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Sobre um (Re)nascimento por Lucia M

Ver comentários: 3

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Palavras: 4000
Acessos: 743   |  Postado em: 26/12/2018

Sobre um (Re)nascimento

Ouço uma leve batida na porta. 

– Pode entrar. 

É a minha mãe. 

Ela não entra muito, só o suficiente para que eu a veja. Seus olhos preocupados me fazem sentir culpada. 

– Olá, querida. Está na hora. 

Desvio o olhar para a janela, para as casas enfeitadas com pisca-piscas coloridos, guirlandas e estrelas brilhantes. 

– A casa da Dona Emília está muito bonita esse ano – mamãe diz. – Ela me disse que comprou uma árvore nova, já que todos os filhos vêm esse ano. Imagine só, já é bisavó! Não sei como vai conseguir colocar toda essa gente junta ao redor da mesa. 

Não respondo. 

– Podíamos ter uma árvore nova também – ela diz, parecendo uma súplica. 

Não temos muitas tradições natalinas em casa, seja por falta de tempo ou vontade. Apenas uma se repetia: precisávamos montar a árvore de natal juntos, ano após ano. Íamos nas lojinhas do centro da cidade e comprávamos enfeites novos pra Jesus saber que nos importamos, mamãe brincava. 

Mas o último natal em que cumprimos a nossa tradição parece ter sido a um milênio, e isso é culpa minha. Quando tinha quinze anos, me recusei a montar a árvore com meus pais, e eles nunca a montariam sem mim. Assim, estamos há três anos sem natal. 

Eu não posso, quero dizer. Mas aí ela me perguntaria o porquê. 

– Vou ficar pronta em dez minutos – digo e corro para o banheiro. Não quero ver a decepção em seus olhos. 


  • *** 


Antes de descer do carro, já consegui ver que todos já começaram. A banda está tocando uma música de natal e os atores entram em cena. Meu estômago se embrulha.

– Divirta-se – mamãe sorri como se eu estivesse indo ao meu primeiro dia de aula. 

Dou um beijo nela e salto do carro, observando até o carro sumir de vista. 

Respiro bem antes de entrar. 

– No sexto mês, o anjo Gabriel foi enviado por Deus a uma cidade da Galileia, chamada Nazaré – disse uma voz familiar ao microfone. 

Uma garota que eu presumo ser Maria se posiciona no palco, sentada sobre suas pernas, enquanto o Anjo se aproxima por trás dela, estendendo a mão. 

– Não temas, Maria, pois encontraste graça diante de Deus. Eis que conceberás e darás a luz a um filho, e lhe porás o nome de Jesus. 

Eu sabia que devia falar que tinha chegado, mas não sabia como interromper sem parecer rude. Então resolvo ficar quieta. 

Maria se levanta com um olhar assustado. 

– Como se fará isso? Nunca estive com homem algum. 

– Não tenhas medo, pois ficarás grávida pela força do espírito do senhor. Por isso, o ente santo que nascer dentro de ti se chamará filho de deus. Também Isabel, tua parenta, conceberá um filho... estando ela... hum... 

Todos esperam, até que ele dá de ombros e desiste. 

– Tudo bem. Vamos de novo – diz a voz que narrava, entrando no palco. Meus olhos brilham ao ver uma figura conhecida. 

– Porr*, foi mal – resmunga o Anjo. 

– Cuidado pra Jesus não te ouvir. 

– É aniversário dele. Não se pode ficar chateado no próprio aniversário – diz Maria. 

– Por quê? 

– Minha avó sempre disse isso. 

– Não tenho certeza a regra da sua avó se aplica a Jesus – retruca o Anjo. 

– Estou te defendendo, seu ingrato. 

– Hum... licença – eu digo baixo, mas eles me ouvem. 

O narrador se levanta ao me ver. 

– Ei! Você nos abandonou há tanto tempo que quando seu pai disse que você vinha eu nem consegui acreditar – ele diz. 

Seu nome é Lorenzo. Ele é italiano, ator e meu professor de teatro antes que eu iniciasse o ensino médio. Eu adorava suas aulas. Foi muito difícil abandonar tudo. 

– Senti falta de tudo isso – admito. 

– Você pode voltar quando quiser – Lorenzo toca meu ombro de forma fraterna, e sei que meus pais falaram com ele.  

– Ei, vai participar da peça? - Pergunta o Anjo para mim. 

– Sim – eu digo. 

– Qual o seu papel? – Pergunta Maria. 

– Eu... não sei. 

Todos me olham meio confusos, e sinto minhas bochechas queimarem. Sei o que estão pensando. Lorenzo sempre foi rígido demais para contratar tão rápido alguém assim, sem mais nem menos.

Mas eles não sabem que estou aqui por caridade. 

– Ela vai substituir a Amanda no papel da Isabel – diz Lorenzo, querendo parecer despreocupado. 

– Não tem teste pra esse tipo de coisa? – Pergunta o Anjo, não com maldade, só confuso. 

– Helena conhece o roteiro mais que você – diz Raissa, olhando para mim. – Ela já fez a Maria.

Minhas bochechas ruborizam mais ainda. Com alguma dificuldade, consigo lembrar de um palco improvisado na escola, quando eu tinha quatorze anos, e Lorenzo nos ensaiou para apresentar uma peça de natal aos nossos pais, antes de tudo mudar. Mas como ela poderia saber disso? 

– Ela fez, sim – Lorenzo disse, também um pouco surpreso. – Além disso, Helena foi minha aluna, o que a torna automaticamente mais competente que vocês, novatos.

O Anjo levanta as mãos, se rendendo.

– Tenho certeza de que você será ótima, minha cara Helena. A propósito, eu sou Gabriel. 

– Gabriel? Como o anjo Gabriel? 

– Algumas pessoas já nascem destinadas a seus papéis – diz a garota. 

– Não podemos dizer o mesmo de você, virgem Maria. 

Todos, inclusive as pessoas que estão montando o cenário no fundo, riem. 

– Calem a boca. Sou Raissa – ela estende a mão pra mim. Eu a aperto e sorrio. 

– Ok, apresentações feitas – Lorenzo faz um gesto com a mão sinalizando de que todos deviam voltar aos seus postos. – Ao trabalho. 


  • *** 

 

– Bravo! – Diz Lorenzo, quando terminamos nossa cena. 

Quando Lorenzo disse que queria fazer um improviso para ver do que eu lembrava sobre o papel, minhas mãos suaram de medo. E, no entanto, eu não gaguejei uma vez sequer. Como é que poderia esquecer? Os momentos que passei no teatro são os melhores que já vivi. 

As pessoas parecem aliviadas depois de ter me visto atuando. Talvez pensassem que eu pudesse estragar a peça, o que eu entendo. A companhia de Lorenzo cresce cada vez mais, e alguns dos alunos já começam a pensar em carreiras no ramo. Raissa conseguiria se quisesse. Ela é incrível. 

– Vocês estão ótimas. Podem ir ajustar os figurinos. O próximo ensaio é em vinte minutos. 

No camarim, encontro uma arquitetura de continuidade com o resto do teatro. Só que com um toque agressivo de tons mais avermelhados, que me agradavam.

– O que acha do encaixe do véu? – Pergunta a figurinista. 

Grande demais, eu penso. Mas sou uma intrusa aqui, não ousaria dar mais trabalho a eles. 

– Grande demais – diz Raissa no meu lugar. – Não é culpa sua, Amanda tem uma cabeça e tanto. 

A figurinista ri, concordando. 

– Vou trazer a linha. 

– Eu sabia que você seria ótima – diz Raissa, assim que a porta se fecha atrás de nós. 

– Eu não fui. 

– Você foi. 

Arqueio as sobrancelhas. 

– Mesmo se eu tiver ido, como você podia ter certeza de que eu não era péssima? 

– Eu te vi fazendo a Maria na oitava série. 

– O quê? 

– Eu tinha acabado de me mudar pra cá e meu primo estudava na sua escola. Sempre fui apaixonada por teatro, então vim com ele. Você foi uma Maria ótima. 

Continuo surpresa com tudo isso. Enquanto ela fala dessa apresentação como se tivesse acontecido ontem, eu sinto que foi há uma vida. Eu ainda era... eu. 

– Ah, qual é. É só uma apresentação boba de criança. 

– Não vem com essa pra cima de mim. Um artista reconhece o amor em outro. Você amava atuar. Por que parou? 

Todas as respostas passam pela minha cabeça. A mentira, a omissão e a verdade crua. Mas só a última tem a capacidade de rodar um filme dentro de mim; num instante, lembro do início do ensino médio, da nova escola, das pessoas, daquilo que parecia me consumir... 

Sinto o ar faltar em meus pulmões. 

Não. Consigo. Respirar.

– Merda, você tá bem? – Ela pergunta, mas não consigo responder. 

Agora não, penso. Pelo menos dessa vez, não estrague tudo. 

Mas seja lá qual seja o monstro que vive dentro de mim, ele nunca me ouviu. 

– Helena, preciso que você olhe pra mim – diz Raissa, segurando meus pulsos. – Helena. 

Eu olho pra ela. Raissa tem a pele morena, cabelos negros ondulados e olhos castanhos. Ela cheira a café e roupa recém-lavada. 

– Quero que você coloque a cabeça entre as pernas, sempre respirando bem fundo. Pode fazer isso?

Faço que sim com a cabeça. 

Ela faz sinal para que eu comece. 

Abaixo a cabeça, quase caindo, mas Raissa me segura, acariciando minhas costas tão levemente que quase me passa despercebido. Lentamente, sinto o ar voltando para meus pulmões. 

– Está melhor? 

Levanto a cabeça devagar, fazendo que sim com a cabeça. 

– O-obrigada – consigo dizer. 

– Cinco minutos para recomeçarmos! – Grita Lorenzo. 

Eu não quero. 

– E nem precisa ir – ela responde. 

Eu disse isso em voz alta? 

Raissa pega minha mão e me leva para fora do camarim, olhando para os lados como se estivéssemos fugindo de um presídio. 

– Vem. Vamos embora daqui. 


  •  ***

 

Não perguntei a Raissa para onde íamos. Deixei que ela me colocasse atrás de sua moto, fechei os olhos e aproveitei a sensação do vento deslizando sobre meu corpo até pararmos. 

Acabamos em um lugar que fora um parquinho um dia, mas agora era constituído basicamente de ferrugem e pedaços de brinquedos quebrados.  

– Não conheço nenhum lugar melhor para ver o pôr do sol – ela diz, descendo da moto. 

– Tem certeza de que Lorenzo não vai nos matar? 

– Eu mandei uma mensagem pra ele, não vai ficar preocupado. Já quanto à parte de nos matar eu não teria tanta certeza. 

Raissa caminha entre os destroços, parecendo estranhamente familiarizada com o lugar. Ela senta num balanço que por algum milagre está intacto e faz sinal para que a acompanhe. 

– Eu morava na capital quando era criança, mas sempre passava minhas férias aqui – ela conta. – Era nesse parquinho que meus pais me traziam pra brincar. Assim que eu me mudei, foi o primeiro lugar que quis visitar. Ver que ele estava assim me deixou arrasada. 

Eu vivia ali desde sempre, mas nunca tinha brincado naquele parquinho. Minhas únicas lembranças dele são de quando passávamos de carro por esses lados da cidade e no dia em que saiu uma nota no jornal local alertando que ele tinha sofrido atos de vandalismo e não era mais seguro para os pais levarem seus filhos. 

– E por que você ainda vem até aqui? 

– É um ótimo lugar pra ficar sozinha. Em todos os outros, todo mundo sempre parece estar gritando alguma coisa, você não acha? 

– Acho que prefiro ouvir os outros gritarem. 

– Por quê? 

– Quando eu grito muito alto, não é nada legal de ouvir. 

– Touché. 

Nós brincamos no balanço enferrujado, apesar dele parecer que iria quebrar a qualquer minuto. 

– Isso é esquisito – eu digo, após algum tempo. 

– Eu sou esquisita? 

– Não, não é isso. Eu quis... 

– Ah, qual é, é tãaao legal ser esquisita. 

Eu sorrio. 

– Ok, então você é esquisita – eu desvio seus olhos. – Estou dizendo que a situação é esquisita. Eu não sou exatamente a miss popularidade. E agora estou nas ruínas de um finado parquinho com uma garota legal. 

– Já me chamaram de coisa pior. 

Nós rimos. 

Viro meu rosto para que ela não veja minhas bochechas vermelhas. Não entendo porque disse isso, mas sinto como se precisasse dizer. 

– Como você sabia daquilo? 

– Daquilo o quê? 

– Colocar a cabeça entre as pernas. 

Nossos olhares se encontram por um instante. Raissa está séria, hesitante. Como se estivesse num conflito interno. 

Então seu olhar se suaviza e ela se inclina para mim. 

– Está vendo essa marca aqui? – Raissa apontou para uma longa mancha escura em sua perna que ia do joelho ao calcanhar, logo abaixo dos shorts que usava. – Ganhei uma semana antes de vir pra cá. Nós morávamos em uma casa linda que meu pai levou a vida inteira pra pagar. Todos tínhamos orgulho dela. Então, uma noite, ela incendiou. Inteirinha, enquanto nós dormíamos. Meus pais sequer conseguiram sair do quarto deles. O fogo queimou tudo... exceto eu. 

– Raissa, eu sinto muito. 

– Logo quando aconteceu, eu não acreditei. Fui tirada pela janela, levada para a delegacia e avisada de que meus tios viriam me buscar pela manhã, mas disse que não. Eu queria meus pais. Eles estavam lá a minha vida inteira e na minha cabeça não fazia sentido terem simplesmente sumido – a força com que ela segurava a corrente enferrujada parecia dolorosa. – Chamei por eles, mas é claro que nunca vieram. No lugar, uma policial me viu tendo um ataque de pânico e foi me ajudar. Ela disse que, sempre que o ar faltasse e eu sentisse vontade de vomitar, devia colocar a cabeça entre as pernas e respirar bem fundo. No fim das contas, foi bem útil. 

A única coisa que me ocorreu fazer foi afastar a mão dela da corrente enferrujada do balanço e segurá-la. Sinto sangue tocar minha palma. 

Em algum momento depois disso, ela diz: 

– É a primeira vez que eu falo pra alguém o que aconteceu. 

Eu viro para olhá-la. 

– Por que eu? 

– Porque, de alguma forma, eu sabia que você ia entender. 

Em algum momento muito depois disso, eu consigo dizer: 

– Também tenho um segredo. 

Raissa sorri pra mim de maneira estranha, quase como se soubesse que eu diria isso, mas também fazendo sinal para que eu continue. 

– Acho que Deus me odeia – digo, sabendo que, de todas as coisas que eu pensei em falar, essa provavelmente foi a pior. 

– Por que Deus te odiaria? – Ela soa como se o que eu disse fosse a coisa mais absurda que ela já ouviu. 

Tento recomeçar. 

– Quando entrei no ensino médio conheci... pessoas novas. Foi quando percebi que algo em mim mudou. Eu pensei que iria passar depois de um tempo, se eu deixasse de lado. Mas isso... continuou lá, e não sabia o que fazer. Sentia como se estivesse traindo tudo o que eu sempre amei. Meus pais, meus amigos, Deus. Eu não conseguia sair de casa ou me olhar no espelho sem sentir vergonha. Me afastei dos meus amigos. Saí do teatro. Não montei a árvore de natal aquele ano. Eu não podia estar sendo quem estava sendo e me importar com Ele ao mesmo tempo. Meus pais ficaram devastados. Eu comecei a... Ah, droga, estou falando um monte de baboseira, né? 

Raissa apertou minha mão. Não lembrava que ainda estávamos de mãos dadas. 

– Não, continue. Eu quero ouvir. 

Eu não tinha certeza se ela estava sendo sincera, mas prossegui mesmo assim. 

– Bom, ahn, eu comecei a frequentar um psicólogo, mas ele também é da igreja, então é claro que eu não podia conversar com ele, embora fosse óbvio que eu estava piorando. Ano passado, sem saber o que fazer comigo, ele me diagnosticou com depressão e indicou um psiquiatra. Se antes a vergonha me impedia de sair de casa, agora tudo me impelia a não me mover da cama. Tive aulas em casa durante o ano inteiro. Depois de um tempo, as pessoas pararam de me visitar. Ainda tomo remédios fortes que me deixam apagada por horas, senão não consigo dormir. É uma bola de neve. Me sinto culpada por ser como sou, então me sinto culpada por me sentir culpada, e mais culpada por fazer minha mãe sentir culpa por ter algo de errado comigo. Agora, meu psiquiatra disse achar que eu estou pronta para encarar novos desafios, então vou ser a Isabel na peça de natal da cidade, como se isso fosse capaz de sumir com os meus problemas. Como Deus poderia não me odiar? Eu faço tudo errado. 

Só quando termino de falar é que percebo que estou gritando. Penso em pedir desculpas, mas já está ficando tão escuro que mal consigo distinguir o rosto de Raissa do resto das sombras. 

– Você já leu A Cor Púrpura? – Ela pergunta. 

– O quê? – Eu ouvi, só estava surpresa. 

– A Cor Púrpura. Da Alice Walker. Ganhou o prêmio Pulitzer na década de oitenta. 

A única coisa que eu sabia sobre esse livro é que a protagonista era lésbica, mas achei melhor não comentar isso. 

– Hum... acho que não. 

Ela se aproxima mais de mim, um pouco empolgada. Posso sentir seu hálito tocar meu rosto. 

– Certo. Bem, temos duas personagens: Celie e Shug. Um dia, elas estavam conversando sobre a natureza de Deus. Celie achava que Deus era homem, branco e que punia as pessoas quando faziam coisas erradas. Então Shug disse a ela deus não é nada disso; nem homem, nem branco, nem algo vingativo. Ele era tudo – mesmo no escuro, eu sabia que Raissa estava sorrindo. – O mundo inteiro, Helena. Ele fez cada pedacinho de matéria que existe e deu a nós de presente. Então, como Deus poderia odiar você, que é parte dele, por algo que você é, quando ele também foi ele que deu esse algo a você? 

Seus olhos brilham na noite. Eu posso sentir a verdade que há em cada palavra que ela fala, tão forte que sinto meu peito palpitar. Elas tocam cada centímetro meu. 

Observo enquanto sua silhueta chega perto de mim. Não, quero dizer, e prendo a respiração, mas palavra alguma sai da minha boca. Raissa chega perto o suficiente para que seu rosto seja tudo o que meu campo de visão alcança. 

Então o celular dela toca. 

A cadeirinha do balanço vacila, e eu caio para trás na grama alta. 

Raissa vem correndo para me ajudar, mas, assim como eu, ela não consegue parar de rir. 

– Caramba, você está bem? – Ela me estende a mão. 

– A-acho que sim. 

E caímos na risada de novo. 

O celular continua tocando, então ela atende. 

– Alô? Lorenzo? – Posso ouvir um sotaque italiano exaltado do outro lado da linha. Raissa põe a mão na testa. – Tudo bem... Ok, ok, já entendi, foi mal. Chegamos aí em um segundo – ele parece continuar falando, mas ela desliga mesmo assim.  

– O que foi? 

Ela olha para mim com um misto de diversão e desespero. 

– Garota, a peça é em quinze minutos. 


  •  ***

 

Raissa atingiu velocidades que eu nem sabia que motos eram capazes, minhas pernas estavam bambas quando estacionamos atrás do teatro e ouvimos sermões de Lorenzo, figurinistas magoadas e atores abismados com nossa falta de compromisso. 

Mas, pela primeira vez em muito tempo, eu não conseguia me sentir culpada. 

– Meu Deus, está lotado – eu murmuro, olhando pelas cortinas vermelhas. Consigo ver meus pais na primeira fila. 

– Eles chegaram aqui desde cedo – Lorenzo se junta a mim. – Queriam ver como você estava, pensaram que podia estar nervosa. Mas imagine só, nunca pensei que veria pais tão felizes por saberem que a filha deles fugiu de moto com uma das atrizes. 

Olhei para meus pais. Eles pareciam tão alegres e ansiosos. 

– Eles te amam muito. 

– Eu sei. Tenho muita sorte – digo, pensando assim pela primeira vez. 

Fiquei surpresa quando virei para olhá-lo. Ainda não tinha notado a roupa dele. Usava uma barba falsa, uma túnica e os pés descalços. 

– Uau – digo, sorrindo. 

– É um dos melhores sons pra se tirar de alguém – ele coloca a mão no meu ombro. – Agora eu preciso começar a peça. 

Ele está quase no palco quando vira e diz: 

– Helena? Não perca a vida pro medo, ok? 

Penso em dizer que não sei do que ele está falando, mas estou farta de me esconder. Faço que sim com a cabeça. Ele sorri, satisfeito, e as cortinas se abrem. 

Ouço Lorenzo começar sua narração, então Raissa para ao meu lado. Noto sua respiração irregular. 

– Não importa quantas vezes eu me apresente, sempre fico nervosa antes de entrar no palco. 

– E depois de entrar? 

– Tudo desaparece. É por isso que eu sei que nossa cabeça é tão cheia de coisas quanto o mundo, e algumas ruins sempre se infiltram. 

Olho para ela. 

– E se tudo for ruim? 

– Impossível. Sempre tem algo bom dentro de você, mas esse algo pode ser preguiçoso e dormir por muito tempo. 

– Quanto tempo? 

– Depende. Às vezes, só precisamos de alguém pra despertá-lo. 

Nessa hora, Gabriel chega. 

– E aí, meninas. Onde vocês estavam? 

– Eu teria que te matar se contasse – diz Raissa. 

– Esqueceu que os gatos têm sete vidas? 

– Esqueceu que a curiosidade matou o gato? 

– Odeio discutir com essa garota – ele diz pra mim. – É impossível, ela sempre ganha. 

– Consigo imaginar isso. 

– Ei, por que não convida a Helena? – Ele pergunta para Raissa. 

– Convidar pra quê? 

– Depois da peça os atores vão fazer uma festa surpresa pro Lorenzo na casa dele, antes de todos cearem com a família – ela olha para mim com esperança. – Você vem? 

Não consigo dizer nada, mas sorrio. 

Nesse instante, uma assistente aparece para nos dizer que é hora de entrar no palco. 

Gabriel entra primeiro. Ele parece bastante confortável em seu papel. 

– Acha que isso pode, pelo menos parcialmente, ser real? – Pergunto, enquanto o Anjo entra nos sonhos de José. 

– Todas as histórias são reais, mesmo as que acontecem apenas na nossa cabeça – ela responde, muito séria. 

– De onde você tira essas filosofias baratas? 

– Ah, é que tem uns velhos bêbados de bar que moram na minha cabeça também. 

– Eu diria que você está bem acompanhada. 

– A escolha é um dos meus dons. 

– Me avise quando for jogar na Mega-Sena. 

– E você ter a chance de roubar meus números? Sem chance. 

Segundos depois, está na hora.  

Raissa entra, faz sua cena, e eu não consigo parar de pensar no quanto ela é perfeita fazendo o que faz, sendo o que é.  

Não sei se sou uma artista, mas sei que Raissa transborda amor. 

Então chega a minha vez. Eu não tinha pensado em como seria até aquele momento, ali, com a assistente me dizendo para entrar. Sinto milhares de coisas passando por mim, mas o medo não é uma delas.

Como não era há muito tempo, eu sentia como se tivesse um lugar. 

– Naqueles dias, Maria se levantou e foi às pressas às montanhas, a uma cidade de Judá... – Lorenzo narrou. 

– Isabel! – diz Raissa, vindo ao meu encontro. 


  •  ***

As cortinas se fecham, então saímos do palco, acompanhadas de aplausos. Raissa e eu estamos tão eufóricas que mal conseguimos falar. 

– Isso foi incrível – ela diz. 

– Eu sei! Queria que durasse pra sempre. 

– E pode – ela segura minhas mãos, olhando no fundo dos meus olhos – Faz teatro com a gente. Comigo – ela corrige. 

Não temos muito tempo. Ela precisa estar de volta ao palco em questão de segundos, de forma que não penso muito no que estou fazendo. 

Aperto nossas mãos, puxo-a para perto de mim e beijo seus lábios apaixonadamente. Porque é assim que eu me sinto: definitiva e completamente apaixonada. 

Só paramos quando ouvimos os personagens no palco dizerem suas últimas falas. 

– Vou tomar isso como um sim – Raissa sorri, me dando mais um beijo rápido. – Volto já. 

Ela entra no palco, e, mais uma vez, está incrível. Enquanto estou olhando para ela, esqueço da culpa, da dor, da garota que eu amei durante o ensino médio inteiro calada até que esse sentimento quase me matasse. 

É como se eu estivesse dormindo e Raissa me acordasse. 

Meu celular vibra. Tem uma mensagem da minha mãe. 

Você estava perfeita, eu leio. 

Sorrio para a tela, e as lágrimas saem antes que eu consiga pará-las. Sinto a liberdade, o amor, sinto Deus. Finalmente eu o encontrei. Estava dentro de mim o tempo inteiro, mas eu nunca tinha tido coragem de procurá-lo lá. 

Ainda podemos montar a árvore?, eu escrevo.

Fim do capítulo

Notas finais:

Meu primeiro conto publicado no Lettera, inspirado no desafio de natal. Boas festas! Espero que gostem.


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Comentários para 1 - Sobre um (Re)nascimento:
Donaria
Donaria

Em: 15/01/2019

Autora ...linda historia. Voce começou muito bem, historia perfeita....fiquei pensando em como você conseguiria dar começo meio e fim numa historia como essa, em 4000 mil caracteres...e num é que vocÊ conseguiu!! e ficou otimo. Espero que resolva escrever mais e de preferencia contos mais longos. Beijos e mais uma vez parabéns.

Responder

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MayOlivier
MayOlivier

Em: 27/12/2018

Uau.

Perfeito, é como eu consigo descrever. Que história linda. Queria que todas as pessoas conhecem uma Raissa na vida. Que nos desperte. Você não tem noção do quanto essa história significou pra mim. 

Obrigada.


Resposta do autor:

Saber que minha história de alguma forma te tocou é a melhor coisa que me aconteceu hoje. Obrigada por ler ??

Responder

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Endless
Endless

Em: 27/12/2018

Excepcional! Terno sem ser piegas. Forte sem ser bruto. Parabéns pela estréia fantástica. Até o próximo e boa sorte.


Resposta do autor:

Obrigada! É muito gratificante ouvir isso. Até a próxima história.

Responder

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