive um casamento infeliz e hoje me permito ser feliz com moderação e principalmente porque eu raramente bebo, gosto de conversar, ouvir boa música. Se eu te contar que quase me atrasei para nosso jantar fazendo uma playlist. (risos)

- Me trocou por algumas músicas, é eu estou em baixa mesmo.

(risos)

- Quando for retribuir a visita vou colocar e vai ver que as músicas são ótimas, rock nacional anos 80.

- Legal, eu gosto.

- Tenho saudade das músicas antigas, as atuais me dão a impressão de faltar algo, ou eu estou ficando velha e saudosista.

- Saudosista!!! Realmente está velha vizinha, melhor entrar com sua aposentadoria logo.

(risos)

- Melhor trazer o prato principal porque estou com fome dona Cecília.

- Ok. Vamos para mesa.

- Olha a designer sabe fazer uma bela mesa hein, e se o prato principal estiver igual essa salada vou ser uma frequentadora do seu apartamento.

- Ah! É, então pode se acostumar porque sou boa no que faço.

- Muito modesta também.

- Se eu não valorizar meu produto quem vai?

(risos)

Alguns minutos de silencio para apreciar o filé.

- Cecília, pode deixar meu prato reservado que serei uma degustadora de seus pratos.

- Obrigada! Rafaela e sabe que terá que mostrar os seus dotes agora.

- Pode deixar, começamos pela sobremesa e depois retribuirei o jantar.

- Uma coisa que teremos é tempo porque esses dias em casa fico sem saber o que fazer.

- Agora terá meu projeto pra desenhar.

- Rafaela, você gosta de desenhos? – Me refiro aos com layout.

- Gosto sim Cecília e aprecio belos quadros também.

- Eu amo desenhar, eu faço projetos no computador só que me sinto feliz desenhando no primeiro momento do projeto e hoje algumas pessoas não valorizam e querem logo ver tudo calculado e projetado no computador.

- Eu imagino.

- Vamos ver como está essa sobremesa?

- Espero que goste.

- Só de olhar me apaixonei.

- E ficou sem palavras foi?

- Foi. É quer dizer, você está falando do pavê?  Rafaela. 

- Estou Cecília, achou que era o que?

- O pavê, o pavê mesmo. Vamos busca-lo.

O resto da noite foi incrível as duas fizeram a visitação pelo apartamento e Cecília se divertiu contando sobre alguns imprevistos que teve na obra do apartamento e de peças que teve que devolver. Contou o porquê ter projetado daquela maneira e das possibilidades que ainda tem de mudanças.

Rafaela ouvia encantada com a alegria que Cecília tinha em descrever seus projetos, como médica ela percebeu que sua vizinha estava precisando conversar e quem sabe daqui alguns dias desabafar.

 Rafa faz terapia há 07 anos e adora, quando iniciou estava estressada assim como Cecília parece estar, ela precisa colocar pra fora, é como se a vida dela estivesse no automático.

Depois de conhecer o apartamento elas colocaram a travessa de pavê em cima da bancada e começaram a comer dela. Continuaram conversando e rindo até 01h00 quando Rafaela resolveu ir embora e prometeu fazer um almoço amanhã para continuarem o papo, e Cecília disse que ia pensar em uma sobremesa.

Cecília estava tão feliz que deixou a louça na pia e foi tomar um banho para dormir e quem sabe sonhar.

Fim do capítulo