Detestava que estivesse chovendo depois de um dia vermelho.

A chuva caía forte do lado de fora de seu escritório-aquário, molhando a noite em Santiago, rebentando forte contra suas paredes de vidro. O café fumegava abandonado ao lado do notebook, Alice sentia os olhos delas em sua nuca.

De todas elas. Todas as garotas mortas. Todas as desaparecidas. Quatro no primeiro time, duas no segundo. E o tempo cruel contava veementemente cada segundo passado, lhe dizendo que estava cada vez mais próximo o momento em que as duas do segundo time, se juntariam as quatro do primeiro. Um time só, unidas em prol de sua impotência como investigadora.

Respirou fundo, tocando a xícara fumegante, olhando o pedaço de bolo Red Velvet comprado ainda pela manhã e que não conseguiu sequer tocar. Um assassinato. Assim, antes das oito. Mais uma garota morta. Bonita como as demais. A encarou novamente no porta-retratos ensanguentado que tinha recolhido na cena do crime. Uma foto feliz, de um jovem casal perfeito durante o casamento dos sonhos: a noiva era Ranna Sartori, digital influencer, mais de cinco milhões de seguidores no Instagram, a vítima era Alexis Schäfer, uma menina de fazenda que acabou nos braços de uma das mulheres mais desejadas do Chile. Um casamento na praia, noivas em vestidos brancos, um beijo apaixonado durante uma noite clara cheia de estrelas.

— Schäfer… — Se repetiu. Qual delas se chamava Schäfer?

Uma menina que não estava em seu quadro de mortas x desaparecidas.

Alice correu para suas últimas ocorrências, buscando, procurando, Aida Schäfer, era a mãe, tinha vindo registrar o desaparecimento da filha mais nova, Michaela Schäfer, o tipo de desaparecimento que a polícia não considera logo de cara, adolescentes fogem o tempo inteiro, mas com um assassino cujo predileção são garotas de dezesseis, dezessete anos, a ocorrência veio parar em sua mesa. Michaela. Encontrou a foto, olhou para o retrato ensanguentado ao lado da sua fatia de Red Velvet que derretia em fios grudentos um recheio de frutas vermelhas. Nunca mais comeria bolos vermelhos, não depois de ver a Schäfer mais velha morta com um tiro na cabeça. Um disparo feito muito de perto, algo lhe dizia que Ranna tinha a matado durante o sex*, Alexis estava nua e parecia estranhamente relaxada. A bala entrou no meio de sua testa, o sangue espirrou na foto do casamento dos sonhos.

Pegou o telefone, fez uma ligação:

— Ramirez, a Natalia se acalmou?

— Ela está furiosa de estar trancada, Doutora.

Natalia Mendel, sua melhor investigadora, pós-graduada em psicologia criminal e em construção de perfis criminais. Tinha fama de entrar na mente de criminosos e entender seus gatilhos, seus porquês, uma garota extremamente bonita e fascinada por coisas completamente feias, e quando pela manhã, Alice ouviu que se tratava de um crime passional, ligar para Natalia foi reação natural. Só não esperava que…

Bem, no final das contas, Schäfer era um sobrenome que já havia ouvido outras vezes, por isso soava tão familiar. Natalia e Alexis Schäfer tinham uma ligação, e ela não se acalmara desde então.

— Diga que preciso dela calma. E Ranna Sartori?

Sua porta se abriu.

— Navas, ela acabou de confessar.

Baixou o telefone imediatamente.

— Confessou o quê? Ela já havia dito que matou a mulher — Aliás, encontraram Ranna Sartori de robe de seda, coberta de sangue, fazendo um chá para o café da manhã enquanto a esposa estava morta no quarto do casal.

 — As suas garotas mortas. Ela confessou.

Alice Navas pegou o porta-retratos e correu para o isolamento. O coque frouxo feito de seus longos cabelos castanhos, o rosto sul-americano, com traços andinos, pele clara, de quem havia sido criada nos Andes. Repuxou as mangas de seu suéter preto e entrou no isolamento onde estava Ranna Sartori.

Viu o rosto dela pela primeira vez. Era diferente sem aquele sangue todo.

— Finalmente você veio me ver, Alice. Achei que ia me deixar esperando a noite inteira — Ela abriu um sorriso, os olhos verdes perturbadoramente bonitos, a beleza europeia aristocrática da classe alta da sociedade chilena. Era toda perturbadora, na verdade. Uma mulher que mata a esposa não podia ter aparência diferente. Alice colocou o porta-retratos na frente dela.

— Onde está a Michaela?

— Michaela…? — Ela olhou para o porta-retratos, tocou a imagem de Alexis, pareceu lembrar de alguma coisa — Mia! Quer falar da Mia?

— Quero falar também das outras garotas que você matou.

Ela abriu outro sorriso.

— Você sempre soube, não é? Que era uma mulher. Alexis falava disso o tempo inteiro, “Navas sabe, ela está dando créditos que pode ser uma mulher”. A polícia inteira procurando um homem, mas você sabia. Nós mulheres podemos ser qualquer coisa. Inclusive, assassinas em série.

Era o tom feminista que ela usava em suas postagens. Alice se sentou à frente dela, havia um copo com água pela metade na sua frente.

— Você matou aquelas garotas.

— É claro que não, quem disse isso?

— Você disse! Está sendo filmada e gravada, não me faça de idiota.

— Eu disse que, finalmente, você tinha a sua assassina. Mas não disse que era eu — Fitou o copo sobre a mesa.

— Você matou a sua esposa.

— Eu não matei a Alexis! — Respondeu, com os olhos enchendo imediatamente — Eu amava a minha mulher, amava. Nunca amei ninguém como amava a Alexis.

— Tuas digitais estão na arma do crime, você estava coberta de sangue.

Ela ficou em silêncio por alguns instantes, ainda olhando a água no copo transparente.

— Acha que está meio cheio ou meio vazio?

— Não use psicologia comigo, sairá perdendo.

— Está meio cheio — E então, subitamente, ela se debruçou sobre a mesa, agarrando Alice pelo suéter, ficando a centímetros dos olhos dela. Ainda havia sangue em seus cílios — Eu não matei a Alexis. Eu salvei vidas. Salvei a Michaela. A sua Natalia. Salvei você — Voltou para a cadeira — Eu matei a assassina.

Fim do capítulo