Capítulo Único
Livia Moline estava irritada. A mistura de pó e claridade não era agradável aos olhos, mas não era isso que a incomodava. Na verdade, o desconforto era normal durante uma tocaia no meio do deserto, em uma casa abandonada cheia de frestas e madeira podre. O que a irritava era a mulher à sua frente, que parecia mais um robô do que um ser humano.
Sabia que ela não tinha culpa. Valentine era uma Soldado com um chip na cabeça, criada para não sentir nada que atrapalhasse suas missões. A errada era ela mesma, Sobrevivente resgatada que inventara de voluntariar-se para estar na frente de combate. Não devia se irritar nunca, ainda mais quando a ruiva de olhos bicolores demonstrava ter algum tipo de sentimento dentro de si de vez em quando.
- Não sei o que você espera de mim - Valentine se recostou em uma parede cimentada e sentou no chão com uma expressão rígida.
Por vezes Livia pensou em desistir, mas o que a impedia de fazer isso eram seus olhos. O azul demonstrava um interesse genuíno em querer entender e agradar, ainda que seus músculos faciais lhe dessem um semblante neutro. E o branco... Bom. O branco a lembrava que Valentine perdera a visão do olho direito e ganhara uma bela cicatriz no rosto por causa dela. O conjunto de imperfeições no corpo imaculado mostrava o quão vulnerável ela podia ser, característica inadmissível a um Soldado de nível tão avançado.
- Essa é a questão, Valen. - A irritação deu espaço ao conformismo, e uma tristeza lhe abateu. - Não posso esperar nada.
O silêncio se fez presente na casa abandonada, e o calor terrível as impedir de dizer ou fazer qualquer coisa. Livia respirou fundo. O traje de metal apertava seu corpo de tal maneira que, se prestasse muita atenção, teria um ataque de claustrofobia.
- O que posso fazer? - perguntou a ruiva, e Livia podia ver suas tentativas falhas em resolver as coisas sozinha. - Me diga o que fazer.
- Não posso mandar você sentir ou se importar com as coisas. Não é assim que funciona.
Ela desviou o olhar e trincou a mandíbula, apertando a arma que tinha nas mãos.
- Isso aí se chama frustração.
- Como faço para atirar nela?
- Está fazendo uma piada?
- Você sabe que não sei fazer piadas.
Um pouco da irritação se esvaiu e até esboçou um sorriso, chutando-a de brincadeira e suavizando o jeito com a qual a olhava. Compartilhava da mesma frustração que ela, e teria feito algum comentário a respeito se não fosse pelo barulho lá fora. Valentine se virou para olhar por uma fresta na parede. O comboio de Emeralds que esperavam se aproximava com um carregamento de materiais radioativos, então era hora de agir.
Haviam treinado aquela emboscada por dias. Moveram-se o mais silenciosamente possível pelo solo arenoso, escondendo-se atrás das pilhas de sucata que rodeavam a casa. Não era sua primeira missão, mas sempre tinha a mesma injeção de adrenalina como se fosse. Livia tentou normalizar a respiração e fechou os olhos, ouvindo apenas seus batimentos cardíacos.
- "Pronta?" - ouviu através do comunicador.
- Pronta - respondeu, e o que era para ser uma simples missão para duas pessoas, revelou-se um pouco mais complicada do que isso.
Pôde ver Valentine revelando sua posição e atirando nos Emeralds que puxavam o grupo. Como não utilizavam armas, ela possuía a vantagem da distância, e logo dois deles estavam no chão. Mas a quantidade que surgiu após o abate fez com que Livia engolisse em seco. Eram no mínimo dez. Dez para duas.
Precisava agir rapidamente para que não fosse cercada. Ergueu sua arma e atirou nos alienígenas verde-escuros, conseguindo eliminar dois de uma vez. Eles podiam não utilizar armas, mas eram mais rápidos na corrida do que ela, e suas garras soltavam um líquido venenoso capaz de infectar feridas em tempo recorde. Com sua inexperiência de nível 4 fazendo-a tomar decisões de caminho precipitadas e errôneas, logo sentiu uma garra segurar sua veste metálica e jogá-la longe.
Com dificuldade levantou-se antes que a alcançassem, e com tiros certeiros derrubou mais um. Contudo, antes que percebesse movimentos ao seu redor, recebeu uma pancada tão forte no tronco que sentiu sua armadura amassar suas costelas, dificultando ainda mais a já precária respiração. Todo o seu treinamento caiu por terra, sobrando a garota indefesa e assustada de anos atrás.
Mas ainda havia Valentine. Valentine, que possuía a paciência e destreza necessárias para acabar com todos aqueles bichos sozinha; que fez questão de encerrar a missão vitoriosa, que ajoelhou-se ao seu lado enquanto gritava no comunicador ordenando que um resgate fosse despachado para suas coordenadas; que tirou seu próprio traje, colocou-a nas costas e a carregou por quilômetros pelo deserto até uma área segura quando recusaram enviar um helicóptero para onde havia solicitado. Livia perdera a consciência várias vezes durante aquela caminhada, mas em todas em que se encontrou acordada, conseguia ouvir sua voz dizendo palavras que muitas vezes não faziam sentido algum.
O barulho do helicóptero a acordou novamente, e dessa vez Livia se viu imobilizada, com uma agulha no braço e uma mão na sua. Valentine a olhava encostada no banco ao seu lado. Tinha o rosto salpicado de pequenos cortes por conta do açoite de grãos de areia e resíduos acarretado de picos de ventania. O protocolo para qualquer Soldado era deixar para trás os feridos, finalizar a missão e seguir ao ponto de encontro. Mas Valentine já não era mais qualquer Soldado, e mais uma vez provava que alguma coisa ali dentro havia mudado.
- Posso fazer o possível para que fique bem. Isso significa alguma coisa?
- É o que quer fazer?
- Não quero que você morra.
Livia sentiu os olhos se encherem de água e sorriu, mesmo com a dor nas costelas.
- Então significa que você se importa.
A ruiva assentiu como fazia com seus comandantes e tornou a recostar no banco. O semblante neutro deu espaço a uma expressão de missão cumprida, e foi com essa visão que Livia se deixou adormecer, tranquila.
Fim do capítulo
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Cristiane Schwinden
Em: 12/05/2019
Eu amo esse estilo!! Fiquei doida pra ler mais, vai ter mais? Ficou muito bom, entrei na ação!
Resposta do autor:
Fico feliz que tenha gostado! Ainda não sei se vai ter mais. Quem sabe, né? Kkk obrigada pela leitura!

rhina
Em: 11/05/2019
Olá
Boa noite!
Quantos tipos de humanos existem ?
Se fosse possível catalogar todos os tipos de humanos e suas armaduras forjadas pelo meio ......habitat......situação. ......
E como criar laços temporais com entre si......quando duas espécies distintas em suas personalidade desenvolvem mais que uma mera convivência. .....
Rhina
Resposta do autor:
Boa noite! Existem dois tipos, até onde pensei hahah obrigada pela leitura!
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Endless
Em: 10/05/2019
Menina, esse spin off do que ainda vai escrever foi massa! kkkk! A história completa já está escrita? Quando vai postar? Olha a ansiedade aí, gente! Magnífica escrita e roteiro de potencial. Boa sorte sempre.
Resposta do autor:
Seu comentário me deixou tão animada! Não tenho nada escrito, só pedaços de cenas e coisas que ainda não saíram da minha cabeça kkk muito obrigada pela leitura :D
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