Nossa famÃlia conta com você.
Eu ainda estava sob a mágica proteção felina de Raimundo, quando meus pais voltaram para casa, Francisca veio com eles e sem demora também iniciou a liturgia de “amassar pãozinho” nas minhas cobertas. Renata, JP e os gêmeos ainda estavam finalizando as vendas da noite, o que significa que o movimento está acima do esperado, como raparei que vinha acontecendo gradualmente desde que eu voltei.
— Amor, nós precisamos conversar com você – Pipoca ocupou o mesmo lugar onde Renata esteve mais cedo, Jujuba arrastou uma cadeira dobrável da sala e a abriu aos pés da cama. A tensão era tanta que nem Raimundo e Francisca aguentaram, se espreguiçaram e majestosamente pularam para fora do quarto, me deixando a mercê do que estava por vir.
— O Magno está tentando fazer algumas melhorias aqui – meu pai começou a falar desajeitado e sem rodeios. – E foram necessárias algumas mudanças, alguns cortes.
— Ele nos demitiu? Isso é absurdo, somos nós que fazemos esse lugar funcionar. Pai, não podemos aceitar tudo o que esse….
— Calma, amor. Seu tio não nos demitiu. Ele nem pode fazer isso, eu também sou dono daqui – Jujuba tentou dizer com alguma dignidade. Bom, não era tecnicamente verdade, mas também não era de tudo mentira. Meus avós deixaram o circo para os filhos ao se aposentaram, e como eles conheciam bem as peculiaridades de cada um deles, deixaram também um contrato especificando os termos da partilha e nele dizia que um irmão não poderia expulsar o outro. Eles só poderiam sair do Esperanza por livre e espontânea vontade. Logo no primeiro ano, Magno parecia um abutre rodeando meu pai o tempo inteiro para falar sobre seus planos de lucros e expansão. O coitado não aguentou a pressão de passar mais tempo cuidando de negócios do que no picadeiro e vendeu sua parte para o Magno, sua única exigência foi que os termos do contrato assinado pelos meus avós continuassem válidos.
— Filha, o Magno comprou alguns equipamentos e materiais novos, mas segundo ele os gastos foram maiores do que havia previsto no orçamento – Pipoca tomou a palavra e falava devagar para não se enrolar. - E para fechar as contas, ele demitiu algumas pessoas e aumentou as horas extras dos que ficaram, ninguém está muito contente com isso, mas é só por um tempo, até as coisas voltarem ao normal.
— Isso significa que eu estou demitida?
— Não, ninguém dessa família foi demitido – esse era um dos momentos em que Jujuba era grato pelo contrato dos pais ter prevalecido, caso contrário estaríamos todos na rua.
— Quem me dera ter sido – JP entrou no quarto e se jogou na minha cama, quase me derrubando para fora dela. Deus, como esse garoto cresceu tão rápido? – Estou tão cansado, mal consigo sentir meus pés.
— O que aconteceu? – perguntei enquanto o empurrava para o canto, recuperando meu espaço.
— Tio Magno enlouqueceu de vez. Quer que a gente venda bugigangas durante o espetáculo, no meio da apresentação dos outros artistas.
— Mãe, isso é loucura! É o nosso tempo de maquiagem e concentração – apelei para Pipoca, já que Jujuba ia aos poucos se encolhendo na cadeira. – Sem contar o tamanho da falta de respeito que é atrapalhar o número de alguém. O intervalo é tempo suficiente para vender o que quer que seja.
— Eu sei, amor – reparei o quanto minha mãe, assim como toda a minha família, estava abatida. – Mas não temos outra opção, como eu disse é temporário, só até as dívidas serem pagas.
— Você sabe muito bem que isso é mentira! O Magno é um parasita, ele só vai parar quando alguém o impedir.
— Ou quando alguém morrer no picadeiro – JP disse tenso. – Todos estão exaustos, não é seguro nos apresentarmos sem preparação.
— Já chega – Jujuba disse tentando recuperar o controle da conversa que começava a ficar exaltada. – Ninguém vai morrer! Nós só temos que fazer o que sempre fizemos e tudo vai ficar bem. O Esperanza é a nossa casa e não vamos deixar que ela se destrua.
— E é sobre isso que queremos conversar com você, amor – minha mãe suavemente afagou meus cabelos em uma tentativa de me acalentar.
Se almas gêmeas existem, Pipoca e Jujuba são um verdadeiro exemplo, chega a ser irritante o tipo de conexão que os une. A troca de olhares entre eles é uma ligação quase palpável. Talvez dividir o palco com uma pessoa durante 25 anos faça isso com você. Obviamente nunca vou experimentar essa sensação, porque diferentemente dos meus ancestrais, eu sou péssima em relacionamentos e criar laços é uma coisa complicada quando os momentos de despedidas são tão frequentes. Não é como se eu nunca tivesse tentado, mas assumir um compromisso com alguém que está sempre de partida é algo que a maioria das pessoas costuma evitar que aconteça em suas vidas. Isso não quer dizer que eu não tenha bons momentos e me divirta, mas noites casuais em quartos de um motel barato dificilmente vão me fazer sentir o que meus pais vivem.
— Não podemos fazer isso com ela – Jujuba agora olhava para minha mãe e os dois faziam aquela bruxaria de silenciosamente se comunicarem.
—Tem razão, vou falar com o Magno e dizer que não concordamos com nada disso.
— Mas, e se a Gabi achar que é boa oportunidade? Vamos dar a ela a chance de escolher o que fazer – Jujuba disse sem muita convicção. Incerteza também era uma das coisas que os dois compartilhavam. Ninguém merece ter dois librianos como pais.
— Vocês se importariam em dividir com a gente o que está acontecendo? – JP se antecipou e tirou as palavras da minha boca.
— A divulgação do vídeo do acidente da Gabi trouxe muita atenção para o circo e consequentemente mais visitantes – Pipoca suspirava fundo enquanto vagarosamente tentava nos explicar. – Magno acha que é uma boa ideia usarmos esse momento de atenção para nos reerguermos.
— Como exatamente ele pretende fazer isso? – perguntei sentindo que não eram boas notícias que estavam por vir.
— Ele quer que você se apresente em um número conosco para mostrar para as pessoas que você está viva, é um meio de associar a sua imagem ao Esperanza e aos produtos novos que vendemos aqui.
— E também abrir um canal de doações para que as pessoas que ficaram sensibilizadas com a sua história possam ajudar o circo.
— Vocês ficaram malucos? – era só o que me faltava. Usar o momento de maior desgraça da vida de alguém para lucrar em cima disso é típico do Magno, mas eu não vou permitir que ele transforme a minha sobrevivência em uma atração, muito menos em fonte de lucro.– O Magno não vai me usar para enganar as pessoas e vender qualquer porcaria que seja. Isso é loucura.
— Vocês deveriam estar envergonhados só por terem pensado na possibilidade de aceitarem algo assim – JP levantou-se da cama e falou para nossos pais.
— Filho, as coisas não são tão simples – Pipoca disse cansada.
— Não me interessa! A Gabi já disse que não vai e isso parece ser bem simples pra mim. Vocês não podem colocá-la no palco e a exibirem como “a menina que sobreviveu”, ela não é a porr* do Harry Potter. Deveria ser bem simples pra vocês também.
— O Magno está falando em acabar com o circo e investir em outros ares se as coisas não melhorarem logo. Se o Esperanza acabar todos nós ficaremos sem lar. Temos que fazer alguma coisa. – Novamente sou obrigada a culpar o signo pela lerdeza e diplomacia dos meus pais.
— Pelo amor de Deus, mãe! É um blefe – JP esfregava as duas mãos no rosto tentando controlar a sua indignação. – Ele está enganando vocês, como sempre fez.
— JP, está tudo bem, deixa que eu resolvo isso – depois de Jujuba, JP era a pessoa mais calma da família e vê-lo nervoso é uma das muitas novidades por aqui. – Entendo que a situação está complicada e que precisamos nos reerguer, mas não vou entrar naquele palco pelos motivos errados. E o João tem razão, o Magno nunca abriria mão do Esperanza, vocês já deveriam saber.
— Filha…
— Eu perdi tanta coisa nos últimos meses, por favor, não me obriguem a fazer isso e perder a admiração e orgulho que eu sinto por vocês também – interrompi Jujuba e falei usando o restinho de energia que me restava. Essa conversa bagunçou todos meus chacras, preciso dos meus gatos para me realinhar.
— Nós nunca te obrigaríamos a nada, mas você precisa entender que não se trata apenas de salvar o Esperanza, estamos tentando encontrar um meio de te salvar também.
— Pai, eu já fui salva. O que eu preciso é de tempo! – Jéssica e Rebeca ficariam orgulhosas de mim agora, finalmente minha ficha caiu e estou aceitando o que neguei durante todo período de reabilitação. A divulgação do vídeo serviu para me mostrar que ainda não estou pronta. Antes de subir no tecido outra vez, tenho que me libertar de toda a escuridão que me engoliu quando mergulhei em direção ao chão.
— Gabi, você não tem que fazer isso. Foi apenas uma ideia e por um momento achamos que pudesse ser o primeiro passo para você recuperar a sua vida também.
Até o dia do acidente, eu não precisei fazer muitas escolhas. Não escolhi crescer no circo, nem a fazer acrobacias e apesar de o tecido ser a minha grande paixão, também não o escolhi. Ele me escolheu e eu apenas aceitei o que me foi oferecido. Essa parte da minha vida simplesmente seguiu um fluxo predestinado e aconteceu sem que eu tivesse que decidir o que queria fazer. Mas de repente fui obrigada a fazer grandes escolhas: acordar do coma, renascer, sobreviver, sentir. Ser. É como se eu estivesse no meio de um estalo onde as ideias clareiam-se magicamente e tudo começa a fazer sentido.
— Não vou recuperar minha vida manipulando e enganando pessoas. Eu era uma artista e é isso que voltarei a ser. Uma artista ou nada – dessa vez estou no controle, e eu escolho ser artista.
— Bom, então acho que essa conversa acabou – Jujuba passou a mão no meu cabelo e me olhou com um sorriso amoroso.
— Vamos deixar você descansar – meus pais saíram do quarto. E de um jeito estranho, apesar de tudo, senti que eu os havia deixado exultantes e orgulhosos. – Nossa família conta você, obrigada por ser forte quando nem nós conseguimos.
Essa gente do circo é mesmo maluca.
Fim do capítulo
E ai gente, como cêis estão?
O que estão achando desse começo? Os primeiros capítulos estão meio parados, porque é mais apresentação dos personagens. Mas o romance vai chegar já já hehe
Beeijo, se cuidem ^^
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mariaclara2604
Em: 27/04/2020
estou gostando mto, não para tá
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