Ela era tão... Pequena. Enquanto segurava seus dedinhos, depois de ter aplicado o antídoto, rezava ferozmente para que desse certo. Por alguns segundos senti a pressão tênue que se desfez quando os aparelhos encerravam os sinais vitais. A mão que eu ternamente segurava transformara-se em uma garra negra e espinhosa cravando-se no meu antebraço onde sentia mil agulhas o perfurando.

-- Estação Kepler 40bc! Responda! Terra chamando!

Foi essa mensagem que me tirou do sonho recorrente. Ergui o corpo meio que desajeitada. Ao me por de pé, a cama, automaticamente, alojou-se na parede de metal. Apesar de fazer o gesto pelo 796º dia consecutivo, me pareceu como o primeiro. Olhei para o relógio de pulso. Faltava meia hora para a exploração. Cliquei em sua tela para responder ao comando.

-- Bom dia Terra, Wakanda na escuta. -- não resisti à brincadeira. Sabia bem quem estava do outro lado.

-- Que bom que está com ótimo humor, major Whister. Sabe que dia é hoje?

Que dia é hoje... Desde que aceitou a missão suicida de explorar o recém-descoberto planeta, não queria contar o tempo. Não foi essa a intenção. Queria apenas chegar ao fim. O nada.

-- Hoje é o dia do Detona Ralph!! -- quase gritei, deixando ele mais irritado.

-- Vá se ferrar!! Você jamais será minha Vanélope! Saia e encontre algo que deixe o general contente!!

-- Sim, senhor!! -- insisti na palhaçada.

-- Hei... Vlada... Não está na hora de voltar?

Quando parti não pensei em voltar. Que pergunta era aquela?

-- Mike... Eu não posso...

Tudo veio de repente. Meus anos de medicina. Meu casamento feliz. Minha filha... E... Senti minha glote se fechando em uma dor lancinante.

-- Hei, Whister... Ainda não entendi porque você...

-- Estou atrasada.

Fechei a comunicação e me preparei para a jornada. Não evitei o sorriso ao me lembrar desse menino. Muito novo para a função. Estava na comunicação há trezentos dias. Uma alma que veio me ajudar na minha autopunição. Trocávamos ideias sobre tudo. Jogos, filmes, cinema... Ele era Marvel e eu DC. Como eu e... Fechei os olhos com força desnecessária. Isso não ia aliviar as lembranças. Mindy e eu travávamos batalhas de super-heróis. Ela o Homem de Ferro... Eu, o Batman.  Ela, a Capitã Marvel... Eu, a Mulher Maravilha. Mesmo assim, sonhávamos com o dia em que nossos super-heróis se encontrariam formando a grande Liga Vingadora.

Mas havia um abismo entre nós agora. Minha soberba atingiu a única coisa que fizemos juntas e era nossa maior alegria. O alerta do começo da minha aventura diária soou. Lá fora tudo era bem diferente e inesperado. Meu indicador climático apontava uma grande tempestade solar. Isso iria “levantar a poeira” como o Mike gostava de dizer. Olhei para o meu comunicador de pulso. Sabia que precisava dele para sobreviver lá fora. Suspirei. Saí decidida a não ceder. O último acessório era o capacete. Fixei-o na cabeça e segui. Porta aberta. Era estranho. Cada vez que vislumbrava o cenário, me perdia em divagações. Depois de vasculhar muitos metros, me vi acessando a comunicação.

-- Mike?

-- Porr*, Whister!!

-- Hei, calma...

-- Calma?  Calma? Você... -- a pausa, eu sabia, era para evitar me xingar. Ele nunca o faria. -- Certo. A tempestade está se aproximando. Melhor voltar para a estação.

-- Mike... São apenas fagulhas...

-- Radioativas!!! Mais do que seu traje pode suportar!!

-- E daí? -- estava cansada.

-- Por quê?

-- Por que o quê?  -- eu sabia, mas queria ganhar tempo para a pergunta que viria a seguir.

-- Por que aceitou essa missão?

-- Mike...

Eu não sabia o que dizer a ele. Eu tinha fugido. Da dor de saber que tinha matado minha filha. Que tinha decepcionado o amor de minha vida. Que tinha partido para descobrir, nesse novo planeta, como salvar outras crianças. Que tinha decidido buscar até a morte. Então fiz uma pergunta. A que me perseguia em todos esses dias de solidão naquele planeta.

-- Como ela está?

-- Pensei que nunca ia perguntar... -- a voz saiu meio trêmula. -- ela assumiu uma missão. -- diante de meu silêncio, ele continuou. -- sem volta.

Suspirei. Não podia recriminá-la. Havia perdido a filha que tanto quis. Olhei para o medidor de clima. A tempestade sumira. Percorri ainda alguns quilômetros recolhendo material, cujas características eu ainda não tinha reconhecido como válidas para o comando. Hora de voltar.

-- Hei, Homem Formiga... Voltando para o “acampamento”.

Não esperei resposta. Só queria o calor do meu lugar. Minha cama retrátil. Meu chá inorgânico. Minha música. E sofrer, agora mais que nunca. Onde ela estaria?

Somos duas almas perdidas agora. Foi o que pensei antes de entrar na estação. Retirei o uniforme. Fiz a desinfetação. Pus meu modelito de dormir e ativei a cama. Dormir era meu exercício favorito. Engoli um dos alimentos desidratados em capsulas. Fechei os olhos. No meu sono não cabia só aquele sonho medonho. Cabia também as lembranças dela. De nós. Do seu cheiro. Do calor de suas mãos em minha cintura dizendo que eu nunca estaria só. Do beijo ch*pado com leveza em meu pescoço. Tão real que... Era real! Abri os olhos e foquei em minha mão que cobria as dela, apertando-as como quisesse reconhecê-las como verdade.

-- Sim, sou eu... -- uma breve risada rouca ecoou bem dentro do meu ouvido. Tantas sensações.

Levantei-me tão rápido que foi inevitável cair no chão, mas erguendo-me, ligeira. Passei a encarar aqueles olhos azuis como o antigo céu visto da Terra. Dentro desse olhar, não vi a decepção, nem raiva, nem cobrança. Vi o mesmo amor de sempre.

-- Como...

-- Vim para onde é meu lugar...

-- Lakmee... Ela... Eu...

Fui coberta por longos braços protetores, me aninhando, me devolvendo a vida.

-- Ela está bem... O efeito da sua química surtiu em poucos dias, mas você já tinha ido.

-- Tem que me explicar isso direito!

-- Teremos todo tempo do mundo.

Beijou-me, enfim.

Fim do capítulo