Patrícia

“Hoje não é o meu dia” pensei enquanto olhava o meu carro, um Jeep Renegade novinho, que eu tinha o maior cuidado para não estragar, e que agora estava todo imundo de poeira e com o pneu furado. Não tinha uma viva alma por perto e aquilo me fazia querer chorar. “Parabéns, Paty, você teve a brilhante ideia de vir para onde o diabo perdeu as meias, porque as botas foram bem antes, e ainda por cima veio de roupa branca!”. Chutei a roda com força a fim de extravasar toda a raiva que eu estava sentindo, mas ao invés disso apenas consegui quebrar o salto do meu Louboutin branco.

Sentei em uma pedra abaixo de uma árvore frondosa e me recordei de todos os acontecimentos que me levaram até ali. Há poucos meses atrás eu imaginava que minha vida era como um conto de fadas. Era proprietária da Clínica Veterinária mais renomada de São Paulo, casada com Maurício, meu colega de faculdade e sócio. O homem que eu amava e imaginava que ele nutria os mesmos sentimentos por mim... Fazíamos planos para termos filhos.

“Você é uma ridícula mesmo Patrícia, por achar que sua vida era uma capa de revista! Que sua família era igual à um comercial de margarina!”. O sol escaldante, os insetos, o calor infernal piorava ainda mais o meu humor.

Abri o porta-malas procurando o macaco. “Calma, mulher, você consegue... você é capaz... você é empoderada… sinta o cosmo iluminar o seu ser... você é capaz...” Tentei fazer os exercícios que aprendi com meu guru, o mestre Yngalolaia. Com muita dificuldade consegui tirar o estepe e o levei até próximo à roda. Naquele momento eu já estava completamente suada, descabelada, suja de graxa e terra vermelha. Meus sapatos brancos estavam vermelhos de terra e eu mancava de um pé devido à quebra de um dos meus saltos. Tentei em vão retirar a enorme roda e não estava tendo sucesso. Nenhum dos cinco parafusos se mexiam.  “Calma… respira… não pira… você consegue… você é mulher brasileira que pode tudo, consegue tudo… não precisa de ninguém…” quase consegui ouvir a voz do meu mestre falando essas palavras. Coloquei a chave de roda em um novo parafuso e senti que esse estava mais fácil. Forcei mais um pouquinho e o parafuso entortou fazendo que, com o impulso, eu caísse de cara no chão.

Novamente as palavras do mestre Yngalolaia vieram na minha cabeça: “Você pode… você consegue… você pode… você é empoderada…”. Me levantei limpando o meu rosto e tentei novamente retirar o parafuso que havia entortado. Fiz tanta força que eu já estava completamente vermelha. Falava baixinho comigo mesma:

—Você pode… você consegue…. – Em um último resquício de força senti o parafuso ceder…—Você pode… você consegue… – E... quebrar!!

— AHHHHHH, VAI PRA PUTA QUE PARIU, MESTRE FAJUTO DOS INFERNOS!! – Atirei a chave de roda longe e gritei pra extravazar aquele ódio! Lembrei-me dos meses que, por insistência da minha ex-sogra, visitei o templo do mestre cubano. “Também Patrícia! Mestre cubano! Se fosse charuto, pelo menos!”.

— Dona, quer ajuda? – Olhei para onde a voz estava vindo e vi uma mulher de botas e chapéu montada em um lindo cavalo.

— Por que? Acha que eu não tenho capacidade de trocar um pneu? Eu POSSO! Eu CONSIGO! EU SOU EMPODERADA CARALHO! – Eu não sabia de onde estava vindo aquela raiva, mas não consegui controlar a resposta mal-humorada.

— A dona empoderada que sabe. – A mulher preguiçosamente desceu do cavalo e sentou na pedra em baixo da árvore.

— Vai ficar aqui me olhando? – Perguntei irritada.

— Vou – Lentamente a loira pegou um canivete e começou a descascar uma laranja sabe-se lá de onde ela tirou. Olhava para mim e sorria maliciosamente.

— Tá rindo de quê?  Sou o Bozo agora? Sou o Patati Patata? – perguntei cada vez mais brava. Como ela não respondia e ria mais ainda, me aproximei e gritei. - TÔ CAGADA? Era só o que me faltava! Ter que trocar a PORRA de um pneu furado, nesse fim de mundo e ter plateia me olhando e rindo! - A loira só ria enquanto ch*pava a laranja. - Vai continuar quieta? Por que caralh*s você tá rindo?

 —  Dona, o pneu furado é o outro. 

Lorenza

“Mas eu devo ter pregado chiclete na cruz mesmo, só pode...” Depois de passar uma noite incrível na cama de Ângela, tive que sair às pressas após ouvirmos o barulho do avião de Jonas. Acabei de vestir as roupas enquanto descia as escadas e terminei de colocar as botas já dentro da camionete.

                  — Eu não tenho mais idade pra isso não... – Disse a mim mesma em voz alta enquanto dava a partida. — Mas a diaba é gostosa demais! – Dei um sorrisinho ao ver Ângela correndo em minha direção, só de babydoll com meu chapéu na mão.

— Lô, você esqueceu seu chapéu – Disse ela se enfiando pela minha janela me roubando mais um beijo após jogar meu chapéu no banco do carona. — Agora vai, ele chega aqui em uns dez minutos.

— Adorei a noite, coração! – Pisquei para ela, coloquei os óculos escuros e acelerei.

Ela e o marido estavam na cidade há dois anos desde que Jonas comprou um dos frigoríficos da região. Ele também é criador de gado, e é sem dúvida um dos meus melhores clientes. Foi em uma das visitas à fazenda de Jonas que conheci sua esposa, Ângela.  Sempre muito simpática e cheia de perguntas sobre a alimentação e cuidados com sua égua de competição. Sempre a via me olhando disfarçadamente, e quando eu a encarava ela se esquivava. Há cerca de um ano recebi um chamado de Ângela tarde da noite, dizendo que estava suspeitando que sua égua estava com cólica. Como casos de cólica em equinos podem facilmente levar ao óbito do animal, me dirigi rapidamente para a fazenda.

Assim que cheguei, vi que não era nada grave, mas disse que ficaria por ali mais um tempo para observa-la. Sei que não soou nem um pouco convincente, pois em menos de 10 minutos estávamos em um amasso delicioso na selaria. E de lá para cá, ela tem sido uma deliciosa distração.

Cheguei em casa e fui logo para meu quarto descansar da tórrida noite de pura luxúria. Como hoje é domingo, aproveitei para dormir um pouco até a hora do almoço.

— Posso saber o que te deu pra dormir até agora? Já ia lá te cutucar pra saber se você estava viva – Me perguntou dona Bastira enquanto eu a beijava no rosto.

— Digamos que eu tive que ficar de plantão, cuidando de uma certa gatinha a noite toda... – Disse piscando para a velha senhora.

— Sei bem que plantão foi esse, sua descarada! Pelo que vejo a “gatinha” é bem perfumada a contar do cheiro que estava impregnado nas suas roupas que eu peguei no seu banheiro. – Balançou a cabeça negativamente antes de me dar um tapaço na cabeça.

—Ai, Bá... Como a senhora é violenta!  Que culpa eu tenho? Elas que são carentes... – Disse enquanto a abraçava.

—Lorenza... Lorenza, você tome tento! Principalmente com a Ângela. Se o marido dela te pega...

— Pega não Bá, a senhora sabe o velho ditado: “O corno é sempre o último a saber,”.  E só eu e a senhora sabemos disso, então tá tranquilo. – Disse me esquivando dos tapas ardidos.

—Eu desisto!  Como pode existir uma criatura assim, senhor?  – Disse saindo para o quintal.

Na parte da tarde resolvi correr a cavalo as cercas da fazenda verificando principalmente as que margeavam a estrada. Já tive muito prejuízo devido a fuga de alguns animais. Desde então eu comecei a ter mais atenção.

Já passava das 16h quando vi um Jeep encostado próximo à matinha da beira da estrada. Terminei de esticar alguns arames e uma hora depois resolvi ver o que se passava com o veículo. Assim que me aproximei, vi por traz do carro uma moreninha linda. Parei o cavalo ao ouvir um palavrão ser gritado e em seguida uma chave de rodas vir voando em minha direção. Por sorte não nos atingiu.

         Achei melhor me fazer notar. Ofereci ajuda, e ela foi extremamente grosseira. E disparou falar uma ladainha que só entendi que ela era empoderada, sorri achando graça da granfininha e que, ainda por cima, estava toda de branco. A bichinha estava parecendo um siri na lata, mas daqueles com molho vermelho porque parecia que tinha rolado na lama, sem falar que mancava de um pé.

          — A dona “empoderada” que sabe... Tá mais para “empoeirada” – Desci do cavalo, peguei a matula que Bá sempre me obrigava a carregar e me sentei na sombra de uma árvore próxima ao carro...

— Oh, visão linda, senhor! Que bumbum delicioso... – Disse baixinho sorrindo.

 Comecei a sorrir mais ainda ao reparar que ela estava tentando trocar o pneu errado, mas deixei, queria muito ver até onde ela iria com aquilo.

O que ela tinha de gostosa, tinha de chiliquenta. Começou a gritar comigo, tirando satisfação por eu não parar de rir. Ela se aproximou tanto que deu pra sentir o seu perfume, a encarei e apontei o pneu.

— Dona, o pneu furado é o outro. – Ela me olhou como se não entendesse o que eu estava dizendo.

— O que você está falando, sua sem noção?  Fica aí com essa risadinha cínica...

— Bom, pelo que eu saiba, pneu furado é sempre o murcho – Ela se virou, olhou e pôs as mãos na boca. Não aguentei e ri mais ainda.

— QUE INFERNO ISSOOOOOO!!! PUTA MERDA!!! CARALHOOO!!! – Gritava com as mãos na cabeça.

— CALMA! PARA DE GRITAR! – Disse segurando firme o seu braço a deixando de olhos arregalados — Deixa comigo, eu resolvo isso pra você.

Essa garota definitivamente tem problemas..., mas não deixei de reparar seus seios volumosos, que delícia...

— Senta aqui, bebe água e se acalma dona, em 10 minutos eu troco isso pra você – Sorri para ela, ela retribuiu com uma cara de nojo.

 Peguei a garrafa térmica que estava dentro da matula e entreguei a ela que me olhava, e pude perceber certo constrangimento em seus gestos.

Tirei a camisa e o chapéu deixando os dois pendurados no galho da arvore. Ela já estava parecendo mais calma. Bambeei os parafusos, e me lembrei de verificar o freio de mão. Assim que abri a porta do carro levei um susto.

— Que trem danado de feio é esse, meu Deus! Parece um rato! – Cai na risada pelo cãozinho que levou mais susto que eu e latia escondido atrás do porta-treco entre os bancos.

Quando vi, a dona onça já estava ao meu lado, quase me derrubando para pegar aquele feioso.

— Você o assustou, sua bruta! Vem com a mamãe, Alfredo – Ela custou a pegar aquele micro cãozinho que tremia mais que vara verde.

— Olha, não é que é um cachorro mesmo... – Comecei a gargalhar. Ela me fuzilou com o olhar, levantei as mãos em rendição.

Levei 15 minutos para deixar tudo pronto para a granfininha poder vazar na braquiária. O que ela tem de linda, tem de antipática. Mesmo com toda aquela grosseria eu seria incapaz de deixar ela ali sozinha. Durante esse tempo a percebi me analisando da cabeça aos pés.

— Pronto dona, agora a senhora pode seguir seu rumo. – Eu disse pegando minhas coisas e me vestindo.

— Quanto ficou? – Ela me perguntou pegando a carteira. Olhei-a sem entender direito, e ela repetiu. — Quanto ficou o seu trabalho? O tempo que você perdeu aqui me ajudando? Vejo que você deve trabalhar para alguém aqui da região, visto os seus trajes. Essas suas roupas imundas e surradas.

Soltei uma sonora gargalhada e entrei na onda dela.

— Precisa não dona, eu já tinha terminado meu serviço, meu patrão é “bonzim” demais... Ele não vai brigar “com eu não” ... E te garanto que não tem paga melhor que pudê ajudar uma moça tão educada e simpática assim como a senhora. A dona pode ir sossegada – Coloquei o chapéu e prendi a matula na cela. — E eu que te agradeço a oportunidade de poder trocar o pneu de um carrão chique desse – Disse já montando no cavalo. Olhei-a de cima abaixo, sorrindo da forma mais cafajeste que eu consegui, enquanto via seus olhos faiscando de ódio.

         Não dei tempo dela por pra fora toda aquela ira.  Sai em um galope após me despedir tocando a ponta do chapéu.

Fim do capítulo