Diálogo com os Espíritos -- Capítulo 26

Fernanda olhava as fotos que Juliana mostrava no computador, mas nenhuma das moças a agradava.

-- Essa tem os olhos muito grandes -- disse fazendo uma careta -- Essa é morena, eu quero uma loira. Essa é muito bronzeada, quero uma mais branquinha. Essa é muito...

Juliana fechou o notebook e se levantou irritada.

-- Você está escolhendo uma namorada, ou uma dublê para a Alicia? O tipo que você procura está bem difícil no mercado, querida! Tenta ser um pouquinho menos exigente.

Fernanda também se levantou e foi até a janela.

-- Ah, mas eu queria uma que se parecesse ao menos um pouquinho com ela -- disse, olhando para fora, desanimada -- Obrigada pela intenção. Mas não creio que seja uma boa ideia -- disse, depois de pensar um pouco.

-- Também acho. Sabe quanto essas mulheres cobram por uma hora de trabalho? -- Suelen olhou para a namorada, depois para Fernanda.

-- Sei lá, não faço a menor ideia -- Fernanda respondeu, sorrindo -- Nunca precisei contratar uma acompanhante.

-- Elas cobram uma fortuna. Não esqueça que você não tem mais nada para vender -- Suelen disse rindo.

-- Engraçadinha! -- Fernanda mostrou a língua para ela -- Falando nisso, meu perfume está acabando.

-- Faz um consignado -- disse Suelen, em tom de brincadeira.

-- Qual é o nome do seu perfume? Nós compramos para você.

-- NÃO! -- a voz de Suelen saiu alta -- Nem pense nisso, Ju.

-- Credo, Suelen! -- Juliana chegou a se encolher de susto -- Não precisa berrar.

-- Você diz isso porque não sabe quanto custa essa coisa. Até parece a formula do amor de tão caro que é -- Suelen puxou Fernanda pela mão para tirá-la da sala e levá-la para a cozinha -- Vem também Juliana, mudanças de planos.

Juliana as seguiu até a cozinha. Pararam ao lado da mesa onde havia uma garrafa térmica e duas canecas.

-- Como assim? Por que vamos mudar de plano? -- perguntou a ruiva, curiosa.

-- Pra que gastarmos dinheiro quando temos uma ótima atriz entre nós! -- disse Suelen, olhando para Juliana de forma estranha.

-- Ah, não! -- a ruiva franziu a testa quando percebeu que Suelen falava dela.

-- Posso tomar um café? -- perguntou Fernanda, se sentando a mesa -- Acho que peguei a mania da Alicia.

-- É claro. Vou servi-la -- ofereceu-se, Suelen.

-- Não. Pode deixar que eu mesma me sirvo -- insistiu, Fernanda.

Juliana observava pensativa. Adorava uma brincadeira, mas não conhecia a médica, sentia-se receosa.

-- Ela é do tipo violenta? Capaz de contratar alguém para me dar uma surra ou quem sabe até me matar e desovar o meu corpo em um matagal qualquer?

-- A Alicia? -- Fernanda riu, divertida -- A doutora não faz mal a uma mosca.

Juliana puxou uma cadeira e sentou-se, decidiu acompanhá-la no café.

-- O que você quer para comer? Um croissant? Torrada?

-- Não quero nada -- Fernanda interrompeu-a -- Obrigada. Só o café mesmo.

-- Alicia é uma panaca. Pacifica demais para o meu gosto -- comentou Suelen -- Não vê como ela atura a assistente do demônio?

-- Não fala assim dela. Alicia é muito tranquila e faz o possível para manter a harmonia. As vezes chega até ser irritante, mas é uma virtude e não um defeito.

Juliana virou-se para olhar para ela.

-- Prefiro ficar bem ligada por que até uma pessoa pacífica pode viver um dia de fúria.

-- Então, você aceitou ser a namorada apaixonada da Fernanda! -- disse Suelen com um sorriso leve.

-- Apesar de magoada por ela preferir as loiras, eu topo. Vai ser muito divertido ver a cara da doutora quando eu aparecer na porta do apartamento dela me apresentando como a namorada da Fernanda.

Fernanda balançou a cabeça.

-- Triste vai ser se ela não der a mínima. Aí eu morro!

-- É um risco que você tem que correr -- Suelen encheu uma caneca de café e sentou-se do outro lado da mesa -- Começamos hoje? -- inquiriu ansiosa, com empolgação estampada no rosto.

Fernanda deu uma risada nervosa.

-- Hoje não! -- disse ela bruscamente.

-- Não vai desistir, né -- Juliana sorveu um gole de café e recostou-se na cadeira, com as pernas estendidas -- Agora estou empolgada.

Fernanda piscou e desviou o olhar, sentindo-se repentina e inexplicavelmente confusa.

-- Eu... -- ela ia dizer alguma coisa, mas suspirou e mudou de ideia -- Tá certo, que tal amanhã? -- Fernanda esfregou as mãos nos braços em um gesto nervoso. Sofria só de pensar em uma reação desinteressada de Alicia.

Juliana e Suelen fizeram um gesto positivo com a mão para indicar que concordavam.

Quando Alicia entrou na sala Cléo cantava e dançava, enquanto limpava o elegante tapete de pelo alto com o aspirador de pó.

-- Ai uanto brey que freeeeee, Ai uanto brey que freeeeee, Ai uanto brey que free from iou lais... Gait nooo...

-- Cléo! -- Alicia chamou o rapaz, mas com o barulho ele não ouviu e continuou cantando.

-- Gait nooo... Ai uanto brey que freeeeee...

-- CLÉO! -- Alicia berrou e ele se assustou.

-- Aiii... Que susto, docteur -- ele desligou o aspirador, colocou a mão na cintura e ficou a encará-la.

-- Coitado do Freddie Mercury, morreu pela segunda vez. É por essas e outras que os Espíritos ficam presos a terra.

-- Nem vem, docteur. Eu canto bem, você é quem ouve mal.

-- Sei, a música é em inglês, você canta em chinês, eu entendo em árabe -- ela deu de ombros, depois enfiou as mãos nos bolsos da calça jeans e sorriu para ele -- Onde será que a Fernanda se meteu?

Ele olhou no bolso do avental.

-- Aqui não está -- respondeu Cléo num tom cínico -- Reclamações? Entre em contato com sac@mimimi.com.br, que em breve você será atendida. Quem ama cuida, não cuidou agora não adianta reclamar.

-- Tá falando do que, Cléo? Cara louco! -- percebeu uma oscilação na própria voz e sentiu um desejo incomum de jogar o aspirador de pó na cabeça dele -- Tem gente que não sei se aplaudo pela ousadia, ou se agrido pela cara de pau -- resmungou irritada.

-- A docteur é tão amarga, que eu acho que na outra encarnação foi um pé de boldo.

-- Cala a boca, Cléo! -- disse ela, encarando-o fixamente, sem piscar.

-- Não calo, não calo, não calo -- ele esperneou -- E digo mais: O amor é como um peido. Ninguém vê, mas quando a gente sente que está vindo fica com medo porque sabe que vai dar merd*.

Alicia levantou o braço e partiu pra cima dele.

-- Aiiii... -- ele correu ao redor do sofá e Alicia correu atrás dele.

O som de uma chave girando na fechadura fez os dois pararem imediatamente e olharem na direção da porta. Em silêncio, viram Fernanda entrar e fechar a porta atrás de si.

-- Boa noite! -- ela se virou, desejando ser capaz de ler a mente da médica. Ao perceber que Alicia a fitava de forma intensa, Fernanda sentiu como se um frio descesse por suas costas -- Algum problema?

Alicia se recompôs e respirou fundo.

-- O que esteve fazendo até agora? -- ela olhou para Fernanda com firmeza, esperando uma resposta, mas a psicóloga apenas jogou a bolsa sobre o sofá e foi para a cozinha.

A médica foi atrás. Um silêncio pesado encheu o ambiente, e, quando Alicia se preparava para falar alguma coisa, Fernanda respondeu.

-- Nada importante -- ela estendeu o braço para pegar uma xícara no armário.

Alicia franziu a testa.

-- É só isso que tem para me dizer?

-- Sim -- ela respondeu de maneira breve e fingindo desinteresse. Queria provocá-la ao máximo para ver até que ponto ia a sua curiosidade.

-- Você fica horas na rua e a única coisa que tem a me dizer é: "Nada importante".

-- Está me interrogando, doutora? Pensei que fosse sua convidada e não uma prisioneira.

Alicia respirou fundo, estava agindo como uma ditadora. Não tinha o direito de querer controlar os passos da moça.

-- Por favor, me desculpa -- murmurou, sentindo o rosto queimar -- Não foi a minha intensão ser chata e controladora. É que, faz pouco tempo que você passou por um transplante, sabe com é, fiquei preocupada -- disse, amável.

Fernanda assentiu e desviou o olhar um pouco decepcionada.

-- Cléo fez uma cuca de banana, não quer provar? Está uma delicia! -- ela deu a Fernanda um daqueles sorrisos que lhe derretiam o coração.

-- Aceito, adoro cuca de banana -- ela claramente recusava-se a olhar para Alicia.

Cléo entrou na cozinha, muito sorridente, o cabelo ainda molhado, como se tivesse acabado de sair do banho.

-- Não sei vocês, mas quando eu tomo banho em uma casa que não é a minha, uso todos os produtos de beleza que estiverem no banheiro. Nem leio o que está escrito.

-- Tá explicado o cheiro de desodorante intimo -- comentou Alicia, sorrindo.

Cléo cheirou o braço e fez uma careta.

-- Desagradável!

-- Vou sair para visitar a mãe do Vinícius Ferrari. Pensei que talvez você quisesse me acompanhar -- Alicia se dirigiu a Fernanda sentando-se a mesa, para comer um pedaço de cuca -- Não vou demorar muito, prometo.

-- Eu quero -- disse Cléo, imediatamente.

Alicia fingiu não ter ouvido.

-- Quem é Vinícius Ferrari? -- perguntou, Fernanda.

-- Era o motorista do carro que bateu de frente com o carro de Thais. Preciso conversar com a mãe dele e tranquilizá-la. Foi uma promessa que fiz ao Espirito de Vinícius e preciso cumpri-la.

-- Não vou ficar sozinho nesse apartamento. Vai que a menina chorona apareça!

-- Você tem medo de ficar sozinho, Cléo? -- Fernanda levantou os olhos para o rapaz que colocava um pedaço de cuca em seu prato.

-- Não tenho medo de ficar sozinho, tenho medo do que possa acontecer quando eu estiver sozinho.

Fernanda comeu o pedaço de cuca e ainda bebeu uma xícara de café com leite. Depois se levantou e colocou a louça na pia.

-- Vou colocar outra roupa. Já volto -- disse para Alicia e saiu em direção ao quarto.

Fernanda se vestiu e arrumou os cabelos. Quando estava pronta, se olhou no espelho,

-- Até que estou bem -- comentou para si mesma. O vestido básico verde a deixava muito bonita.

A porta abriu de repente. Fernanda virou-se e quase perdeu o equilíbrio quando a cabeça girou. Alicia soltou uma breve exclamação, atravessou o quarto com rapidez e a segurou pela cintura. Ela apoiou-se no ombro da médica, respirando fundo até sentir a visão clarear.

-- Acho que você está se esforçando muito -- censurou Alicia, olhando para ela com preocupação -- Venha, vou ajudá-la a sentar.

Com o auxílio da médica, Fernanda se sentou na cama.

-- Estou bem -- ela murmurou.

-- Ah, tá. Esqueci que você só faz isso para ficar em meus braços -- disse, rindo; um riso doce e suave que envolveu todo o rosto.

-- Bobinha! -- ela encostou a cabeça no ombro de Alicia e fechou os olhos. Alguma coisa estava muito errada. Ela estava se sentindo cansada demais. E não era por causa do transplante. Seus olhos voltaram a ficar pesados e ela adormeceu nos braços da médica.

Suspirando fundo, Alicia ajeitou-a na cama. Não havia dúvida sobre o que estava acontecendo. Enquanto o espírito de Thais não fosse encaminhado e a energia original de Fernanda não fosse restabelecida, a situação tendia a piorar, pois o espírito de Thais passara a utilizar o corpo de Fernanda como se fosse seu, e criaria raízes. Thais não têm vínculos com Fernanda, mas ela encontrou uma similaridade vibratória, e entrou. Por que será que isso aconteceu? Perguntou-se Alicia, intrigada.

Ela levou a mão até o cabelo da moça, e acariciou-lhe com carinho. Chamou tanto pelo Espirito da Thais, queria tanto que ela voltasse ao menos para uma última conversa, mas não dessa forma. Não sugando a energia de outra pessoa, não trazendo desequilíbrio emocional e gerando conflitos de personalidade.

Fernanda se mexeu e em seu sono atribulado, sussurrou:

-- Alicia, meu amor!

Fim do capítulo