Carolina sentiu um arrepio frio na espinha, todos os seus sentidos ficaram aguçados, os olhos de Lucia estavam vermelhos, denunciavam seu estado alterado por algum tipo de droga que ela com certeza usou antes de ir aquele encontro, combinado com a bebida que estava em suas mãos, ela era uma grande ameaça.

            Lucia sorria debilmente, parecia que estava em outra dimensão, a arma apontada para Carolina denunciava que ela não tinha ido até ali apenas para conversar.

 

 

-- O que você está fazendo aqui?

 

 

-- Eu vim te ver, ué, sentiu minha falta? – Pendeu a cabeça de lado --

 

 

-- Lucia, abaixe essa arma.

 

 

-- Você sempre trabalha até tarde? – Gesticulava -- Eu estou aqui fora a um tempão te esperando doutora. – Olhou para a construção – Sua clínica é até legal, mas é uma pena que você não vai ver o final dessa obra.

 

 

-- Lucia, você está fora de si, abaixe a arma, vamos conversar. – Ameaçou a andar em sua direção –

 

 

-- Você pode parar aí. Nós vamos conversar sim, mas antes, você vai me mostrar seu estabelecimento. – Ria alto –

 

 

-- Vai pra casa, você está drogada. Liga pra Samantha, pede a ela pra vir te buscar.

 

 

-- Samantha, aquela traidora. – Sacudia a arma -- Ela me traiu, ela entrou com o divórcio, fez tudo nas minhas costas. Abre a porta.

 

 

            Carolina entendeu o descontrole emocional de Lucia, Samantha tinha deixado a mansão, e pelo visto Carolina que iria pagar o pato como sempre, abriu a porta da clínica novamente, e Lucia a fez entrar, sempre sob a mira da pistola cromada que ela carregava. A cardiologista deixou a porta aberta de propósito para chamar a atenção de alguém que pudesse achar estranho e chamar a polícia.

            Lucia ia conduzindo a cardiologista pelos corredores, falando bobagens, comentando sobre a decoração, até chegar à ala onde estava em obras, fez Carolina subir uma escada que dava para a laje do segundo pavimento que estava sendo construído e lá continuava seu devaneio.

 

 

-- Sabe doutora, parece que sua previsão está se concretizando, tudo parece estar voltando contra mim. – Ria – Eu estou sendo procurada, sabia? – Disse baixinho -- A polícia federal bloqueou meus bens, Samantha me deixou. Nem se deu ao trabalho de falar comigo, saiu de casa escondida, como um verme que ela é. – Cuspia as palavras com raiva --

 

 

-- Lucia, Samantha vai voltar, ela sempre volta.

 

 

-- Cala a boca! Ela me traiu! – Atirou no chão – E sabe o que é pior? Ela fez tudo isso por sua causa.

 

 

            Carolina quase teve um infarto, a bala ricocheteou no concreto e passou perto de sua perna, percebeu o quanto Lucia estava perturbada, e começou a temer por sua vida, sobreviveu ao acidente para morrer pelas mãos da antiga colega de escola? Isso era muito cruel.

 

 

-- Eu nunca mais falei com Samantha, o que eu tenho com isso? – Dizia desesperada – Já tem mais de dois anos!

 

 

-- Ela te ama, Carolina! Ela nunca vai me amar como ela ama você. – Gesticulava – Ela te deu tudo! – Bebeu mais uma vez no gargalo – E eu não tenho nada!

 

 

            Carolina não entendia o que Lucia queria dizer, na verdade ela sentia que nunca teve nada de Samantha, com certeza isso era mais um delírio da mente perturbada da antiga colega. Cada momento que passava, Carolina sentia que sua vida estava nas mãos de Lucia, ela bebia mais whisky no gargalo, a bebida escorria pelos cantos de sua boca, a mulher estava cambaleante, arrastando a voz, tudo poderia acontecer com aquele estado tão deprimente em que ela se encontrava.

 

 

-- Lucia, isso não é verdade, você sempre teve tudo o que você quis, dinheiro, poder, você sempre infernizou minha vida, não foi suficiente?

 

 

-- Não doutora, eu queria mais, eu queria Samantha só pra mim. – Bateu no peito com a garrafa – Mas sempre tinha você pra estragar tudo. Eu tentei namorar com Samantha depois que saímos do colégio, mas ela nunca quis, ela só me usava quando queria trans*r comigo.

 

 

            Carolina ouvia Lucia falando, percebia como ela viveu a vida em função de conquistar Samantha, era quase uma devoção, mas ao mesmo tempo sabia que Samantha nunca gostou de Lucia do jeito que ela esperava, e isso com o passar do tempo, foi causando um ódio irreparável contra Carolina, pois ela teve de Samantha tudo o que Lucia queria.

 

 

-- Ela me humilhava, só me ligava quando estava sem nada pra fazer, mas eu ia, até que eu fui morar na Flórida e fiquei um tempo sem ver minha mulher, Samantha é minha, entendeu? – Apontou para Carolina – Só minha.  – Uma pausa – Eu fiz minha faculdade lá fora e comecei a trabalhar com meu pai, até que ele morreu e eu tive que voltar para tratar dos negócios aqui no Brasil. E encontrei Samantha no livro de Estela.

 

 

-- Lucia, eu não tenho nada com isso. Vai pra casa.

 

 

 

-- Cala a boca, você tem que saber.

 

 

            Lucia começou a andar em volta de Carolina, que ia acompanhando à distância a movimentação da antiga colega que parecia avaliar a cardiologista.

 

 

-- Eu contratei os serviços dela, e quando ela chegou no meu quarto do hotel ela se surpreendeu, eu estava lá, mais linda do que nunca, pronta pra conquistar minha mulher e levar Samantha pra ir morar comigo nos Estados Unidos. Mas ela disse que não podia, porque estava apaixonada. – Gargalhou –

 

 

            Lucia parou perto de alguns sacos de cimento, que estavam empilhados em um canto da laje e se sentou, sempre apontando a arma na direção de Carolina. Bebeu mais um pouco do whisky.

 

 

 

-- Eu ri na cara dela, mas ela me rejeitou, transou comigo, pegou meu dinheiro e foi embora, como se eu fosse um lixo. Eu continuei me sujeitando a ela, até eu descobrir naquele dia que era você, de novo! Sempre foi você! Ela nunca amou ninguém, só você!

 

 

-- Samantha teve outras mulheres, Lucia, ela nunca foi exclusiva de ninguém, nem comigo ela conseguiu ter um relacionamento sem traições.

 

 

-- Você é diferente! O que você tem que todo mundo te ama? O que você faz com as pessoas que todo mundo te idolatra?  -- Riu – Mas agora somos só eu e você. E eu te odeio!

 

 

-- Lucia, pensa um pouco, se atirar em mim, você vai ser presa, e vai piorar as coisas pra você.

 

 

-- Não tem como piorar. – Começou a chorar – Eu estou perdendo tudo! Eu vou ser presa de qualquer jeito. – Levantou a garrafa e encostou na lateral da cabeça -- Mas eu vou me livrar de você antes de tudo desmoronar. Eu caio, mas você cai primeiro. -- Apontou a arma para Carolina --

 

 

-- Lucia, não!

 

 

            As duas olharam para o lado, Samantha chegava ao local e viu a cena que fez seu estômago revirar. O medo de acontecer alguma coisa com Carolina a fez tremer por inteiro. Lucia ligou para a ex-mulher enquanto ia para a clínica e disse que iria encontrar com Carolina e se ela quisesse salvar a vida da médica era para ela ir para a clínica encontrá-las, Samantha não pensou duas vezes e foi ao endereço que Lucia passou. Lucia se levantou e virou na direção de Samantha.

 

 

-- Você veio. – Sorriu descompensada –

 

 

-- Eu vim, você pediu e eu vim, eu estou aqui. – Levantou as mãos – Agora abaixe essa arma.

 

 

-- Você não entende. Ela é o motivo de todos os nossos problemas, ela tem que morrer pra você voltar pra mim. – Apontou para Carolina novamente --

 

 

            Carolina a essa altura já estava rezando para que Samantha conseguisse convencer Lucia a largar a arma evitando que uma tragédia acontecesse. Samantha olhava firmemente para Lucia que divagava nos seus delírios enquanto alternava a direção da arma entre Carolina e Samantha.

 

 

 

-- Lucia, olha pra mim, eu estou aqui, eu voltei. – Espalmou a mão contra seu próprio peito -- Eu só amo você, deixa Carol ir embora, sou eu quem você quer. – Caminhava ao encontro das duas – Ela não é ninguém. Eu voltei porque você me chamou. Ela é a ralé, lembra?

 

 

            Samantha tentava desesperadamente chamar a atenção de Lucia, tentava convencê-la que Carolina não era um problema, tentava livrar a cardiologista da mira daquela arma. Caminhava lentamente de encontro às duas. Tentava ficar na frente da cardiologista na intenção de evitar que Lucia atirasse. Queria ganhar tempo.

 

 

-- Você se apaixonou pela ralé, Samantha! – Levantou a garrafa de bebida – Eu comprei o seu whisky preferido, olha. – Sorriu debilmente – Eu trouxe pra comemorar com você, mas demorou tanto pra ela abrir a porta que eu bebi. – Deu de ombros –

 

 

            A conversa era sem sentido nenhum, Samantha caminhava lentamente de encontro a Carolina, pensou que se colocando na frente da médica, Lucia não iria atirar.

 

 

-- Lucia, tudo aquilo foi só pra humilhar a filha da merendeira, você sabe como eu sou, eu conquistei e depois joguei fora, vamos embora, ela não vale nada. – Samantha olhava amedrontada para Carolina –

 

 

-- Não, você me deixou por causa dela. Sempre foi ela, desde o tempo da escola, você me ignorou e se apaixonou por ela! – Alternava a arma entre as duas -- Ela vai morrer. – Apontou para Carolina e apertou o gatilho --

 

 

-- Lucia não! – Carolina gritou –

 

 

            Samantha saiu correndo e o estampido seco da arma disparando quatro vezes ecoou pela construção vazia. Lucia gargalhava em um surto que ela não conseguia distinguir o que era alucinação e o que era realidade. Quando parou de rir, bebeu mais um longo gole da garrafa e olhou novamente para onde Carolina estava para ver a médica caída no chão, mas sentiu o sangue sumir de seu corpo quando viu Samantha caída sobre Carolina com sangue escorrendo debaixo de seu corpo, se deu conta que a ex-modelo correu para proteger a médica e percebeu que tinha acertado a mulher que ela amava.

            Lucia levou as mãos na cabeça e se desesperou, a garrafa com o resto da bebida quente caiu no chão quebrando em inúmeros pedaços, caminhou cambaleando até Samantha ignorando os pés sangrando pelos cacos de vidro que ela pisou, e a puxou, viu que tinha acertado Carolina, mas também acertou Samantha que se jogou sobre a médica para protege-la. E os tiros a pegaram em cheio.

            Carolina levou um tiro no ombro e estava caída no chão desacordada, Lucia não sabia o que fazer, Samantha tossia sangue, estava perdendo a vida em seus braços.

 

 

-- Samantha, por que você fez isso? Era pra você ficar parada. – Acariciava os cabelos da ex-modelo – Porr*, ela é culpada. Você não, volta pra mim. – Chorava – Burra! Burra! – Gritava --

 

 

 

 A polícia chegou nesse momento, Samantha tinha ligado para a polícia e avisou sobre o sequestro antes de ir ao encontro das duas, mas quando chegou, viu que a clínica estava aberta, percebeu que Lucia já estava com Carolina e não tinha como esperar os policiais, procurou pelas duas na intenção de evitar uma tragédia, mas não conseguiu.

Lucia ouviu as sirenes e em um último ato de loucura soltou Samantha e caminhou até a beira da laje. Carolina foi acordando do desmaio e sentiu o ombro doer, colocou a mão e sentiu o sangue que saía do buraco da bala, levantou meio tonta e viu Samantha caída ao seu lado agonizando, engatinhou até a ex-modelo e a segurou em seus braços.

 

 

-- Sam, olha pra mim. Sou eu, Carol. – Pressionou um dos ferimentos – Sam, não desiste. Fica comigo. – Alternava entre os ferimentos --

 

 

-- Carol. – Tinha dificuldades para falar – Perdoa. – Levantou a mão suja de sangue para acariciar o rosto da médica –

 

 

-- Claro, eu já te perdoei há muito tempo. Resiste, Sam. Fica comigo!

 

 

 

            Lucia assistiu as viaturas cercando o lugar e virou olhando para Carolina que tentava manter Samantha acordada, apontou a arma para a cardiologista novamente, mas a visão desfocada pelo álcool e pelas drogas a fizeram desistir de atirar de tão longe, pensou em como sua vida chegou até aquele ponto, ela havia atirado na mulher que sempre amou e em Carolina, iria para a prisão de qualquer maneira, e com todos os bens bloqueados, não sairia de lá tão cedo, decidiu que era hora de dar um fim a tudo e colocou o cano da arma na própria cabeça e silenciosamente sorriu. Policiais chegavam à laje em construção e assistiram Lucia atirar contra a própria cabeça caindo sobre uma viatura que estava parada embaixo do prédio.

            Carolina pensou que ela atiraria novamente em sua direção e se assustou ao ver Lucia cometendo suicídio, fechou os olhos na hora que ouviu o tiro e depois disso voltou seu olhar para a mulher que fez parte de sua vida como ninguém fez, chorava, via a vida de Samantha se esvaindo em seus braços e não podia fazer nada. Samantha deu sua vida para lhe proteger. Queria salvar a ex-namorada, mas não tinha nenhum recurso para isso ali.

 

 

-- Sam, fica acordada. Olha pra mim.

 

 

-- Eu sempre vou te amar, Carol. – Tossiu sangue -- Aprende a ser feliz.

 

 

-- Samantha. – Lágrimas caíam sobre o rosto da modelo -- Chamem uma ambulância! – Gritou para os policiais – Você vai ficar bem.

 

 

            Samantha suspirou com dificuldades e perdeu a consciência, Carolina tentou ressuscitar a ex-modelo, mas já era tarde demais, Samantha morreu em seus braços.

 

 

-- Samantha! – Sacudiu a modelo – NÃAAAAAO!!! – Gritou desesperada –

 

 

Uma vida inteira para se redimir em apenas um ato de coragem e amor extremos. Samantha viveu do jeito que quis, do seu jeito torto e inconsequente, em algum momento será que ela foi realmente feliz? Seu único arrependimento era ter magoado Carolina e seu pensamento enquanto sentia a vida se esvaindo de seu corpo, foi que se redimiu com a cardiologista, conseguiu salvar Carolina da loucura de Lucia. E finalmente descansaria em paz.

 

            A ambulância chegou e constatou que Samantha já estava morta, os paramédicos se concentraram em Carolina, que sangrava muito ainda, e estava inconsolável segurando Samantha em seus braços, não queria soltar a ex-namorada.

            Carolina estava em choque, chorando muito, um dos médicos aplicou um sedativo para que ela adormecesse e fosse levada ao hospital.

Samantha e Lucia, duas mulheres com altos e baixos, vícios e caprichos de uma vida fútil e solitária, nunca foram completamente felizes, e a loucura de uma as levou ao extremo. Depois de querer ter tudo, não restou nada, nem um sopro de vida. Agora, Samantha era apenas uma lembrança no coração de Carolina.

O fim chegou tão intenso quanto a vida que viveram.

Fim do capítulo